O que define um clássico? Segundo que critérios determinamos o valor de uma obra e, consequentemente, a importância do seu autor? Será decerto uma questão de solução difícil, mas parece-me razoável que as repercussões a nível social geradas por um trabalho de arte, uma teoria científica, antropológica, gnosiológica, enfim, um produto da reflexão humana e um testemunho do seu engenho e capacidade de criação, constituam um auxiliar precioso na complexa tarefa de compreender a relevância de um pensador e dos seus escritos.
A consciência do enraizamento na forma de pensar e sentir da civilização ocidental - e não só - de nomes como Newton, Miguel Ângelo, Homero, Pitágoras ou Dante leva-nos a reconhecer-lhes grandeza, ou, pelo menos, importância, ainda que desconheçamos grande parte da sua obra. O mesmo acontece com Platão, geralmente: afinal, quem nunca ouviu algum conhecido seu utilizar a expressão "amor platónico" sem nunca ter lido uma página do filósofo grego? E é precisamente para percebermos em que consiste esse tal amor ou, melhor, amores, que se torna interessante a leitura deste "O Banquete".
Ora, pondo de parte o debate - sem dúvida interessante, como revela Pinharanda Gomes na introdução à obra presente na edição da Guimarães Editores - sobre os motivos que terão levado à tradução do título original para "O Banquete", ao invés de "O Simpósio" ou "O Convívio", encontramos neste diálogo platónico um grupo de personagens reunidas no dia seguinte à celebração da tragédia de Agatão, discutindo, após a refeição e por sugestão de Fedro, os méritos de Eros, cada um deles proferindo em sua homenagem um discurso laudatório. O relato destes discursos, obtemo-lo da boca de Apolodoro, que, por sua vez, o ouviu de um tal Aristodemo de Cidateneia, apoiante de Sócrates que esteve presente no simpósio onde foram realizados.
Fedro, o primeiro a discursar, considera Eros um dos deuses mais antigos e cita Hesíodo, entre outros, para o comprovar; da mesma forma, considera-o um dos mais magnâmios, louvando a coragem e a devoção que suscita nos homens por ele inspirados. Defende que, "se houvesse a possibilidade de formar uma cidade, ou um exército, composto somente por amantes e amados, obteríamos a constituição política ideal, pois teria por base o horror do vício e a emulação do bem e, se combatessem juntos, tais homens, apesar do seu reduzido número, poderiam vencer quase o mundo inteiro" e recorre a exemplos de figuras como Alceste, Aquiles ou Orfeu para demonstrar o apreço que os deuses sentem pelos actos cometidos em prol do ser amado, e termina afirmando aquilo que Mann na sua "Morte em Veneza" diz ser a ideia mais irónica jamais pensada, "da qual nasce toda a malícia e a mais secreta volúpia do desejo", isto é: "O amante está mais próximo dos deuses do que o amado uma vez que se encontra possesso de um deus".
O segundo discurso reproduzido é o de Pausânias, que salienta o facto de Eros ser inseparável de Afrodite e, dada a existência de duas Afrodites - Urânia, ou celeste; Pandémia, ou popular -, é forçoso que existam igualmente dois Eros - um popular, que inspira aos amantes vulgares sentimentos que eles devotam a mulheres e jovens sob o impulso da concupiscência, e um celeste, que inspira os amantes a admirarem, acima de tudo, o espírito do amado, uma vez que não participa da concupiscência. Acredita que o amor inspirado pelo Eros popular não é duradouro, uma vez que se baseia no amor da beleza física, que é desprovida de perenidade; por outro lado, o amor inspirado pelo Eros celeste, consistindo numa entrega por parte do amado com o objectivo de alcançar a virtude, ou a sabedoria, cuja aquisição o amante tudo faria para possibilitar, é honesto e belo, já que este gesto revela que o amado, no seu íntimo, estaria disposto a todas as complacências de forma a tornar-se mais justo ou sábio.
Já Eriximíaco, que lhe sucede, começa por abordar a influência de Eros na arte criada por Asclépio, a medicina, da qual é praticante, partindo, seguidamente e por analogia, para a influência de Eros nas estações do ano e na música, conservando a teoria da dupla natureza de Eros apresentada por Pausânias.
Segundo ele, a virtude da medicina, tal como a da música, é estabelecer a concórdia entre elementos inicialmente opostos (frio-calor, seco-húmido, no caso da primeira breves-longas, no caso da segunda) , de que resulta a harmonia. Uma vez que os dois Eros, embora se opondo, estão presentes em todas as coisas da natureza, a virtude, para ele tida como termo médio, consiste na obediência em justa medida a ambos, encorajando por Eros celeste a todos os que pretendam alcançar a sapiência e apreciando Eros popular com disciplina e precaução.
Recuperado do ataque de soluços que o impediu de discursar aquando da sua vez, Aristófanes argumenta que o amor é a ânsia de uma plenitude perdida no processo da separação da espécie andrógina, separação de que resultou a diferenciação entre o sexo masculino e o feminino e que serviu como o castigo que Zeus lançou sobre os homens por terem tentado escalar o céu - assim, dividindo-os em dois, tornou-os mais fracos, diminuindo a sua liberdade, sem perder o louvor que estes concediam aos deuses.
Como tal, o amor, na medida em que todos nós somos uma téssera incompleta, torna-nos possível um regresso à nossa natureza primitiva, una, através da realização das nossas aspirações amorosas, cuja natureza - hetero ou homossexual - varia conforme a constituição de cada um. Este regresso constituiria a felicidade suprema, e é por ser permitido que Eros, que nos conduz para a metade que perdemos e que nos pertence, que Aristófanes julga importantíssimo louvá-lo.
Agatão propõe-se a submeter o seu encómio ao método exacto da apologia, não seguido pelos oradores que o antecederam, que consiste, em primeiro lugar, em explicar a natureza do objecto, e, depois, os efeitos dele provenientes.
Adjectiva Eros como sendo o mais jovem, delicado e flexível, sendo possuidor, igualmente, da justiça, da temperança - uma vez que a aspiração suprema se resume a dominar os prazeres e as paixões, das quais o amor é superior -, da coragem - pois subjugou Ares, deus da guerra, considerado o mais corajoso - e da sabedoria - inspira a poesia, as artes, a pecuária... -, reiterando o dom de inspirar o bem não só aos homens, mas também aos deuses, inerente a Eros, glosando Homero para o caracterizar como aquele que dá "a paz aos homens, a calma ao mar, o silêncio aos ventos, o descanso e o sonho às inquietações".
Com efeito, Agatão descreve Eros como o mais belo, ao mesmo tempo que o apelida de amor da beleza; é a partir desta contradição que Sócrates, relembrando que se deseja e ama aquilo que se não possui, forma o seu discurso, todo ele uma evocação dos ensinamentos de Diotima de Mantineia, filósofa que serviu de tutora de Sócrates no tema do amor.
O discurso de Sócrates será, talvez, a parte em que o diálogo concretiza todo o seu potencial, pela forma como orador desconstrói a argumentação dos seus precedentes, ao explicar que Eros não é um deus, mas um demónio, isto é, um intermédio entre o humano e o divino, atribuindo a sua natureza multifacetada às suas origens genealógicas, uma vez que era filho de Pénia, a Pobreza, e de Poros, o Engenho, sendo, portanto, rude, desordenado, mas amante da sabedoria, uma das coisas belas.
Sustenta que Eros é, em suma, o desejo de imortalidade, afigurando-se essa a causa primeira de todos os actos por ele inspirados - o amor baseia-se no desejo de possuir o bem, e praticar o bem, por sua vez, significa conceber a beleza física - através da procriação, acto pelo qual o homem mortal contacta com a imortalidade e a assegura, de certa forma, através de uma descendência natural -, e a beleza espiritual - referindo-se esta aos poetas, aos criadores, tornando-se seus descendentes os seus discípulos ou os seguidores dos seus ensinamentos.
A ideia-chave do discurso de Sócrates, e talvez da obra de Platão, consiste na teoria de que o amor permitirá ao indivíduo através de um processo de lógica ascendente, transitar do sensível para o inteligível, do natural para o supranatural, processo esse que, iniciando-se na juventude, com o amor pela beleza física, se transformará na contemplação da beleza das acções, leis e ciências, culminando no conhecimento absoluto: a descoberta do belo em si próprio.
O diálogo termina, de forma inexpectável mas apropriada ao tema, com uma declaração de amor: Alcibíades, enamorado de Sócrates, descreve-o como uma figura venerável, corajosa, louvando-lhe a sabedoria, a temperança e a rectidão, bem como a astúcia.
"O Banquete", perpassado por uma deliciosa eloquência, fornece-nos material para aprofundada reflexão. Poderemos não concordar com tudo o que é dito, mas penso que a coerência da argumentação e a loquacidade dos interlocutores é, por si só, meritória. Constituirá, talvez, uma janela para uma Grécia clássica, antiga e distante, um vislumbrar da forma como essa civilização encarava o amor e as relações enter seres humanos. Aliás, será assim tão diferente a forma como o homem contemporâneo vê o amor, vinte e três séculos após a morte de Platão? O mundo mudou, evoluiu (não em todos os aspectos, infelizmente), e não faz sentido ler Platão sem ter em mente o contexto social e cultural da época; ainda assim, apesar de existirem passagens que, a nós, leitores de hoje, poderão soar algo descabidas, a verdade é que há algo aqui - como o há em todos os criadores dignos de referência - de transcendente, que continua a fazer sentido: e não é a intemporalidade o atributo comum a todos os clássicos?