O director artístico e programador do Queer Lisboa, João Ferreira, responde a 10 perguntas lançadas pelo O Sétimo Continente. Muito obrigado pela sua colaboração!
1. O que significa um festival como o Queer Lisboa atingir as 15 edições?
Significa a certeza de que, há 15 anos atrás, a proposta de criação deste festival fazia sentido e que a sua existência continua a fazer sentido hoje. O festival passou por uma série de renovações e soube reorganizar-se e reinventar-se, mesmo nas alturas financeiramente mais adversas, tendo sempre crescido em termos de público, o que significa que a sua trajectória tem ido ao encontro da evolução, não só do cinema que apresenta, mas do panorama cultural lisboeta.
2. Foi pelo Queer Lisboa que os lisboetas viram em primeira mão cineastas como François Ozon ou Bruce LaBruce. É importante o espaço de descoberta que este espaço proporciona?
Sim, é fundamental. Um festival de cinema faz sentido como plataforma de descoberta, quer de novos realizadores, quer de filmografias que são desconhecidas do nosso público. Um festival deve marcar a diferença e afastar-se das lógicas profundamente redutoras do circuito comercial das Salas e do mercado de DVD.
3. Além das representações de sexualidades não-normativas podemos reconhecer características cinematográficas claramente associadas ao cinema “queer”?
O chamado “cinema gay” foi durante muito tempo uma categoria ligada sobretudo às narrativas. O “new queer cinema” de inícios de 1990, não a tendo inventado – antes reinventado e reapropriado –, veio juntar às narrativas uma especificidade estética e formal. Se pensarmos no cinema de Kenneth Anger, Jack Smith ou mesmo de Paul Morrissey, havia uma enorme preocupação estética, muito ligada ao “camp”, e um certo experimentalismo formal. Esses pressupostos foram recriados no cinema de Todd Haynes, Gus Van Sant ou mesmo de Ozon, mas em comum existe essa necessidade de criação de uma linguagem própria que vá ao encontro dessa não-normatividade. A imagem também conta uma história.
4. O que representa para um festival como o Queer Lisboa ver filmes como “O Último Verão da Boyita” ou “Uivo” a ter estreia no circuito comercial?
É importante em termos de visibilidade para o festival, e até mesmo de uma abertura para novos públicos. É também um bom sinal da transversalidade e do ecletismo deste cinema, que toca desde o gosto mais comercial, ao mais marginal. Ou seja, são com certeza felizes coincidências, mas não creio que deva ser um pressuposto ou vocação de um festival de cinema temático.
5. Por que é escassa a representação do cinema português num festival como o Queer Lisboa?
No momento em que vivemos na sociedade portuguesa, não acredito que essa escassez esteja ligada a medos ou preconceitos – embora eles seguramente ainda existam. Há muitos realizadores em Portugal a focar esta temática, nomeadamente, nestes últimos anos, de jovens a sair das escolas de cinema. O que se passa em Portugal é, simplesmente, de uma forma geral, uma muito pouca produção de cinema. É um sistema que depende muito do Estado, pois não há grandes alternativas, o que dificulta a produção em mais quantidade.
6. Haverá ainda filmes “perdidos” da cinematografia “queer” portuguesa, que o festival possa redescobrir, como foram os de Óscar Alves?
Com o rigor, meios e qualidade dos filmes que o Óscar Alves e o João Paulo Ferreira realizaram nos anos 1970, não creio que existam muitas outras “descobertas” a fazer. Até porque este é um meio pequeno – e era-o ainda mais então –, e seguramente já haveria notícia de outros filmes. Agora, existirão com certeza, quer filmes anteriores à Revolução e mesmo posteriores, feitos com poucos ou nenhuns meios – amadores, experimentais –, que espero venham a ser descobertos ainda.
7. Como mudaram os públicos ao longo da história do Queer Lisboa?
O país mudou muito nestes 15 anos. Quando comecei a trabalhar no festival, na sua 4ª edição, em 2000, por um lado, não havia a concorrência de outros festivais de cinema na cidade, o que nos permitia um leque muito grande de filmes que chamavam muita gente, mas por outro, havia ainda um grande preconceito em ir ao festival. Era um lugar onde muitos não queriam ser vistos, fossem gays ou não. Lembro-me da dificuldade de as estações de televisão conseguirem filmar o público, que não o permitia, por exemplo. Isso já não acontece hoje. Outra diferença que noto – e que começou nos anos do Quarteto, entre a 8ª e a 10ª edições –, foi a chegada de uma nova geração de estudantes universitários. Uma faixa que é hoje das mais significativas do festival.
8. O Queer Lisboa tem perspectivas de alargar o seu espaço de trabalho (e públicos) além do que todos os anos faz durante “x” dias no cinema São Jorge?
Essa vontade acaba por estar sempre muito restringida pelas limitações orçamentais. No entanto, temos feito um trabalho continuado em termos de programação de cinema português em festivais internacionais e temos organizado também algumas mostras em diferentes pontos do país, durante o ano. No fundo, temos aproveitado esse período para incentivar essa vocação importante do festival que é a da promoção do cinema nacional de temática queer. Mas estamos a trabalhar para uma presença mais regular nos restantes meses do ano, continuando com a programação e investindo também na distribuição.
9. Que tipo de reconhecimento internacional tem um festival como o Queer Lisboa?
Este festival teve a estranha particularidade de ter sido primeiro muito reconhecido lá fora, sobretudo pela sua programação, antes de ser reconhecido cá dentro, nomeadamente em termos de cobertura pelos media e de um crescimento em número de espectadores e de cativação de apoios públicos e privados. Pontos que hoje vão sendo conquistados. O reconhecimento sente-se pela quantidade de pedidos que temos por parte de outros programadores para lhes indicarmos os contactos dos distribuidores dos filmes que programamos, os convites que recebemos para integrar elencos de júris em festivais internacionais, ou mesmo o feedback mais directo que temos de colegas de profissão.
10. O que traz de novo a edição nº 15 do festival?
A partir da sua 9ª edição – e nesse sentido os anos do Quarteto foram fundamentais em termos de “laboratório” –, o Queer Lisboa criou uma série de secções, algumas fixas, outras moldáveis a cada edição, que acreditamos serem um bom modelo para oferecer uma leitura do nosso programa. Celebrar o 15º aniversário do festival, implicou pensar uma programação especial dentro destas “regras”, quase que a testá-las de novo, a ver se ainda faziam sentido. E aos poucos foi surgindo um mote que parecia colar-se à selecção deste ano e que resumia em muito aquela que tem sido a essência do cinema queer: a transgressão. Assim, procurámos títulos que cobrissem de alguma forma as muitas temáticas e estéticas que este cinema tem tocado e que garantem a sua vitalidade, hoje. E aqui, os filmes de abertura e encerramento do festival têm um valor simbólico especial:
Uivo, de
Rob Epstein e
Jeffrey Friedman, e
Taxi Zum Klo, de
Frank Ripploh. O primeiro, porque invoca o poeta
Allen Ginsberg, figura pioneira da cultura queer, com influência marcada não apenas na literatura da segunda metade do século XX, como também na música e nas artes visuais.
Taxi Zum Klo, obra autobiográfica de 1980, realizada em Berlim – cidade emblemática da liberdade sexual –, porque reúne uma série de pressupostos conceptuais da cultura queer: o discurso na primeira pessoa, a afirmação de todas as liberdades, a cultura do desejo.