É um acontecimento que merece ser celebrado. Num país que tem alimentado, aos poucos, uma revalorização da curta-metragem (em rigor um formato em potência em que se estreiam os futuros realizadores), eis que surgem no mercado português três dos títulos mais aguardados em DVD. É, na verdade, um autêntico “três em um” que nos abre a porta e nos apresenta um trabalho que, até hoje, apenas tinha tido projeção em festivais de todo o mundo. Bem-vindos aos III Filmes de João Salaviza: Arena (2009), Cerro Negro (2011) e Rafa (2012).
Ninguém o esperava. O nome de João Salaviza começou a ser falado entre os portugueses mais (e também menos) cinéfilos. Foi visto como aquele que tinha conseguido ser o primeiro português a vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes (para curtas-metragens). E foi, por isso mesmo, que Salaviza se viu transformado num alvo de invulgar atenção da comunicação social, como o próprio admite ao DN.
Passados três anos, João Salaviza, já com outro filme debaixo dos braços (Cerro Negro, uma encomenda do Programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian), levou a Berlim Rafa, terceira “curta” de ficção que acabou por vencer... o Urso de Ouro. A proeza foi acompanhada por mais uma onda de histerismo mediático. “De repente jornais que nunca escrevem sobre cinema ficam interessados. E eu vi-me confrontado com a questão de justificar um prémio, por coisas que não são mesmo da minha responsabilidade.” Para João Salaviza, há algo de “perverso na imprensa, que de súbito quer saber quem eu sou, quando temos o Miguel Gomes ou o Pedro Costa a filmar e ninguém fala deles. E quando referem o Manoel de Oliveira é por causa dos 100 anos...”
Apesar de João Salaviza ser o primeiro a considerar que as pessoas que o referem pelos prémios “não estão de todo interessadas” nos seus filmes a visibilidade trouxe-lhe também consequências felizes: conseguiu estrear Arena e Rafa no circuito comercial (acompanhados, respetivamente, pelas longas-metragens Taking Woodstock, de Ang Lee, e Nana, de Valérie Massadian), admitiu a possibilidade de assim ser mais fácil haver uma coprodução com outro país e viu a sua obra (ainda breve) ser editada num único DVD.
Poderíamos admitir alguma arbitrariedade nesta edição se não fossem as semelhanças entre os três filmes e que nos fazem acreditar que estamos perante uma verdadeira trilogia. Em Arena, acompanhamos um prisioneiro domiciliário (interpretado por Carloto Cotta) que, após ter sido assaltado por três miúdos do bairro, se vê obrigado a sair da prisão em que a sua casa se tornou. Cerro Negro aborda a tentativa de comunicação de um pai, preso em Santarém, com o seu filho. E, em oposição, Rafa acompanha a espera de um jovem rapaz pela sua mãe, detida numa esquadra em Lisboa. A reforçar a imagem, a capa do DVD sugere-nos um calendário de... prisioneiro.
Uma “trilogia acidental”
No entanto, Salaviza considera que a ideia de trilogia é “acidental”. “Foi quando comecei a escrever e a filmar o Rafa que me apercebi de que havia um elemento temático que era bastante repetitivo”, quase como “um auto-plágio”, acrescenta. E, muito embora a imagem da prisão seja absolutamente central nos três filmes, o realizador confessa que não existe um “fascínio especial pela questão da prisão em si mesma” já que é, antes, “um dispositivo que permite pôr as personagens numa situação de conflito com elas próprias e com uma espécie de identidade invisível que é maior que elas”.
E o que é essa identidade invisível? Para Salaviza é a “força institucional” que está sempre em relação conflituosa com o indivíduo e que se manifesta como um fantasma. Em Arena, está materializada na pulseira eletrónica na perna do protagonista, em Cerro Negro são os guardas prisionais que surgem de costas, e em Rafa são as vozes, em off, dos polícias. Um dispositivo que, por isso, se repete mas que serve apenas o meio para falar de algo que transcende o tema “prisão”. E isso é a família.
Em Cerro Negro, filme com o qual João Salaviza competiu na mais recente edição do IndieLisboa (vencendo o Prémio para Melhor Realizador), percebemos claramente uma relação entre dois espaços (o doméstico e o da prisão) pela sua estrutura dialética (radicalizando uma “ideia do Bresson, em que entre dois planos há qualquer coisa da ordem do invisível”). Esta curta-metragem, que rejeita o simplismo mecânico da montagem alternada ao dividir-se em dois segmentos distintos (a vivência de uma mãe e de um filho em casa e a vivência de um pai na prisão), parece, também, fundir aquilo que é doméstico com o que é de prisão (algo que está presente em Arena, desde logo porque trata a prisão domiciliária). Como? Através de um trabalho simples mas significativo da mise-en-scène – a cela com que o filme encerra é como a cozinha que o abre: ambas têm a presença de uma máquina que os relaciona com o exterior (a televisão).
A frequência das rimas em João Salaviza não se reduz, contudo, à organização interior de cada filme (como acontece em Cerro Negro) nem tampouco ao dispositivo da prisão. Há imagens que parecem conversar entre os filmes, como se cada um servisse de complemento aos outros dois. Entre elas há uma particularmente forte e poética: a janela que, como Salaviza explica, tem, “para além das questões estéticas, um sentido narrativo, já que é um elemento que mostra um outro mundo possível, ao qual tentamos aceder e depois regressamos”. Se em Arena a janela serve de ponte para iniciar o conflito entre o protagonista e os três jovens do bairro, em Cerro Negro é entendida como um ponto de fuga (do olhar) para o exterior, mais exatamente para um off desejado. Esse off é a casa, local de origem com o qual o prisioneiro (tal como todos os protagonistas dos outros dois filmes) tem uma relação que o realizador considera “magnética”, já que “puxa permanentemente as personagens, por muito desconfortável que seja esse sítio ao qual elas pertencem”.
Tal como a janela, que encerra Cerro Negro e que abre Rafa, a cozinha (que dá inicio aos três filmes) é outra das imagens mais recorrentes e, sem sombra para hesitações, o espaço privilegiado no cinema de João Salaviza. Espaço que, hoje, nos empurra, subtilmente, para uma ideia de convivência social – noção que, naturalmente, luta contra as mais básicas convenções do paradigma televisivo português (a telenovela), que nos apresentam a cozinha como um espaço funcionalista, “o da empregada, e a sala como espaço onde as pessoas conversam. Na vida não é assim e dramaturgicamente é muito desinteressante”, considera o realizador que, ainda, dá como referência a série norte-americana Sete Palmos de Terra.
Se, nesta série, as cenas centrais decorrem, precisamente, na cozinha, nos filmes de João Salaviza a cozinha é palco para que assistamos à mais cruel das imagens: a família desagregada. Como se a mise-en-scène das cenas na cozinha vivessem sob o doloroso signo da ausência: falta a mãe na cozinha de Rafa, falta o pai na cozinha de Cerro Negro, falta companhia na cozinha de Arena, decorada, nas palavras de Salaviza, “para dar a entender que podia ser uma casa onde eventualmente podia viver com uma avó ou com uma tia mais velha”.
Porém, mais uma vez, estamos perante um dispositivo que nos conduz para uma premissa que João Salaviza tem trabalhado, progressivamente, no seu cinema e que se revela central em Rafa e na sua próxima longa-metragem, a ser filmada ainda este ano. “Tenho estado cada vez mais fascinado por estes laços entre a família e que têm a ver com o nosso papel. Nunca somos só um filho nem só uma mãe”. Esta indefinição dos papéis evidenciam-se na última curta-metragem: Rafa e a irmã “parecem ter a mesma idade, mas ela tem um filho e de repente ele é um tio. Se nós dissermos ‘este tio foi à esquadra da polícia’ a coisa soa um bocado estranha, mas do ponto de vista técnico ele é tio daquele bebé.”
Ao sentimento de desadequação das personagens aos papéis que se espera que desempenhem, alia-se uma autonomia e independência que são claramente forçadas – ideia que encontra correspondência direta com a vida do realizador e, no limite, com o Portugal do século XXI. “É uma coisa que cada vez mais se vai materializando e sobre a qual tenho refletido muito. Pela primeira vez na História da humanidade, e que é uma coisa recente com 20 ou 30 anos e que começa a ser comum, existe isto do ‘filho único’. É uma figura nova, que nunca existiu antes”, constata João Salaviza.
Face a esta nova figura social, o realizador, ele próprio também filho único, toma, como as suas personagens, consciência da razão da sua solidão. “Acho que todas as minhas personagens têm uma algo de muito introspetivo e que tem a ver com esta questão. Muitas personagens de outros filmes que me interessam têm essa relação muito observacional com o mundo. Numa viagem de autocarro para a escola, quando se é filho único e não se vai com os amigos, observamos muito e aprendemos de novo a desenvencilharmo-nos sozinhos.”
Ritos de passagem
Será por esse motivo que João Salaviza tem continuadamente apontado,como principal inspiração do seu Rafa, O Viajante (1974), de Abbas Kiarostami (que é, aliás, um autor sem o qual o cinema de Salaviza não existiria como o conhecemos). Reconhecemos nesta peculiar parábola (em que seguimos a jornada de um rapazinho que não olha a meios para conseguir assistir, em Teerão, ao jogo da seleção nacional) o fulgor característico de Rafa e, por conseguinte, de todos os ritos de passagem, já que “não contamos com a comunidade. Os heróis clássicos são sempre indivíduos solitários”, relembra o realizador.
Kiarostami será, porventura, também a referência indicada para falar da permeabilidade do cinema de Salaviza ao real. Sentimos que cada plano que vemos nunca é verdadeiramente encenado ou premeditado: há, isso sim, sempre algo que quer revalorizar a realidade, fazendo-a ultrapassar da condição de “pano de fundo” da ação. “Não é um cenário de teatro, os espaços estão vivos. Por isso é que tenho prazer em filmar a cidade”, em que “é tudo mais difícil porque não temos controlo sobre o que está a acontecer. As coisas de que eu mais gosto nos filmes são, para além de poucas, acidentes. Sem exceção. Milagres que acontecem.”
Milagres: eis o que verdadeiramente nos tem prendido aos filmes de João Salaviza, o que os têm imbuído com uma forte carga lírica e que os têm feito transcender de meros filmes “realistas”. Tudo isto para além do trabalho de atores (que trazem para rodagem fragilidades que Salaviza gosta de incorporar nos seus fimes) e das decisões tomadas a fresco (caso da cena, em Cerro Negro, em que o realizador pediu para que, a meio do plano, fosse atirada uma pedra para um bando de pombos para que os víssemos a voar no reflexo do vidro de um autocarro).
Salaviza conta, como uma autêntica anedota, algo que, do seu ponto de vista, é inexplicável. “Para a cena final de Arena quis que houvesse uma série de pássaros no céu” no momento em que “ele se deita no filme. Contratámos, e até a temos nos agradecimentos, a Sociedade Columbófila Portuguesa, que trouxe umas caixas com pombos para as podermos abrir. Filmamos três takes, abríamos as caixas e saíam cerca de 20 pombos. O céu ficava cheio de pássaros e era incrível. Aquilo era lindíssimo mas a mim parecia-me demais”, admite. Entretanto, “fomos almoçar e já não havia pássaros porque já tinham todos ido embora. Fizemos só mais um take e, de repente, e só reparei quando vi as imagens, há um passarinho que parece que lhe sai, literalmente, da barriga. Parece a alma dele. E parece milimetricamente premeditado”, constata.
Ora este episódio, apenas equiparado ao momento em que uma senhora, no plano das duas passagens aéreas em Arena, interrompe o seu percurso e permanece no enquadramento, clarificou o espírito de Salaviza: “é bom não lutar contra aquilo que o espaço pode dar.”
Para além do mais, para si, a função do realizador passará invariavelmente por um trabalho de atenção e de recolha. Como, aliás, simboliza o de Agnés Varda (com o seu documentário Os Respigadores e a Respigadora, de 2000). “Partimos numa viagem, daqui à Índia, sabemos que vamos acabar em Bombaim mas entretanto vamos recolhendo”, diz-nos Salaviza. “Com a sensação de que há coisas que nos passaram e de que há outras que não estávamos à espera de encontrar. Cada vez mais é isso o que me dá prazer. Não é ir para a rodagem confirmar aquilo que já sabia, mas confrontar as ideias com o real.”
São conclusões a que João Salaviza chegou e aprofundou com o seu (ainda breve) percurso como realizador. Filho do montador Edgar Feldman (que montou, aliás, Cerro Negro), João Salaviza cedo contactou com o cinema: acompanhou o pai no seu trabalho (tendo chegado a interpretar um papel em Querença, que Feldman realizou e lançou em 2004) e com ele viu, nos cinemas Alvalade, Quarteto ou King, alguns dos títulos que mais determinaram o modo como hoje entende o cinema e a própria vida. Entre eles estão seguramente Trabalhos de Casa, documentário de 1989 de Abbas Kiarostami, e Kids, “filme-choque” de Larry Clark. E apesar de ter considerado trabalhar em Londres ou seguir carreira como jornalista, Salaviza continuou os estudos na Escola Superior de Teatro e Cinema (Lisboa), onde realizou a primeira curta-metragem Duas Pessoas (que terminou em 2004, com 19 anos). Será lá que, então, se especializa na área de montagem e começa a trabalhar como assistente de montagem de Singularidades de uma Rapariga Loura (adaptação lançada em 2009 por Manoel de Oliveira do conto homónimo de Eça de Queirós).
Em boa verdade, o percurso de João Salaviza como o realizador destas três vigorosas curtas-metragens, que parecem surgir como o prenúncio para uma carreira feliz, tem acompanhado uma atitude de militante defesa do cinema português. Um dos signatários principais do documentário Cinema Português: Ultimato ao Governo (que exigia a aprovação de uma nova Lei do Cinema), João Salaviza tem dado conta, sob diversas formas, do panorama cinematográfico nacional.
Uma delas, e talvez a mais memorável, faz já parte das imagens mais emblemáticas e representativas da luta dos profissionais de cinema: em Berlim, quando se prepara para receber o Urso de Ouro, aproveita o microfone para dedicar o prémio ao governo português “mas só na condição de nos ajudarem nos próximos anos, porque não sabemos o que vai acontecer com o nosso cinema”.
Foi um discurso que, do seu ponto de vista, não se resumiu às “banalidades do costume”. “Acho que mesmo que os políticos não gostem de cinema português têm de perceber que há muita gente que gosta no mundo inteiro, onde há uma espécie de fascínio, neste momento específico, mais do que nunca”, adverte o realizador. Confessa ainda que “é preciso ser-se um político muito, muito irresponsável e descomprometido para ignorar isto. O pouco dinheiro que é dado aos filmes portugueses não se materializa em filmes vergonhosos ou maus. A questão então seria: ‘como é que vamos ajudá-los a fazer melhores filmes?’ Mas, na prática, não é isso que acontece. A qualidade e a importância dos filmes que são feitos cá é inversamente proporcional ao apoio que lhes é dado. Num país onde se fazem oito longas-metragens por ano – do Pedro Costa, do João Pedro Rodrigues, do Manoel de Oliveira, João Canijo, Miguel Gomes, Gabriel Abrantes, Gonçalo Tocha – quer dizer... Isto é uma coisa fora do normal”, desabafa. “Não conheço nenhum país do mundo com esta força”.
Artigo publicado no suplemento QI, do Diário de Notícias, a 23 de junho de 2012.