Se pensarmos numa figura no panorama do cinema moderno que represente com fidelidade o fascínio pelas pessoas e as suas intrigantes contradições não será de admirar que nos ocorra de imediato o nome de John Cassavetes (9 de dezembro de 1929 – 3 de fevereiro de 1989), cineasta que redefiniu não apenas o território do cinema independente norte-americano como também, talvez sobretudo, o modo de interpretar para cinema.
Também ele próprio ator, John, filho de pais imigrantes gregos (Katherine Cassavetes – que marca presença em duas das suas longas-metragens: Tempo de Amar (de 1971, Minnie and Moskowitz no seu título original) e Uma Mulher Sob Influência (1974) – e Nicholas John Cassavetes) participou em diversos títulos, “longas” e séries para o pequeno ecrã. Apesar do seu profícua obra como realizador, que começa em 1959 com o lançamento do seu primeiro filme (Sombras, ou Shadows), Cassavetes nunca abandonou o trabalho estritamente performativo, marcando presença em títulos como Fourteen Hours, filme de 1951 assinado por Henry Hathaway (e no qual Cassavetes participa num papel que não foi creditado), o certamente mais reconhecível Rosemary's Baby (1968), de Roman Polanski e alguma parte da sua própria filmografia como realizador: Too Late Blues (1961), A Child is Waiting (63), Husbands (70), o supracitado Minnie and Moskowitz, Opening Night (78) e Love Streams (filme de 1984 rodado fundamentalmente... na sua própria casa).
Pormenor curioso, pois, dado o facto de Cassavetes se ter distinguido de todas as outras produções com a expressiva singularidade das interpretações dos atores nos seus filmes — elemento que, na verdade, servirá de ponto de partida para uma tentativa de descrição e reflexão sobre como o trabalho performativo nos filmes de Cassavetes e a forma como essas interpretações são filmadas traduzem a vontade do realizador em se aproximar do real e, por conseguinte, da sua ideia de verdade.
As ruínas do cinema de John Cassavetes
No princípio dos anos 50, desinteressado pela visão de que o seu futuro pudesse passar pela vida universitária, John Cassavetes, que assumiu ter sido influenciado pelos seus amigos (“Ei, John, acabámos de nos inscrever na American Academy of Dramatic Arts para nos tornarmos atores. Vem connosco, a escola está cheia de raparigas!”, ter-lhe-ão dito), estudou na prestigiada instituição, que viria a ser determinante no seu percurso ao ter-lhe apresentado os métodos do Actors Studio (associação fundada em Nova Iorque por Cheryl Crawford, Elia Kazan e Robert Lewis em 1947 e da qual ele é, mais tarde e numa audição, rejeitado). Os ensinamentos do professor Lee Strasberg terão sido particularmente relevantes para o percurso do futuro realizador, cuja motivação para a aproximação do intérprete com a personagem encarnada serviria para a direção de atores no seu trabalho. Depois de uma etapa na Brodway (onde conhece a futura mulher Gena Rowlands), Cassavetes passa, primeiro, do teatro para a televisão (onde ganha grande experiência) e, depois, para o cinema.
Entretanto, em Nova Iorque, quando cria com o amigo Bert Lane o Variety Arts Studio (numas águas-furtadas alugadas na Rua 48), Cassavetes, ao lado de 19 jovens, começa por partilhar os seus ensinamentos sobre métodos de interpretação e, após se ter apercebido das suas possibilidades artísticas, decide partir para algo inédito: a realização de um filme (Shadows).
Em rigor, a génese de Shadows (que foi por duas vezes filmado, a primeira versão em 1957, a segunda em 1959) tem tudo de “acidente criativo”, como o próprio designou a longa-metragem. Foi em plena aula do seu workshop: os traços gerais das personagens estavam por si definidos e, após ter decorrido um processo de improvisação que fascinou Cassavetes, a decisão foi tomada (“Ei, isso daria um filme fantástico”).
A improvisação continuou por definir, em complemento com a ideia de Cassavetes sobre as personagens (e não sobre a história, ou plot, propriamente ditos), o trabalho de construção dramática, já que foi feita durante o tempo da própria rodagem. A estrutura narrativa fica, então, à mercê da corrente de pensamento e de criatividade do próprio elenco em diálogo com Cassavetes, tal como, em relação à banda musical, o músico de jazz Charles Mingus (conhecido pelo seu ativismo contra o racismo – tema central em Shadows) constrói, livre e inspirado, a música do filme.
O método (que inspirou outros “métodos” de realizadores como João Canijo) não passa pela arbitrariedade do instante. De facto, é preciso deixar claro que o aspeto de improvisação dos filmes de Cassavetes passa uma ideia de que não foi planeado, potenciando um tipo de realismo próximo, enfim, da vida. Noutros filmes de Cassavetes pode dizer-se que havia, sem hesitações, um suporte escrito (o guião) que, no seu caso, servia de rascunho e de base para discussão com os atores. “Dependo deles”, diz o realizador, “para tirar para fora as qualidades literárias” do guião. É então o processo de diálogo misturado com a improvisação que confere novas ideias ao argumento já pensado – porque, como técnica e por si mesma, a improvisação é “inútil”.
Para além do mais convém, também, deixar a nota de que, dos dados de produção, há pormenores interessantes (dois exemplos: o facto da equipa ser composta por amadores e a forma como Cassavetes convenceu Jean Shepard a angariar dinheiro que servisse o orçamento do filme) e que nos dão conta como Shadows foi esse fenómeno singular que nos coloca numa espécie de virar de página da História do cinema norte-americano, ao ter aberto novíssimas possibilidades para um cinema longe de Hollywood – para um cinema que é, no fundo, claramente independente. E por independente não nos referimos a ser contra o sistema (o próprio realizador escrevia que “se lutares contra o sistema isso só significa que queres lá entrar”), mas ser livre, ser “o próprio patrão” e, talvez o elemento mais importante que é ressaltado pelo realizador, ter o filme como “um mistério e não como plataforma de saída.”
Se o elogiado Shadows (venceu o prémio da crítica no Festival de Veneza em 1960) nos coloca na porta de entrada do cinema de Cassavetes, Faces, que o sucede em 1968 após dois fracassos de bilheteira e de crítica (Too Late Blues e A Child is Waiting, ambos frutos de produções comerciais, moldadas pela indústria cinematográfica norte-americana então vigorante), pode ser entendido como um dos trabalhos mais representativos do modo como a performance é encarada pelo cineasta.
Para além de ser um regresso ao sistema independente, Cassavetes realizou com Faces um filme que é evidentemente de autor, pela simples razão de expressar algo que é eminentemente biográfico. Ou, por outras palavras: Faces é um filme que expressa o que verdadeiramente interessa a Cassavetes. E o que é isso? As pessoas, naturalmente. Relembramos o seu primeiro filme e as suas palavras: “acho que a contribuição importante que Shadows pode fazer para o cinema é que as pessoas vão ao cinema para ver pessoas: só se empatiza com pessoas, não com o virtuosismo técnico”.
A opção em cima descrita (de fazer um filme com meios escassos, de ser guiado pela improvisação e de contar com uma equipa amadora) teve as suas naturais consequências (Cassavetes recorda a inúmera quantidade de erros cometidos) mas é tão mais marcante quando pensamos que expressa a sua calorosa vontade de deixar de ser um medium para chegar a um fim (isto é, um ator) para passar a expressar em imagens aquilo que lhe interessava dizer ao seu público – para passar, enfim, a ser um autor no verdadeiro sentido da palavra.
E, de facto, o próprio cineasta confessava que a descoberta de um dado fundamental (“expressar-se a si mesmo, completa e absolutamente”) seria nada mais que um “desejo louco” que precisa de ser cumprido. A razão? Apontamos uma: Cassavetes referia que o cinema era, até um certo ponto, “uma investigação das nossas vidas” e, notemos, por “nossas” Cassavetes terá querido dizer “uma investigação da minha vida”.
Há qualquer coisa que une toda a filmografia do realizador (e mesmo o ator Peter Falk, amigo do realizador, declarou que “todos os filmes do Cassavetes são sobre o mesmo. Alguém disse: ‘O homem é Deus em ruínas’, e o John viu essas ruínas com uma clarividência que nem eu nem você podíamos tolerar”). Apetece, efetivamente, dizer que esta afirmação de Falk não podia ser mais verdadeira — mas que coisa é essa que move as personagens e os dramas do seu cinema?
Se a comunicação humana pode ser apontada, em termos latos, como foco temático principal nos filmes de Cassavetes, então os efeitos perversos e (auto-)destrutivos que dela podem decorrer podem ser vistos, mais especificamente, como elementos tratados, mais ou menos, em toda a sua obra. Ele próprio o diz: “Eu nunca vi alguém ir ter com outra pessoa e explodir-lhe a cabeça. Por que hei de falar sobre isso? Mas já vi pessoas a destruírem-se da forma mais simples. Eu já vi pessoas que se afastam. Eu vi pessoas que se escondem atrás de ideias políticas, atrás de drogas, atrás da revolução sexual, atrás do fascismo, atrás da hipocrisia — e eu próprio fiz essas coisas todas. Então eu posso entendê-los”, acaba por confessar.
Assim se descobre o lado biográfico de que há pouco se falava e se começa a perceber a tentativa de aproximação de Cassavetes da sua ideia de realidade que, para si, se opera se se falar de algo que já se conhece ou experimentou. Recordemos o que Peter Falk dizia sobre essas “ruínas” que não podemos tolerar ver ou tomar conhecimento delas: o cinema de John Cassavetes está realmente próximo de uma ideia não só representadora de desconforto como também, talvez sobretudo, provocadora desse sentimento. Recordando a primeira vez em que passa a estar por detrás da câmara, John Cassavetes escreveu algo que define, ao mesmo tempo, o objetivo do seu próprio trabalho: “Acredito que devemos ir para todos os sítios em que estamos desconfortáveis e provarmos a nós mesmos [do que somos capazes], porque nalgum dia vais ter que provar a ti mesmo [do que és capaz].”
A noção de desconforto surge também quanto ao tema da comunicação: John Cassavetes admite que a maioria dos casais “nem sequer estão conscientes de que não comunicam”. Esta ausência de diálogo, contextualizada numa época de “comunicação em massa e instantânea” (que, ainda, é a de hoje), preencherá, por exemplo, o centro dramático de Faces (o casal à beira da ruína).
Trabalho de atores: histeria e loucura
No mais curioso dos paradoxos, uma das características que mais bem definem o cinema do realizador é o excesso de diálogo, expressão do interior desordenado das personagens. E, numa curiosa justificação dada por Cassavetes relativamente ao facto de ter feito Shadows, explica que o realizou “porque como ator estava frustrado por não poder expressar qualidades humanas e ter de expressar qualidades que diziam respeito e estavam mais preocupadas com o plot”. Ora se a palavra serve normalmente de medium para o interior da personagem, então os filmes de John Cassavetes transformam o diálogo numa espécie perturbadora de duelo entre o discurso (eu sou… eu sinto…) e a atitude (que é muitas vezes discordante).
Mas a significação da palavra é feita raras vezes a partir do seu lado literal. Cassavetes privilegia, acima disso, o tom com que a coisa é dita. Sobre o assunto, o professor George Kouvaros (autor do livro Where does it Happen?), escreve que, quando isso acontece, “a linguagem e a fala são explicitamente processados como atos performativos em que a entoação, sonoridade e a textura acústica das palavras são primordiais. Nos filmes de Cassavetes o som da fala é apresentado em close-up, abrindo os nossos ouvidos para o que Barthes descreve como "toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem".
Estas interpretações feitas em cena são levadas a um limite característico do cinema de John Cassavetes. As performances (histéricas e à beira da loucura) dos atores funde-os com as próprias personagens quando confrontados com a vertiginosa passagem do tempo — as cenas nos seus filmes são sempre levadas à exaustão e cada discussão é vista não no seu essencial mas a partir de todo o seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo não deixamos de sentir uma espécie de stasis do teatro contemporâneo, uma sensação de que nada está a acontecer. Essa aproximação do palco (e das movimentações das personagens no espaço), apesar do naturalismo dos décors, remete-nos para o conceito barroco referido por Kouvaros de theatrum mundi — se nos lembrarmos da ideia de rotina impregnada em Faces (que, curiosamente, estava pensada para ser uma peça de teatro), por exemplo, se nos lembrarmos, também, daquele final aberto (a escadaria de casa, o casal move-se subindo-a e descendo-a), ficaremos com a sensação de que entramos num irremediável loop, de uma perturbante repetição (e que tem a ver com o facto de Cassavetes mostrar o conformismo e, no limite, uma ideia de absurdo que terá algo a ver com as ruínas que Peter Falk apontou).
Cassavetes contra o virtuosismo
A mise-en-scène dos filmes de Cassavetes é, pois, sustentada fundamentalmente pelo trabalho performativo (“Cassavetes só mantém do espaço aquilo que cola ao corpo, compõe o espaço com bocados desconectados que só um gestus liga”, escreveu Gilles Deleuze). O realizador limita-se a exercer uma operação de olhar para o que está acontecer. Esse olhar terá muito a ver, naturalmente, com a ideologia naturalista do cinéma vérité. A mistura entre um lado formalmente próximo do documentário (que reproduz o real) e da ficção (que produz um real) contribui ainda mais para o nosso conhecimento sobre a obsessão para conseguir um efeito de autenticidade. Nos seus filmes, as personagens são filmadas como se in loco e na “imprevisibilidade” do momento, com uma objetividade de um certo tipo de documentaristas (como Lionel Rogosin, que Cassavetes considerava o “maior documentarista de sempre”).
Uma das maiores reprovações ao cinema de Cassavetes prende-se, talvez, com esse lado completamente anti-forma que move o seu cinema. Numa primeira versão filmada de Shadows, Cassavetes justificou a “impureza” do filme com o virtuosismo técnico — “estava cheio de ângulos e cortes extravagantes, e muito jazz no background… ficou um filme completamente intelectual — e por isso menos humano. Tinha ficado apaixonado com a câmara, a técnica, os planos bonitos e com a experimentação por si mesma…”, escreveu, acrescentando o facto de algumas interpretações terem sobrevivido aos seus truques cinematográficos foi o aspeto que o reanimou. De resto, na segunda versão e nos restantes filmes os aspetos mudaram radicalmente (do formalismo para a quase ausência de forma), mantendo características como a montagem, que contempla um tempo linear.
Apesar de tudo, será interessante notar como a câmara, que é sempre usada “à mão”, se assume como uma espécie de híbrido: ora funcionando como câmara-testemunha, ora como servindo os propósitos dramáticos do filme. Em Faces, por exemplo, notamos a presença de uma câmara que parece não estar lá, assumindo a posição de olhar curioso não só pela ação a decorrer mas como por pormenores, que não interessam ao drama mas sim à caracterização das personagens (terá sido por isso que Kouvaros lhe chama uma “câmara híper-atenta”). Há um plano que merece destaque: dois atores de pé e de perfil para a câmara, conversam e, no espaço existente entre eles, a personagem de Gena Rowlands, sentada no sofá, mostrando-se enfastiada e solitária. Por outro lado, Faces dá-nos a ver momentos em que a câmara se torna ou subjetiva (há um momento em que se coloca na posição da personagem de Lynn Carlin e os restantes atores olham para si — ou seja, para a objetiva da câmara) ou potenciadora do drama (na reta final, quando Lynn Carlin desperta do desmaio, a câmara aproxima-se dela de forma abruta, desfocando e focando, mostrando a desorientação sentida pela personagem).
Criando o gestus
Pessoas: é isto que, afinal de contas, lhe interessa e são elas que quer filmar, com intenção de ser absolutamente imparcial, deixando a possibilidade de julgamento para o espectador. “Quando estou a trabalhar num filme proíbo-me a mim mesmo de ter opiniões e, para além disso, eu não realmente nenhumas”, era esta o imperativo do realizador, fascinado pelos corpos que filmava.
Assim, sendo a fisicalidade das relações interpessoais a grande ênfase do cinema do realizador (como apontou Kouvaros), convém não ficar indiferente a esta demanda, em que a história deve ser segregada pelas personagens (e não devem ser consequência do plot). O relevo apaixonado dado às pessoas resume, tal como Gilles Deleuze escreve no seu A Imagem-Tempo, “a exigência de um cinema dos corpos: a personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais, e o que tem de sair é o gestus, isto é, um ‘espetáculo’, uma teatralização (…) que vale para qualquer intriga.”
Cinema de corpos, também entendido cinema de revelação, como Jean-Luc Comolli designou, já que as personagens dos filmes de Cassavetes “constituem-se gesto a gesto e palavra a palavra, à medida que o filme avança, elas fabricam-se a elas próprias, a rodagem agindo sobre elas como um reveladora, cada progresso do filme permitindo-lhes um novo desenvolvimento do seu comportamento, da sua duração própria coincidindo muito exatamente com a do filme”.
É assim que, pois, o mesmo autor diz que o realizador usa o cinema “não só como forma de reproduzir ações, gestos, caras ou ideias, mas como uma maneira de os produzir” — e isto torna-se particularmente importante quando pensamos que o trabalho dos filmes de John Cassavetes atinge a verdade através da ficção, de um trabalho meticuloso de mentiras. Não será certamente por acaso que muitos momentos do filme sejam as personagens a representar outros papéis, sendo que a própria performance adquire um lado autorreflexivo. “Dizer a verdade como a vejo não é dizer necessariamente a verdade”, escreveu o realizador. Sim, para Cassavetes não é dizendo a verdade que a atinge, mas aproximando-se da sua vida e criando novos sistemas em aberto. Afinal, Faces foi para si marcante por se ter tornado um way of life.
Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular História do Cinema IV (2011-2012), lecionada por Luís Fonseca, da Escola Superior de Teatro e Cinema.
Fontes
4. Cassavetes on Cassavetes - John Cassavetes. Seleção de Ray Carney, 1989
5. Where does it happen? – George Kouvaros, University of Minnesota Press, 2004
6. A Imagem-Tempo – Gilles Deleuze, Assírio & Alvim, 2006
7. Cahiers du cinéma, n.º 205, - Jean-Luc Comolli, Outubro de 1968