quarta-feira, setembro 07, 2011

Uma história do cinema queer (6/6)
Pelo século XXI

Foi em Fevereiro do ano 2000. Hillary Swank, nomeada pelo seu papel em Boys Don’t Cry (1999) de Kimberly Pierce, ganhava o Oscar de Melhor Actriz, a Academia distinguindo assim, com o seu mais importante prémio, a representação no grande ecrã de uma personagem transgénero. O filme partia da história real (e trágica) de Brandon Teena, a realizadora tendo lido então All She Wanted, livro de Aphrodite Jones que documentava o caso real de Teena, desenvolvendo o argumento que deu a Hillary Swank o papel que lhe valeu o Oscar. A década dos zeros mostrava assim o que parecia ser uma nova etapa no relacionamento do cinema com as representações de figuras LGBT. O facto da estreia ter coincidido com um novo crime de ódio, que custou a vida a Mathew Shephard (caso que podemos revisitar em The Laramie Project, filme de 2002 de Moises Kaufman) e alguns factos que o tempo somou depois a esta história deixaram contudo claro que há ainda conquistas pelo caminho até se atingir uma eventual igualdada na forma do cinema, de quem o faz, promove, divulga e ver, encarar as sexualidades normativas e não normativas.

O cinema mainstream tinha já conhecido alguns episódios de bom relacionamento com personagens homossexuais, bissexuais e trangénero nos noventas. Um dos exemplos de maior sucesso chegara da Austrália, em 1994, com The Adventures of Priscilla, Queen Of The Desert, de Stephan Elliot. Terence Stamp (bem longe de outros papéis que conhecera na sua carreira), Hugo Weaving e Guy Pierce vestem a pele de três travestis, em viagem ao coração da Austrália em busca de emprego. Pelo caminho ouvem canções dos Abba. E descobrem que a noção de preconceito pode ser coisa sem sentido em sociedades rotuladas como “primitivas”... A banda sonora, entre canções dos Abba e clássicos disco sound fez do filme um fenómeno maior que a sua expressão no ecrã e acabou por gerar um musical de palco. Ainda mais próximo de plateias mainstream, a estreia em cinema dos irmãos Wachovski (mais tarde os criadores de Matrix) fez-se em 1996 com Bound, thriller que recorda ecos do film noir e que toma como central a relação entre duas mulheres, interpretadas por Jennifer Tilly e Gina Gershon), numa representação contudo a milhas da pulsão criativa que então surgia em exemplos nascidos do new queer cinema.

A década dos zeros abriu mais ainda o espaço do circuito mainstream a represençações de personagens e vivências LGBT. Um dos melhores exemplos deste cenário coube a Transamerica (2005, foto), de Duncan Tucker. Protagonizado por Felicity Huffman (num desafio de interpretação em registo bem distante do que lhe dera fama em Donas de Casa Desesperadas), a história de Bree, que espera a operação de mudança de sexo e com ela apagar a sua vida até então e que descobre então que tem um filho. O papel valeu à actriz uma nomeação para os Oscares e um Globo de Ouro. Mais sorte teve Sean Penn que, em Milk (2008), de Gus Van Sant, arrebatou da Academia o Oscar para Melhor Actor depois de interpretar a figura de Harvey Milk. Na cerimónia de entrega das estatuetas douradas, tanto ele como Dustin Lance Black (o também premiado autor do argumento de Milk) protagonizaram discursos emotivos, mas contundentes, que marcaram politicamente a história dos Oscares.

Nomeado para diversos Oscares, entre os quais o de Melhor Filme, Brokeback Mountain (2005, primeira foto), de Ang Lee, é talvez o mais bem sucedido dos casos de vida mainstream de uma história de amor entre personagens do mesmo sexo. Baseado no conto homónimo de Annie Proulx, narrando o romance escondido de dois cowboys que, ao longo de 20 ano se encontram, espaçadamente, para viver o amor que sentem um pelo outro na solidão de uma paisafgem de montanha, o filme foi protagonizado por actores de primeiro plano (em concreto Jake Gylenhall e Heath Ledger). Ang Lee (que há havia abordado o amor gay em Banquete de Casamento, de 1993), saiu da cerimónia com o Oscar de Melhor Realizador. Já o prémio de Melhor Filme acabou entrege ao (hoje praticamente esquecido) Crash.

Nem todos os filmes com carreira mainstream chegaram aos patamares de premiação de Boys Don’t Cry, Milk ou Brokeback Mountain. Mas ao longo da última década podemos a estes juntar casos como The Deep End (2001, foto), de Scott McGhee e David Siegel sobre como uma mãe (Tilda Swinton) procura encobrir o que julga ter sido a morte do homem com quem o seu filho teria uma relação. Com grande impacte internacional convém referir ainda o impacte de O Fantasma (2000), primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues. E reconhecer a abertura de curiosidade na exploração de temas e personagens que a década assistiu, revelando olhares sobre a velhice de figuras homossexuais, como se viu em Solange du hier bist (2007), do alemão Stefan Westerwelle ou Avant Que J’Oublie (2007) de Jacques Nolot.

Apesar desta visibilidade maior, a esmagadora maioria da cinematografia queer continua “invisível” nos circuitos comerciais, cabendo aos festivais de cinema, em particular aos que divulgam esta cinematografia, o papel de representar o elo de ligação entre criadores e espectadores. Os festivais de cinema queer (e são muitos pelo mundo fora) serão mesmo hoje um motor de dinamismo que desafia realizadores e demais profissionais, abrindo espaços não apenas a representações de personagens LGBT no grande ecrã como a uma forma de ousadia narrativa e estética que, desde os dias de Kenneth Anger e Jean Genet, passando depois por nomes como Jean Cocteau, Fassbinder, LaBruce, Araki, Van Sant ou Haynes, ajudaram a revelar novos caminhos ao cinema. Sem sermos exaustivos, podemos apontar uma mão cheia de casos de filmes que, revelados em festivais de cinema queer, só em pontuais mercados chegaram às salas de exibição no circuito comercial.

Filmes como Glue (2006), de Alexis dos Santos, XXY (2007) de Lucia Puenzo, The Bubble (2006) de Eytan Fox, The Blossoming Of Maximo Oliveros (2005), de Auraeus Solito, Presque Rien (2000), de Sebastien Lifchitz, Garçon Stupide (2004) de Lionel Baier, Gypo (2005), de Jan Dunn, Saturno Contro (2007) de Ferzan Ozpetek, Soundless Wind Chime (2009, foto) de Kit Hung, J'ai Tué Ma Mère (2009), de Xavier Dolan ou Miss Kicki (2009), de Hakon Liu, são apenas alguns entre os muitos exemplos de títulos que poderiam ter conhecido visibilidade adiante do espaço das programações dos festivais. Mais “radicais”, mas não menos interessantes, filmes como Otto: Up With Dead People (2008) de Bruce LaBruce, Itty Bitty Titty Committee (2007) de Jamie Babbitt ou Rabioso Sol Rabioso Cielo (2009) de Julian Hernandez vincam por outro lado o carácter renovadamente ousado e algo subrevsivo que continua a marcar algumas das melhores propostas que passam pelo circuito dos festivais.

Outra sorte tiveram, portanto, filmes como As Canções de Amor (2007), de Christophe Honoré, Shortbus (2006) de John Cameron Mitchell, Tarnation (2003), de Jonathan Caouette, Mysterious Skin (2004) de Gregg Araki, Far From Heaven (2002, foto), de Todd Haynes ou Savage Grace (2007), de Tom Kalin, alguns dos raros casos de títulos que mereceram estreia entre nós. Destaque-se, em jeito de nota final, o caso de O Último Verão da Boyita (2010) de Julia Solomonoff. Vencedor do Queer Lisboa em 2010 foi o primeiro caso de triunfo no único festival de cinema queer português a chegar ao circuito comercial. Coincidência? Ou primeiros sinais de uma nova realidade?

PS. Em breve aqui publicaremos um episódio extra sobre o cinema queer made in Portugal.

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