quinta-feira, maio 24, 2012

Um código conhecido

Entre Michael, que Markus Schleinzer estreou no ano passado no Festival de Cannes (em secção competitiva), e Michael Haneke a diferença é… “diferença”?? 

Eis enunciado o nosso problema: Schleinzer, cuja experiência profissional em cinema passa pelo trabalho como diretor de castings, essencialmente em séries de televisão (lembram-se de Rex, o cão polícia?) e nos filmes de Haneke (a partir de 2001, com A Pianista, passando ainda pel’O Tempo do Lobo e o recente O Laço Branco), parece ter feito algo que cai, num primeiro relance, no deslumbramento formalista daquele que é agora considerado um novo cinema austríaco (uma designação que é, na verdade, absolutamente insignificante quando é apenas Michael Haneke o seu protagonista). 

A mise-en-scène de Schleinzer, que quer em tudo adequar-se a uma ideia de falsa normalidade, ou normalidade produzida (ideia cinematográfica fortíssima, que acaba por nos desmascarar a todos – do pedófilo protagonista ao espectador), não é mais senão uma ponte para o trabalho de câmara, rígida como uma câmara de vigilância e tão austera que “parece” Haneke

Mas não nos deixamos cair — Schleinzer finge, com esse trabalho, fugir ao sensacionalismo, unilateralidade e influência televisivas para, paradoxalmente, procurar imagens cuja violência gratuita nos fazem crer que estamos perante um indiscutível “filme-choque” (à memória vem a cena da televisão no filme de Schleinzer, que é determinante para o momento mais grotesco). O que ainda é também perturbante é a ausência de pontos de fuga numa história que prima por uma previsível banalidade. E nem mesmo as cenas em que o protagonista faz desajeitadamente sexo com uma mulher, em que o miúdo tenta escapar ou o final nos satisfazem: como se Schleinzer pusesse a sua fé no assunto “pedofilia”, mostrando-nos os sintomas de um caso como qualquer outro, como se tal bastasse para estabilizar uma narrativa — não, não basta. 

No limite, é uma questão moral. Schleinzer recusa o moralismo tabloide para privilegiar uma insensibilidade obscena — e é, infelizmente, talvez apenas nisso que é original.

quinta-feira, maio 17, 2012

Is anyone seeing this?

O aviso está feito: “procurem abrigo”, aproxima-se uma tempestade apocalítica e, depois dela, nada vai ser igual. Perante esta premissa, poderemos facilmente recordar o enormíssimo fenómeno de bilheteiras que foi, há três anos, o filme-desastre 2012 de Roland Emmerich e, em consequência, associar a segunda longa-metragem de Jeff Nichols com as teorias escatológicas em torno do próximo dia 21 de dezembro. 

É melhor que nos desenganemos. Procurem Abrigo (título original: Take Shelter), filme independente norte-americano que venceu no ano passado o Grande Prémio da Semana da Crítica em Cannes, recusa-se a participar nesta corrente de delírio sobre o fim do mundo e tentar compreender, pelo contrário, as nossas raízes. Falamos da família, naturalmente, com todas as suas particularidades comuns (não é certamente por acaso que Nichols nos quer dar a ver os esforços do casal em oferecer à filha surda os melhores cuidados possíveis). E é em torno dela que o protagonista Curtis LaForche, interpretado por um assombrado Michael Shannon, se dedica em absoluto para a proteger. De quê? Na verdade, de duas crenças que entram em oposição entre si: da tempestade que julga estar a caminho (que põe em risco a sua vida e a da mulher e filha) e das visões que tem sobre a mesma e que pensa terem uma origem meramente patológica (possivelmente uma esquizofrenia herdada da mãe). E enquanto decorre o conflito um abrigo é construído perante o olhar reprovador dos que o rodeiam… 

Em que havemos, por isso, de acreditar? Nas visões de Curtis ou na sua doença? É talvez esta a dúvida que Jeff Nichols opera ao longo do desenvolvimento do filme. Como? Ora sugerindo o seu angustiado ponto de vista ora exteriorizando-se dele, filmando a incompreensão da pequena comunidade norte-americana em que vive e a da mulher (Jessica Chastain, que surge com uma presença luminosa). 

Uma dúvida que nunca acaba realmente por ser respondida (a tempestade tem relação direta com as suas aparentes alucinações?) e que permanece ao longo de um fluxo de imagens que demonstram um sentido de ritmo (recorrendo raras vezes à elipse, as coisas parecem-nos decorrer tal como estão, de facto, a acontecer) e de mise-en-scène apuradas. Vide, sobre esta última, as cenas de cozinha, em que a câmara parece estar lá como o cão – uma presença que não é anónima mas habitual. Até um certo ponto, a imagem tem um poder revelador (ao estar, por vezes, no campo da “objetividade” contaminada pela subjetividade do protagonista) mas também, quem sabe principalmente, transformador: o real não é nada mais que esta matéria exterior que, sendo vista por um conjunto incerto de perceções, pode ser entendida a qualquer momento como um palco para o fim. 

No limite, e tal como a tradução do título em português sugere (Procurem Abrigo), estamos diante de um medo que acaba por ser unificador: quem não receia enlouquecer e perder a memória? Quem não tem medo de perder aqueles que nos são queridos? Sobre esse medo, Jeff Nichols responde: em situações-limite é preciso que nos juntemos. Não nos admira, pois, que o poster oficial do filme nos mostre, muito simplesmente, o pai, a mãe e a filha abraçados sob um assustador bando de pássaros.

Numa entrevista para o portal de cinema independente Indiewire, o realizador desabafa: na viragem para os 30 anos de idade “tinha acabado de casar e feito o meu primeiro filme”, Histórias de Caçadeira (2007). “Tinha finalmente algo que podia perder”. E essa ansiedade, aliada ao facto de George W. Bush ser então presidente, de a economia mundial ter entrado em crise, “de haver guerras por toda a parte e de tempestades a destruir as cidades”, contribuiu para o discurso que alimenta esta longa-metragem: não podemos deixar “perder a força de manter tudo unido”.

Procurem Abrigo estreia hoje nas salas de cinema portuguesas (Lisboa e Vila Nova de Gaia).

(Este texto adapta o artigo "Quando o medo chega, em quem podemos acreditar?" publicado no Diário de Notícias - 16 de maio de 2012)

quarta-feira, maio 16, 2012

Quando a América encontra o seu pesadelo e lhe dá um nome




Kevin — falemos dele. Olhamos para a imagem de cima (fotografia de cena da mais recente longa-metragem da escocesa Lynne Ramsay, We need to talk about Kevin) e recordamos o espetáculo de "matricídio" e horror que sustenta este filme. “Matricídio” porque, muito embora o fantasma esteja envolto num massacre da escola, a atenção está na relação de um filho (o já aluno outsider de Afterschool, Ezra Miller) contra a sua mãe (Tilda Swinton). É sobre ela que enfrentamos um caso de profunda disfuncionalidade e polarização levada, neste caso, à sua expressão mais radical. Como? Ao funcionar como uma espécie de sequela contemporânea de Rosemary’s Baby, de Roman Polanski — Kevin é esta “semente do diabo”, um psicopata e um animal mau porque assim nasceu; a mãe é apenas a vítima que o tentou aguentar. 

Por muito que Ramsay filme situações que desejam gerar conflito de identificação no espectador (exemplos: quando a personagem interpretada por Swinton dirige o carrinho de bebé para as obras na rua ou quando o magoa em criança), o filme não consegue sair desta bifurcação, sem dúvida ingénua e presente em muitos dos modelos televisivos, de bom (mãe) / mau (filho), justo / injusto, inocente / culpado. Mas a disfunção é também metafórica, como se quisesse remeter a um confronto entre uma América sem fulgor e os seus filhos (os que passaram por Columbine, a escola de Elephant ou mesmo de Afterschool) — mas um confronto que não passa pela compreensão ou pela instalação da dúvida (caso do filme-mestre de Gus Van Sant), mas antes por uma resposta que tem tudo de simplificador e de confortável (há uma génese patológica e diabólica nestas mentes conturbadas…) 

Esta história de monstros (interessante é a escolha de Swinton e Miller: como dois extraterrestres se apercebessem de que são familiares) encontra uma correspondência formal também ela absolutamente redutora. Falamos da utilização exaustiva do dispositivo do flashback, da câmara que desfoca e volta a focar o enquadramento por razão nenhuma ou da apropriação simbólica do vermelho (como na cena de abertura, na Tomatina espanhola). Sobre esta última, Ramsay tenta, primeiro, fazer uma relação, que se mostra rebuscada, com as imagens de sangue e de carnificina e, segundo, fazer colagens inúteis de outras referências, caso de Andy Warhol (na cena de supermercado). Acabam por ser na verdade citações irrelevantes e que desmascaram a voz do filme, vaidoso na sua realidade hiperbolizada. 

É contudo curioso que um filme, que se esperava perturbante, o seja precisamente por razões que não eram pretendidas. Sustentado por um discurso pobre e maniqueísta, não parece que se tenha querido falar muito sobre Kevin.