quarta-feira, fevereiro 16, 2011

Grande notícia

Ontem estreou, no Festival Internacional de Cinema de Berlim, o último (em todos os sentidos, já que o realizador anunciou que deixará de trabalhar em cinema, infelizmente) filme de Béla Tarr: O Cavalo de Turim. No Facebook, Paulo Soares questionou a Midas Filmes quando à sua distribuição e esta foi a resposta que recebeu:


Por outro lado, o crítico de cinema do Público/Ípsilon Jorge Mourinha, acabou de publicar a sua opinião sobre o filme, que passo a transcrever:


«O fim do mundo na nossa casa habitual num dia de tempestade» 
O último filme do mestre húngaro Béla Tarr, "The Turin Horse", é uma experiência sem paralelo - para o bem e para o mal

Vamos pôr a coisa assim: não houve outro filme na competição de Berlim este ano tão condenado a dividir – crítica, público, opiniões. Que "The Turin Horse" esteja a concurso em Berlim já é de si extraordinário; que este filme sequer exista é prova que, afinal, ainda é possível existir espaço para objectos longe de unânimes, que desafiam todas e quaisquer convenções.

E dizer que "The Turin Horse" as desafia não chega. O formalismo brutal, irredutível, do cineasta húngaro Béla Tarr tornou um pequeno contingente de colegas cineastas e críticos mundiais devotos prontos a tudo para o seguirem (Gus van Sant que o diga, que o tem citado em jeito de homenagem em fitas como "Gerry" ou "Últimos Dias"). Mas arrumou-o também na gaveta dos autores radicais que, pela própria natureza intransigente do que fazem, nunca chegarão às massas ("Sátantángo", considerado a sua obra máxima, dura sete horas e meia; em Portugal, "The Turin Horse" será a sua primeira estreia em sala, dos anteriores só "O Homem de Londres", fita atípica de 2007, chegou ao DVD).

Tarr não é para quem quer. Nem sequer para quem pode. E só para alguns – a par de autores lusos como João César Monteiro ou Pedro Costa, de radicais europeus como Jean-Luc Godard ou Jean-Claude Brisseau, mas levando esse radicalismo a um limite insustentável de austeridade e escuridão, Tarr é um daqueles visionários que ou se pegam ou se largam, mas que nunca nos deixam indiferentes.

Na primeira de duas projecções de imprensa de "The Turin Horse", na noite de segunda-feira, metade da sala foi saindo ao longo de duas horas e meia de projecção. A outra metade deixou-se ficar sentada quando o filme acabou, incerta sobre aplaudir ou vaiar (escassos exemplos de ambos foram ouvidos; um crítico italiano soltou um"bravo! Grazie!" sentido).

Sem meias palavras, "The Turin Horse" é um filme sobre a morte. O testamento de um cineasta que diz ser esta a sua última obra e estar cansado de lutar para montar os seus filmes; a depuração do seu estilo minimalista composto de longuíssimos planos-sequência de câmara fluida, rodados a preto e branco — apenas duas personagens, um único cenário, uma única peça musical repetida na banda-sonora, escassos diálogos.

"The Turin Horse" vai buscar o título ao acontecimento que terá despoletado o colapso nervoso de Friedrich Nietzsche – o chicotear de um cavalo por um cocheiro de Turim – mas descarta esse "fait-divers" na narração de abertura. As duas horas e meia que se seguem contam o fim do mundo visto pelos olhos de um cocheiro e da sua filha que habitam uma província isolada, que se agarram aos seus rituais quotidianos em nome de uma sobrevivência tão vã como desesperada, enquanto lá fora o mundo vai, literalmente, desaparecendo.

Sim, é verdade: nada, realmente, acontece em "The Turin Horse". E, no entanto, nesse enorme nada em direcção ao nada, o simples método de Tarr - a repetição, a insistência - constrói uma tensão, uma angústia, um mal-estar surdo que não só nunca nos abandona como cria um crescendo quase insustentável, literalmente arrastando-nos para um exercício terminal de claustrofobia que nos confronta com o vazio, com o absoluto, com o fim de tudo.

Gostar ou não gostar de "The Turin Horse" é passar ao lado do que faz o cinema de Béla Tarr – a simples experiência de o ver (diríamos: de o suportar) num grande écrã. É uma simples tabuleta à entrada do caminho que leva ao coração das trevas: “daqui para a frente há monstros”. Ame-se, odeie-se (e não há outra maneira de se olhar para Béla Tarr que não seja assim, absoluta), daqui ninguém sai ileso.

O aviso está feito. Cada um que se aventure por sua conta e risco.

terça-feira, fevereiro 15, 2011

Sobre a definição de arte, a discussão que a envolve e a urgente sublevação das mesmas

Longe de mim ter credibilidade suficiente para ser levado a sério neste tipo de discussões, mas não consegui deixar de experimentar dois sentimentos que têm vindo a surgir, não com pouca frequência aqui na blogosfera e sobretudo a partir do momento em que comecei a tirar uma licenciatura em cinema, que são o sentimento de confusão, quanto à definição de arte, e, por consequência, o de revolta, perante as respostas que tenho lido, seja dos «profissionais» da Estética (Kant ou Goodman são bons exemplos) como daqueles que aqui discutem.

Para mim, a discussão quanto à questão «o que é Arte?» (ou «quando é Arte?») foi levada, total e irreversivelmente, à exaustão, sobretudo a partir da fase em que nos encontramos, o chamado pós-modernismo. Quando passamos a considerar tudo o que existe «arte», então há uma perda completa de critérios. Por outro lado, quando usamos um rol complexo de referências como: «se é Arte, tem função simbólica»; «se é Arte, não é constituído de artifício»; «se é Arte, é original»; «se é Arte, é uma expressão individual dos sentimentos do homem»; «se é Arte, provoca emoções»; «se é Arte, é passível de ser percepcionada por mais alguém que o próprio autor»; «se é Arte, é verdadeiro ou procura a verdade». E este é um termo curioso, «verdade», que Tarkovsky – um dos maiores e melhores mentirosos do Cinema (e também o meu preferido)! – muito prezou ao longo do seu trabalho, conceito sem dúvida diferente dos russos dos primórdios do cinema como Vertov, mas que apenas tinha uma função legítima (ainda que ilusória) com ele (como comprovamos com o seu livro belíssimo, «Esculpir o Tempo»), e poucos outros. Bom, para mim, «arte» e «verdade» (assim entendida), termos que até agora dei muito uso nos meus textos e argumentos no que concerne estas querelas, passaram a algo de vazio, inútil. Se a arte é tudo, então para mim a arte não existe; e se a arte é apenas uma forma de contar histórias, então para mim a arte não existe; se a arte tem que ser agradável ao público, então para mim a arte não existe; se a arte tem que ser a busca pela verdade, então para mim a arte não existe. Sendo-vos sincero, para mim esta discussão deixou há muito de ter fundamento, visto de fora é risível a disputa entre forças (eu naveguei entre várias), e são tantas que nem pelos meus dedos posso contar.

Antes de «arte», preferirei chamar «expressão/ões», ou «formas de expressão». E há a cinematográfica, a musical, literária, etc; as que têm o intuito de comunicar, e as que se mantêm na sua individualidade. Nesta sociedade que corre demasiado rápido, e que apresenta derivadas e cada vez mais tecnologias, não me posso dar ao luxo e desprazer de me manter nesta discussão milenar e, actualmente, anacrónica. Esta definição globalizante, por exemplo, do cinema, não impõe que cineastas como Aronofsky, Nolan, Almodóvar, Pedro Costa, Spielberg, Tarkovsky e a realizadora «por encomenda» do «Crepúsculo» estejam no mesmo patamar, evidentemente que não. Aqui, então, entramos na zona dos critérios, que cada um criará como mais lhe convier (e aqui ressalto que não existe uma questão de «justiça», porque não há, simplesmente, como legitimar os meus critérios e a minha cultura como valendo mais que a de um cinéfilo simplório que se contenta com filmes recheados de explosões), e entramos noutro tipo de discussões: «por que razão acho que este filme é mau/bom?». Para mim, por exemplo, um filme é tão melhor quantas mais qualidades eu encontrar nele, ainda que, por mais que as tenha, não me possa identificar em absoluto. E eu ligo aos filmes que me fazem crescer interiormente e nos quais o «modus operandi» do(s) criador(es), as problemáticas e a sua existência como um todo me digam tudo e mais alguma coisa, que acrescentem algo a mim, como sou e me envolvo no mundo que me rodeia. Mas eu sou eu (não há ninguém igual a mim, felizmente), e haverá, certamente, pessoas que não se identifiquem com este, à falta de melhor palavra, critério.

Isto para evidenciar como o argumento «não é arte» é inútil e absurdo, tal como a discussão que o procede, e para me demonstrar descontente com tanta ideia preconcebida que, sustentada na «Arte», surge. Pois eu digo que é momento de ultrapassar isso, com grave urgência. Se os filmes servem para dividir opiniões, então é altura de falarmos sobre eles. É nestas alturas que nos descobrimos melhor – e ao outro também.

quarta-feira, fevereiro 09, 2011

As raízes do colectivo social no indivíduo, segundo Dovzhenko e Tarkovsky


O cinema mostrou ser, desde o início, um pródigo instrumento que acompanha e transpõe a vida dos povos, os sentimentos e as questões que vão definindo as épocas em que se inscrevem e as ocorrências que as motivam. De igual forma, parece caber ao cineasta, que se interessa por explorar a acção de um só indivíduo no devir do contexto social envolvente ou, pelo contrário, a força de um grupo sob o sujeito que o constitui, ter que se preocupar com a visão que pretende fazer-se sentir no público, quanto mais não seja porque o filme é, em si, um objecto de influência do pensamento da audiência que o assiste. Partindo deste pressuposto, podemos atentar, muito em específico, o ambiente que a União Soviética viveu entre a sua instituição e o seu encaminhamento para um inevitável fim, e da forma como dois singulares cineastas ultrapassaram a imposição ideológica propagandística característica de muita da produção fílmica entretanto distribuída e exibida, e criaram, com uma imparável e invulgar energia lírica, duas obras-primas do cinema da URSS. Referimo-nos, evidentemente, a Aleksandr Dovzhenko, com o seu perfeito Zemlya (1930), e a Andrei Tarkovsky, realizador do portentoso Andrei Rublev (1966). Embora se analise os acontecimentos que determinaram o primeiro desenvolvimento do cinema russo e a sua transição para a lógica das Repúblicas Socialistas, o objectivo fulcral, que percorrerá o restante trabalho, será tentar descobrir de que forma estes dois contribuíram para alargar os horizontes do cinema em termos de retrato do indivíduo como sugestão do meio colectivo onde se insere, e reflectirmos a maneira como eles mesmos, Dovzhenko e Tarkovsky, protagonizaram essa força privada transformadora de mentalidades e do próprio cinema, atentando, para isso, à influência contemporânea pela qual as reminiscências da sua poesia cinematográfica e pensamento são responsáveis.

Do nascimento do cinema russo ao surgimento do modelo soviético

A questão que se impõe no objectivo, já delineado, de compreender como se consegue estabelecer, pela primeira vez, o indivíduo como metáfora da sociedade que o envolve, tem como primeira solução uma breve investigação do contexto histórico que faz insurgir um cinema, inédito e singular, no mundo, localizado na edificada URSS.
Cometeríamos, no entanto, uma grave agressão à fidelidade da História do nascimento do cinema na União Soviética caso não procedêssemos a um retorno às suas origens, estabelecidas em pleno Império Russo, antes do decisivo ano de 1917. O cinema viu pela primeira vez a Rússia em 1896 numa altura em que esta atravessa uma profunda crise política, com estirpes na reforma liberal camponesa de 1861 e na consequente transição económica do feudalismo para o capitalismo. Em Maio deste ano, o cinema surge ao público, primeiramente, através das projecções que os irmãos Lumière preparam em Moscovo e São Petersburgo e, depois, da rodagem que o seu operador de câmara, Camille Cerf, realiza no Kremlin, no momento do coroamento do último czar do país, Nicolau II.
Dos filmes que procederam este primeiro e interessante acontecimento importa saber que havia uma particular preferência pela adaptação de escritores conterrâneos e pelo retrato de episódios históricos do país. Em 1914, a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial trouxe importantes consequências socioculturais, porquanto a urgência de uma consciência de forte nacionalismo e de anti-germanismo carregava consigo a necessidade da produção de filmes que o impulsionassem (o aumento comprovou-se, efectivamente, em 1916, onde se produziram nada menos que 499 filmes). Todavia, este admirável esforço não impediu que se propagassem sentimentos de forte revolta no povo russo, que, descontente, se deparava perante um país atrasado e economicamente devastado, ainda recordado da terrífica e fracassada revolução ocorrida em 1905.
Conseguimos, assim, compreender a razão pela qual se sucedeu a Revolução Russa em 1917, na qual, em Fevereiro e numa primeira fase, é posto termo à velha autocracia, e, em Outubro, a facção bolchevique, comandada por Lenine e Trotsky, do Partido Operário Social Democrata Russo inicia uma série de eventos com o objectivo de finalmente instaurar a sociedade socialista, considerando as ideias de Marx e Engels, apresentadas no passado século XIX. Esta é uma altura em que a filmografia russa dá os últimos passos (o último filme russo, O Pai Sérgio original de Tolstoi, é exibido, curiosamente, um ano depois), apresentando inúmeras obras com temas anti-czaristas e se prepara para dar a reviravolta que erigirá um novo tipo de cinema e verdadeiramente soviético.
Em 1922, Lenine, após nacionalizar o cinema do antigo sistema político (precisamente no dia 27 de Agosto de 1919) e ver o país e as suas ambições atravessarem duras contrariedades (a Guerra Civil, entre 1918 a 1922 e exércitos vermelho, revolucionários, e branco, czaristas; a fase do «comunismo de guerra», onde a Rússia se dirige por um único partido e se dá por abolida a propriedade privada; a crise económica que eclode em 1920 e que é solvida por um recuo táctico nalguns sectores para um orientado capitalismo), ficará, relativamente ao cinema, célebre por declarar que «[d]e todas as artes, o cinema é para nós [soviéticos] a mais importante» (Sadoul, 1983b: 225). Esta marcante afirmação justifica, em grande medida, como o apreço e a valorização governamental das potencialidades que os filmes traziam para a política resultaram na evolução substancial destes, ponderando tanto a quantidade como a qualidade dos mesmos.
Próximo do fascínio do povo política e economicamente restaurado, o cinema, nesta altura, que já via criado, em Moscovo, o Instituto de Cinema (VGIK) por Vladmir Gardin, de onde começavam a surgir as primeiras revelações, alia-se a um objectivo vincado da III Internacional Comunista, na qual havia a preocupação de se promover o triunfo do socialismo, a união do operariado além-fronteiras e o molde marxista-leninista que apresentava a URSS.
Emerge, pois, um compromisso político que João Mário Grilo nos diz que este tipo «revolucionário» de cinema leva, então, a cabo, contribuindo para a «[a]gitação, desmistificação, propaganda, [e] educação» (Grilo, 2010: 75) no país, que não deixa de possibilitar inúmeras experiências e consideráveis considerações sobre a estética e prática cinematográfica (que se aproxima do formalismo pré-soviético), primeiramente encenadas por grupos de vanguarda, como são o caso do Laboratório Experimental, de Kulechov, e dos Cine-Olho, de Dziga Vértov. Quanto ao primeiro, podemos assinalar uma inovação, depois da montagem paralela do norte-americano D. W. Griffith: uma experiência na qual deixou para a posterioridade o chamado «efeito Kulechov»; quanto ao segundo, reconhecemos o seu relevo nos documentários, actualidades e teoria sobre os Cine-Olho, nos quais elevou, para além da montagem, um tipo espontâneo e de total realismo na captação da vida exterior à câmara.
Apesar da clara importância destes dois, que se destacavam entre outros seus contemporâneos, podemos apontar ainda outros dois: Serguei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin, que partilharam uma reputação que viajou o território para além das Repúblicas Socialistas. O metódico e distinto Eisenstein, que inaugura a chamada «montagem de atracções», isto é, disposta pelo artifício, realiza notáveis filmes, sensíveis às questões político-sociais mais modernas, como Statchka (1924) ou Bronenosets Potiomkin (1925), onde, a partir da noção referida, fazem antever um outro sentido à imagem produzida, ligada a uma ideia que deve ser percepcionada pelo espectador no seguimento de toda uma construção. Pudovkin, por seu lado, «descendente» de Kulechov, realiza obras admiráveis como Mat (1926) e serve-se, também, da montagem para solucionar os problemas que traziam as necessidades que a sua visão impunha. Interessa-nos, particularmente, considerar aquilo que mais diferenciava estes dois singulares cineastas: enquanto o primeiro mostrava a evidente preocupação de montar a sua obra atentando a apoteose do seu herói colectivo (as massas), o segundo usava a montagem para se aproximar e reconhecer a destreza dos seus indivíduos protagonistas.
Por fim, será pertinente, após termos de especificado o trabalho dos primeiros grandes protagonistas do cinema soviético, recordar como a revolução teve o centralismo democrático como conceito assente, ideia de Lenine que introduz na prática da seguida filosofia marxista. Podemos considerar, pela primeira vez, que o poder, para além de resultar da luta do proletariado contra a burguesia como preconizado pelo Manifesto do Partido Comunista, é, agora, consequência da existência do proletário por si mesmo, pois todo o poder passa a ser oriundo, nesta particular perspectiva, da base (por seu lado organizada, no contexto da URSS, não só pelo operário como também pelos soldados, marinheiros e camponeses).
O que nos importa ressaltar é a condição do povo igualada à de qualquer outra camada social anteriormente estabelecida (mas doravante extinta), como a burguesia, ou seja, o esforço para atingir o comunismo, onde, por um lado, triunfaria a igualdade entre cada indivíduo mas, por outro, se procederia à sua uniformização, transformando-o num só e despersonalizado ser social. A gravidade de uma conclusão desta espécie parecerá sem dúvida tão assustadoramente real quanto absurdamente inaceitável, mas não parece ser a consequência última de um estado social assim realizado o ponto de interesse de um realizador socialista como Eisenstein, que, conquanto atenda aos efeitos da revolução, se preocupa em retratar e impelir visualmente o descontentamento e o inconformismo com aquilo que não vá de encontro com as ideias da nação, a revolta e a luta. Sem incorrer a inconsequentes generalizações, podemos perceber que, nitidamente, não é o comunismo e sua consagração que lhe interessa nos seus filmes que produzirá o governo soviético, mas o ponto de início, o caminho percorrido e o processo de chegada pelas massas.
Parece imperar a questão sobre a legitimidade desde papel, que o soviético, individualmente considerado, se obriga a desempenhar quando mergulha num socialismo revolucionário em direcção a uma definida, ainda que distante, esperança que o sonho comunista se concretize. Como deverá ser, por isto, retratado no cinema o indivíduo, misturado no grupo onde interage e é agente, activo e passivo, do devir social que ocorre e o afecta, directa ou indirectamente: fazendo com perca a sua identidade e modelá-lo na imagem de uma massa, ou aproximando-se da sua pessoalidade e correndo o risco de o isolar da imagem colectiva tão importante para o ideário da região? Até que ponto o retrato da existência de um indivíduo deve reduzir-se em atravessar a política que conquista ou da qual é subjugado? E para que futuro se conduz a vida deste novo homem do socialismo? Estas são as fulcrais dúvidas que põem em perspectiva a urgência do aparecimento de novas visões e revelações cinematográficas no sistema da URSS.

A revelação de Dovzhenko no cinema soviético

Depois de se tornar, no dia 25 de Dezembro de 1917, uma República Socialista Soviética dos quinze estados integrantes da União Soviética, a Ucrânia marcou a sua História com uma guerra civil que encontrou paralelo com os anos em que ocorreu o processo da implantação do marxismo-leninismo nos restantes estados socialistas. Tratou-se de uma tentativa de subversão da já proclamada via comunista para uma relativa à sua variação anárquica, mas que terminou, em 1921, com a vitória do marxismo-leninismo, pelo auxílio do Exército Vermelho. Até o ano de 1925, a RSS Ucrânia, ideologicamente dividida, via no cinema, aglutinador de mentalidades como demonstrava o sucesso da sua função de propaganda, 7% do lucro cinematográfico de toda a União Soviética, e que aumentou, aparatosamente, para 39%, em 1927, altura em que a região já se habituava a ler a Revista da Cinematografia Ucraniana, publicação da Direcção de Fotografia e Cinema da Ucrânia (VUFKU), e se invejava por ser a segunda maior exportadora de filmes, seguida dos Estados Unidos da América, para a Alemanha. Entretanto longe do seu país, mas prestando serviço ao Partido Comunista do qual se filiou como secretário da embaixada soviética, na Polónia e em Berlim, encontramos Aleksandr Petrovych Dovzhenko, que se demarcará, no futuro, como um dos realizadores soviéticos com maior importância, quando este regressa ao país de origem e vê no cinema a sua última grande paixão.
Nascido no dia 11 de Setembro de 1894, entre uma família cossaca, como o sétimo dos catorze filhos, o realizador contactou de perto o sentimento de luto, que trespassa toda a sua filmografia, sete vezes até a altura em que comemora o décimo primeiro aniversário, fazendo-o ser o mais velho e carregar uma responsabilidade certamente indesejada. Estimulado pelo avô para a profissão de professor, Dovzhenko assim se tornou com apenas dezanove anos, isolando-se das obrigações militares e da Revolução Soviética devido a problemas cardiológicos. O seu retorno, em 1923, para Carcóvia fê-lo ocupar-se com desenhos e ilustrações literárias e, três anos depois, dedica-se inteiramente à actividade fílmica em Odessa, quando co-realiza e escreve o seu primeiro filme, com 32 anos, a comédia Iágodka Liudvî. Em 1927, cria Súmka Dipkuriéra, antes de verdadeiramente se estrear como uma «nova força» (Sadoul, 1983b: 232), como não tardaram em considerá-lo Eisenstein e Pudóvkin, com Zvenígora, épico que revela ao realizador as suas possibilidades e que percorre, de maneira alegórica, vários episódios da História do país, e que se evidencia como o primeiro capítulo da após encarada «trilogia da Ucrânia», composta por três extraordinárias obras do cinema mudo. O segundo filme desta trilogia, Arsenál (1929), é uma película na qual a mestria do realizador se torna patente na sensibilidade com que monta os planos da história que filma e os temas que são descritos. Debruçando-se sobre os trágicos acontecimentos que decorreram na rebelião dos operários bolcheviques na fábrica onde trabalham, a partir do dia 28 de Janeiro de 1918, portanto, em plena guerra civil, Aleksandr serve-se não poucas vezes de imagens com grande impacto emocional e repletas de metáforas com o objectivo de denunciar os absurdos próprios da guerra e revelar o desejo de apaziguamento e paz sociais. A título de exemplo, sirvamo-nos do exemplo que Georges Sadoul oferece na sua História do Cinema Mundial. Aos 22 minutos do filme, o realizador dá-nos a visão desgraçada de um indivíduo, que, após um frenético desastre ferroviário e em redor de absoluta destruição, diz: «serei maquinista», que traduz a vontade deste de se renovar perante o peso irrevogável da morte e do fim, de refazer e unir a sociedade que ainda existe. Toda esta forma única de sentir viria a ser comparada com o romancista russo Nikolai Gogol.
Três anos depois de os kulaks, pequenos proprietários do campo que haviam aproveitado a Nova Política Económica instaurada por Lenine (que, em 1924, morrera sem poder avaliar as positivas consequências do seu programa económico), terem reposto e ultrapassado a produtividade que se verificava antes da Primeira Grande Guerra, Dovzhenko cria a terceira parte do seu hino à RSS Ucrânia: Zemlya, internacionalmente distribuído pela tradução literal Earth / A Terra. O evento supracitado não tem insignificante existência na criação deste último capítulo, muito pelo contrário. O realizador soviético, aproveitando a já sólida reputação que construiu num tão reduzido espaço de tempo, parece servir-se das medidas que Estaline entretanto dita na economia da URSS, relativas à colectivização dos campos e que põem termo à existência daqueles que considerava serem «capitalistas rurais», para tecer uma subtil crítica àqueles que se opunham à economia planificada e a homenagear a força da união do povo camponês ucraniano. Este foi um aspecto tão duramente criticado como mal entendido, já que o filme foi lançado numa inconveniente época por duas razões: primeiro, porque se anunciava, na sociedade, a discórdia dos kulaks à nacionalização estalinista, que originou numa violenta repressão, da qual resultaram milhões de deportados e mortos; segundo, porque a celebração da tecnologia no filme (como veremos de seguida), anteviu a divisão da propriedade agrária (em kolkhoses e sovkhoses), tendo em vista o trabalho dos camponeses aliado a uma forte mecanização do sector. Assim, ainda que claramente próximo de algum do ideário socialista, acusaram Zemlya, quando lançado, de ser contra-revolucionário e derrotista, encaminhando-o para um cenário soviético de completa ausência de liberdade ideológica, que outros cineastas, como Eisenstein ou Pudovkin, conhecerão, infelizmente, bem.
O filme abre, é intermediado e termina com planos muito gerais da Natureza em movimento, como o campo sobre um grande céu enevoado ou a seara que serpenteia ao ritmo do vento. Todas as imagens, cuja minuciosa composição fazem com que se entenda um detalhado perfeccionismo na «mise-en-scène» com a mão de Dovzhenko, contêm, em si, não só um forte embate visual, como também um sentido metafórico facilmente assimilável. Referimo-nos, por exemplo, aos diversos planos que contêm girassóis, instituída como flor nacional da Ucrânia, e como o realizador os conjuga com o primeiro sucedimento da obra: a morte de um velho na família central da narrativa, Semion. Antes de falecer, pede algo para comer, trinca em felicidade pueril uma maçã (fruto que o rodeia às dezenas no leito da sua morte), olhando para as crianças que ao seu lado se divertem, e despede-se confirmando aos restantes membros do grupo, em contentamento sereno, que jamais viverá, olhando para cima. O realizador aqui toma a decisão de cortar o plano, mais uma vez, para os girassóis caídos, como se encontrassem em contra-campo e o observassem como seguem o Sol, e que aqui adquire uma dimensão que transcende o simples símbolo da pátria: esta transição significa, tão-somente, o reconhecimento do colectivo que abarcou a sua simples existência de camponês (Petro, seu companheiro, descreve com fervor que «durante 75 anos, ele arou a terra com gado» e que, por isso, deve ser agraciado com «uma medalha»).
A história prossegue acompanhando a determinação do protagonista, Vasyl, «que está à frente do comité do Partido na aldeia» (Peña, 2003: 86), e dos companheiros camponeses, que mantêm uma tensão evidente com o kulak que controla a produção dos mesmos e que recusa a venda da área agrária desejada, em comprar um tractor para a comunidade, com a esperança assente em acelerar a produtividade e transformar o campo. Apesar da apreensão do pai, que não compreende as suas ambições e se redime à sua simples condição de camponês, o tractor chega como uma alucinante novidade, que despoleta em todos uma grande curiosidade e alegria (a montagem desta chegada lembra o formalismo patente nos filmes de Eisenstein, que, por sua vez, criticou negativamente a arquitectada em Zemlya). «Iremos prosperar com os tractores», grita Vasyl, em puro contentamento, e, voltando-se para o pai, antevendo o triunfo da tecnologia sobre séculos de humanização ligada ao trabalho da terra, pede-lhe: «Sê livre dessa pá!». Nessa noite, Dovzhenko filma a felicidade extrema vivida por Vasyl, materializada numa dança demorada sobre a lua, concluindo-a num assassínio seco e brutal pelo filho do kulak. O assassínio é assistido unicamente pelo espectador e por um cavalo que, quieto e impotente, nada faz senão apreciar o morto.
A última parte corresponde ao funeral de Vasyl, onde o pai, após ter requerido a presença de toda a aldeia, pede que cante em memória da grande actividade do filho, e esse reconhecimento, colectivo e de grandiosa força, ultrapassa qualquer outro, como o da religião católica. É um último capítulo imbuído de uma força icónica muito própria, entrecortando o funeral com o sofrimento da mulher de Vasyl e com as primeiras dores do parto de uma mulher. A chuva da estação mergulha a comunidade num estado de renovação, e assim se fecha uma obra-prima. De tão original que mostrou ser, Zemlya virá a inspirar e a motivar outros jovens cineastas a criarem o seu próprio caminho e a sua própria perspectiva de como o indivíduo age em sociedade.

Tarkovsky em tempos de Guerra Fria

Dois anos depois da estreia de Zemlya, nascia Andrei Arsenyevich Tarkovsky, nascido, no dia 4 de Abril, em Zavrazhye, filho do poeta e tradutor Arseni Alexandrovich Tarkovsky, espectro do lirismo da sua filmografia, e de Maria Ivanova Vishnyakova, licenciada no Instituto de Literatura Máximo Gorki, a quem dedica o filme Nostalghia (1983). Passando uma juventude típica mas inspiradora, marcada pela ausência do pai em 1937, onde viria a voluntariar-se para o exército soviético em 1941, Andrei muda-se, com a mãe e irmã Marina, para Moscovo. Durante a Segunda Grande Guerra vive temporariamente com a avó materna em Yuryevets, mudando-se de novo para Moscovo em 1943, onde regressa aos estudos na antiga Escola de Moscovo nº 554 e aprende a tocar piano. Do Outono de 1947 à Primavera de 1948 passa o seu tempo no hospital por causa da tuberculose sofrida, tempo a que se dedicará em analisar no filme Zerkalo (1975). Vive-se no mundo os tempos da Guerra Fria entre o bloco oriental, dominado pela URSS, e o bloco ocidental, liderado pelos EUA. De 1951 a 52 estuda a língua árabe, acabando por não concluir o curso e por realizar uma expedição pelo rio Kureikye até 1954. É, mais tarde, na taiga russa, que Tarkovsky decide estudar cinema, sendo admitido no Instituto Cinematográfico da Federação Russa, VGIK, em 1956. Lá, conhece Irma Raush, com quem casa em Abril de 1957. Finda uma época de forte repressão soviética, Nikita Khrushchev, que comandou a URSS, deu espaço para os jovens artistas conhecerem o trabalho exterior. Assim foi que Tarkovsky conheceu os filmes neo-realistas, da «nouvelle vague», Kurosawa, Buñuel, Bergman, Bresson e Mizoguchi, reforçando o ideal do cinema de autor. Em 1956, realiza o seu primeiro filme como estudante – Ubiytsy, uma adaptação de um conto de Ernest Hemingway –, em 1958 produz Segodnya uvolneniya ne budet e, em 1959, escreve o guião Concentrado. Conhece, neste ano, Andrei Konchalovsky, com quem escreve o guião Antárctica – Terra Distante e, mais tarde, Katok i Skripka, que realiza, em 1960, no seu final de curso, vencendo o primeiro prémio de um festival nova-iorquino para cinema estudantil, em 1961. Um ano mais tarde, realiza a sua primeira obra: Ivanovo Detstvo, calhando por receber o cobiçado Leão de Ouro, em Veneza, que coincide com o nascimento do seu primeiro filho, Arseny (ou Senka, como lhe chamava), no dia 30 de Setembro, que virá a tocar nos temas predilectos do resto da sua obra: a nostalgia de uma infância perdida, a interacção com a Natureza e a metafísica.
É em 1966 que, finalmente, é realizada o seu projecto mais ambicioso: Andrei Rublev, biografia de um dos maiores pintores russos de ícones, vividos no século XV. Influenciado por obras como O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, ou a abertura de 8 e ½ de Fellini (semelhante à do filme soviético), Tarkovsky impôs-se, antes de avançar para o «fresco cinematográfico», a rotina de observar Zemlya, no qual redescobria, a cada visualização, a razão de querer fazer cinema. Navegando entre a fé e a descrença, o pessimismo e o optimismo, o que é puro e o que é pecado, Tarkovsky «pinta» um quadro magistral da época anteriormente vivida, dividindo a narrativa num prólogo, sete capítulos e um epílogo. De todos, talvez o momento central de todo o filme seja a sequência em que uma criança, numa aldeia completamente destruída, tem depositado em si todo um destino, reduzido ao som de um retinir de um sino que acaba de construir. Se não for bem sucedida, será decapitada pelos presentes déspotas. Nada mais edificativo para demonstrar a importância do indivíduo no futuro de uma sociedade. O realizador soviético, que se afirmava contra a montagem de atracções assinalada por Eisenstein, antes de demonstrar a sua decisão, de fazer ou não o sino retinir, mostra que «[n]os momentos dramáticos culminantes, o cinema é incomparável por aproximar assim, através do jogo da montagem e do enquadramento, as dimensões mais distintas, do muito próximo ao muito longe, do muito pequeno ao cósmico e por unir o microcosmo ao macrocosmo» (Chion, : 28). Neste caso, Tarkovsky opta por tocar o sino, devolvendo o conforto eterno ao espectador e uma esperança renovada ao pintor de ícones, filmando de longe os cavalos que, na opinião do cineasta, simbolizavam a vida, muito à semelhança de como Dovzhenko captava a vida dos cavalos em Zemlya. Assim desvanece a penúltima parte do filme, que encontra paralelo com a primeira sequência (a do balão), como se quisesse reflectir sobre a Torre de Babel que o ser humano pretende edificar continuadamente, mas que não se compara ao exercício do indivíduo pela arte e pela sua fé, que Tarkovsky filma com minúcia na última parte do filme, que ganha finalmente cor, alento e transcendência.

A arte de dois indivíduos em prol do progresso e entendimento da humanidade

Os soviéticos, sensíveis e, não nos importemos de acrescentar, geniais Aleksandr Dovzhenko e Andrei Tarkovsky unem-se, para além de analogias que podemos apontar no estilo lírico de tratar a realidade social, num aspecto altamente singular, e que tem vindo a ser desconsiderado ao lado desta análise sobre a perspectiva de ambos sobre o indivíduo como imagem do colectivo. Aproveitando as palavras do Professor France Farago no seu ensaio A Arte, podemos introduzir estes dois cineastas no caminho de Andrei Rublev como verdadeiros «pintor[es] de ícones», porquanto transfiguram a sua ideia de criação «esculpi[ndo-a] no tempo» (Tarkovsky, 1998: 72) da imagem cinematográfica. São esses ícones, que são o mesmo que as chamarmos metáforas visuais, que transpõem a ideia do indivíduo sobre o meio social, por duas ímpares razões: primeiro, porque se debatem sobre dois tipos de utopias, e que fazem com que os protagonistas dos seus filmes a carregam e defendam face à dura colectividade, a do tipo comunista, no caso de Zemlya, e a religiosa, em Andrei Rublev; segundo, porque as próprias «pinturas» espelham o próprio exercício de cidadania de Dovzhenko e de Tarkovsky, o próprio exercício de arte que, embora ultrapasse uma intenção meramente política, corresponda a uma demarcação social incontestável e definitiva.
No caso de Dovzhenko, Zemlya anuncia, de forma lenta mas apaixonante, a universalidade dos temas sobre a aceitação da morte, da união familiar, em comunhão com a grandeza da Natureza, como base da vivência ideal, e, como obra poética, fechada e de estranha perfeição, mostra-se ao público contemporâneo como um filme datado com uma força sensual e panteísta que remete mais ao lirismo de um Alberto Caeiro que aos problemas apontados no ano da sua estreia pelos revolucionários comunistas. Dovzhenko enfrentou com a sua arte a incompreensão dos críticos, que severa e injustamente o julgaram, mas resistiu, porque se soube próximo da sua ideologia. Superficialmente percebido, é um pleno cântico ao ideário socialista pois, embora possamos servir-nos da morte do protagonista como um destino que se augura fatídico para o sonho do comunismo (que, efectivamente, comprovou o seu fim, muitos anos depois), compensamo-nos com duas informações que recebemos e que nos confortam: por um lado, vemos o protagonista a dançar sob a lua, antes de ser baleado, significando que este indivíduo, que sem dúvida que transformou o meio onde vivia num sentido, não importa se efémero, de melhoramento e positivo progresso, morreu pleno de felicidade; por outro lado, entendemos que a feitura deste ser humano não foi em vão, sendo reconhecida diante de todo o meio colectivo num funeral que canta a alegria da sua vida. Parece-nos que é precisamente o problema com que Dovzhenko se debate ao longo da sua filmografia: como viver e como fazer-se vivo depois da sua morte? A resposta reside em Zemlya, na sua partilha de existência e visão apolítica de solidariedade, união e amor sociais. É no cinema que encontra, por isso, a sua primeira forma de expressão, a maior em que pode expressar esses pequenos gestos de um espectro que se prepara para desaparecer e morrer na solidão, e na qual pode imprimir para a posterioridade os seus registos impressionistas da adorada RSS Ucrânia. Até o ano de 1956, onde exerce a actividade de realizador com pouca frequência, o realizador testemunhará os novos horrores de uma nova guerra mundial, tendo trabalhado como jornalista ao serviço do Exército Vermelho. Antes de falecer, vítima de um ataque cardíaco, será mentor de uma posterior grande revelação do cinema ucraniano: Sergei Parajanov, seu discípulo que vê partilhado o desejo de retorno ao «primitivismo» imagético, próximo da nação e da sua identidade (podemos citar o grandioso Tini Zabutykh Predkiv (1964) como exemplo desta aproximação, que David A. Cook crê ter «the archetypal pattern that outlasts and transcends individual identity» (Cook)). Apesar de ter sido agraciado com inúmeras considerações invejáveis, como ver Zemlya ter sido considerado um dos vinte melhores filmes de sempre, segundo uma comunidade de especialistas em 1957, a dúvida, quanto à morte de Dovzhenko, reside em sabermos se foi plena e rica como o protagonista que sentiu os últimos vislumbres de vida numa solitária dança ao luar ou se aproximou mais à figuração do seu medo: a existência do assassino do protagonista, que, desesperado pela atenção do povo que reconheceu os méritos do outro, enlouquece ao se acusar e tenta imitar os passos de dança da vítima, em vão. O realizador, ainda que com o clamor desta eterna preocupação, preocupa-se mais na purificação que a chuva, que encerra a sua obra-prima, pode trazer à vida, simbolizada nas maçãs amadurecidas, da população ucraniana, do povo soviético e, em máxima escala, do colectivo social de todo o mundo. A sua arte marca-se na influência e criações ulteriores, representada num dos maiores cineastas: Andrei Tarkovsky.
Quanto a este excepcional realizador socialista, parece partilhar com o seu ídolo supracitado o desejo de se eternizar na figura cinematográfica (há um curioso diálogo no início do filme onde se surpreendem com o protagonista, que pára para contemplar uma árvore, ao que este se justifica: «não sabes quando a vais voltar a ver». O cinema não tem, pois, este problema, tal como toda a arte que fica gravada para o futuro) mas, em Andrei Rublev, sem querer imergir nos preceitos comunistas. Volta-se, antes, para a utopia católica, séculos antes, perto do Renascimento que apreciava fervorosamente, e rejeitado em Zemlya, onde a religião está depositada num tempo que parece não estar lá (relembre-se a cena em que um padre tenta proceder ao funeral do protagonista e a furiosa resposta do pai: «Deus não existe. E tu também não»). Tarkovsky volta-se para o século XV como comprovasse a afirmação de Elie Faure: «[o] cinema apresenta efectivamente todas as características sociais que a arquitectura cristã da Idade Média (…) propôs à unanimidade das multidões» (Faure, 2010: 70). No entanto, e muito à semelhança dos revolucionários socialistas, o monge e pintor de ícones Andrei Rublev parece deambular na sociedade devastada moralmente à procura de a evangelizar, de a alterar o pensamento e de, nela, procurar a fé que lhe falta para espiritualizar a sua própria pintura. Tal como o próprio realizador, que se sente exilado da URSS (saindo, efectivamente, dela, antes de Nostalghia e Offret) que não o acolhe nem lhe dá quaisquer referências, o pintor, como «artista e pensador torna-se, então, o ideólogo e apologista do seu tempo, o catalisador de transformações predeterminadas» (Tarkovsky, 1998: 60). Assim se descobre, e se transmuta em apóstolo, quando filma as contrariedades de uma Rússia acabada e sem fé (relembro, no filme, o memorável desabafo: «[t]odas as tolices e vilanias já foram concebidas. Agora, nada mais se faz do que repeti-las. Todo volteia e roda nos mesmos circuitos. Se Cristo voltasse à Terra, seria de novo crucificado!»). O realizador, frustrado, encontra, no entanto, na arte um reformado trilho da religião e da ilustração, tal como Andrei Rublev nos seus ícones, e, retratando-o, sente a aproximação dos séculos compactados numa obra de arte. Citando uma das suas entrevistas, Tarkovsky diz-nos que «the idea of brotherhood, the unity of the human family will be the most important one for the film. Truly great art becomes more and more precious as time goes by. How many people's thoughts, emotions, and hopes must have impregnated Rublov's paintings over the centuries! I would like to transport those hopes to the screen», manifestando, pois, o seu apreço pela sociedade, pela arte e pelo indivíduo. Por fim, muito à semelhança do adorado Dovzhenko, Tarkovsky também vê na morte, para além da religião e da arte, a redenção última (em Offret, por se encontrar exilado e vítima de uma doença nos seus estádios finais, ele explora o tema com mais sinceridade) de todo o indivíduo e, consequentemente, de toda a humanidade.

Conclusão

Aleksandr Dovzhenko e Andrei Tarkovsky alcançam o objectivo de, com a sua filmografia, sobretudo com Zemlya e Andrei Rublev, as que mais se aproximam relativamente ao conflito, e união, entre o indivíduo e a sociedade, de transfigurarem na própria matéria-prima desse debate, que se verificará na realidade do sistema cultural repressivo que se vive na URSS. Felizmente, o seu reconhecimento último chega a verificar-se, ainda que, inevitavelmente, na posterioridade, quer na preservação da sua obra fílmica ou na influência, em termos estilísticos e temáticos, na produção cinematográfica contemporânea, da qual podemos citar como exemplo o cineasta húngaro Béla Tarr (autor do épico Sátántangó (1994), no qual reflecte, a partir da contemplação lenta, quase ascética como a própria dos cineastas acima enunciados, de um microcosmos sem destino, como a ausência de uma política definida, neste caso a do já familiarizado comunismo, pode suscitar no indivíduo a sua influência mais negativa). Por fim, deve restar-nos admitir que o poder dos dois filmes e realizadores aqui investigados se mantêm para o leitor um incessante enigma, e que, para que a sua influência individual se continue a sentir, ainda mais totalmente, no colectivo social de que o espectador fará sempre parte, é então fundamental que este se predisponha a descobri-los e a reflectir sobre a sua condição de agente activo de transformação social, para estabelecer um contínuo círculo de influências que deve seguir o caminho de progresso e união que Dovzhenko e Tarkovsky desejaram com as suas obras-primas.

Bibliografia citada
            CHION, Michel (2007), – Andrei Tarkovsky, Madrid: Edições Cahiers du Cinéma, 2008;
            COOK, David A. (1996), – A History of Narrative Film, Londres: W. W. Norton & Company, ISBN 978-0393968194
            FARAGO, France (1998), A – A Arte, Porto: Porto Editora, 2002, ISBN 972-0-41023-X;
            FAURE, Elie (1963), – Função do Cinema e das Outras Artes, Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2010, ISBN 978-989-8285-12-6;
            GRILO, João Mário (2007), – As Lições do Cinema, Lisboa: Edições Colibri / Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2010, ISBN 978-972-772-705-6;
            SADOUL, Georges (1983), – História do Cinema Mundial, Lisboa;
            TARKOVSKY, Andrei (1990), – Esculpir o Tempo, São Paulo: Martins Fontes Editora, ISBN 85-336-0882-9.