Alguns críticos e bloggers participam neste mês dedicado ao cinema queer partilhando connosco aquele que é o seu exemplo preferido desta cinematografia. A abrir, Nuno Carvalho, crítico de cinema do Diário de Notícias e autor do blogue o reino das sombras, fala-nos de “Otto, or, Up With Dead People” (2008 / foto), de Bruce LaBruce. Muito obrigado ao autor pela valiosa colaboração.
No versículo 13 do capítulo 20 do Levítico, um dos cinco primeiros livros da Bíblia, diz-se: “Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com uma mulher, ambos terão praticado uma abominação; certamente morrerão”. Foi esta lei abominável do Antigo Testamento, supostamente inspirada por Deus (mas mais provavelmente ditada pela cabeça de um daqueles homossexuais reprimidos e egodistónicos que depois, perversamente, viram homofóbicos), que legitimou, entre muitos “crentes”, a condenação da homossexualidade. Daí que, aos olhos de uma sociedade em muitos aspectos herdeira de princípios judaico-cristãos, a homossexualidade seja vista como um “grande pecado” (e muitas vezes associada ao Mal, ligação que o próprio Papa Bento XVI, que deveria ser mais responsável e ciente das possíveis consequências trágicas das suas palavras nesta matéria, já por diversas vezes estabeleceu) – um pecado digno de “excomunhão”, “proscrição” e “condenação”. Por isso, aos olhos do Deus judaico-cristão, um homossexual é uma criatura que comete um pecado “abominável” que merece a morte (pelo menos uma morte simbólica).
E é dessa morte simbólica e metafórica que trata um filme como Otto; or, Up with Dead People, do realizador canadiano Bruce LaBruce. Uma morte que, afinal, nem sempre é tão “simbólica” e “metafórica” quanto isso. Se é verdade que a Bíblia também diz que “o salário do pecado é a morte” (entendendo-se aqui por “morte” não a morte física, mas sim uma “morte espiritual”), então o homossexual, esse “grande pecador” (aos olhos dos católicos), será uma espécie de zombie espiritual. De facto, é por aí que LaBruce pega para criar a personagem de Otto (interpretada pelo actor belga Jey Crisfar, cujas iniciais do nome coincidem, curiosamente, com as de Jesus Cristo), um jovem zombie gay que deambula pelas ruas de Berlim até ser descoberto por Medea Yarn (Katharina Klewinghaus), uma realizadora iconoclasta que o torna protagonista do seu filme “épico-político-porno-zombie”, precisamente intitulado Otto; or, Up with Dead People, jogando aqui LaBruce com o esquema do “filme-dentro-do-filme”. Mas o Otto de LaBruce não é só um jovem gay que sofre o anátema religioso; é também um ser emocionalmente ferido (devido a uma rejeição amorosa), psicologicamente destruído (fala-se em esquizofrenia) e espiritualmente morto (mas também socialmente invisível – ou mal-visto).
A genialidade do filme de Bruce LaBruce, um dos mentores do movimento Queercore, reside não só no facto de nos propor uma muito bem conseguida e original metáfora da homossexualidade (porque, no mundo que decreta que “Deus detesta os gays”, o homossexual, em termos sociais, só pode ser uma espécie de “morto-vivo”), como também no facto de ser um filme realmente subversivo, heterodoxo e provocador – ou seja, tudo aquilo que deve constituir o espírito do cinema queer.
Nuno Carvalho
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