«Mel» é um daqueles raros acontecimentos cinematográficos que não se esperam - manter uma proximidade com a Natureza, a família e a infância num tom panteísta forte e belíssimo é coisa difícil nos tempos que correm. A crítica que se segue foi escrita por Nuno Carvalho e foi publicada na edição última da revista NS do Diário de Notícias.
«Primeira parte de uma trilogia construída ao contrário, 'Mel' venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2010
De vez em quando aparece um filme que nos relembra que o cinema pode ser uma nobre arte. É o caso de Mel, do cineasta turco Semih Kaplanoglu (n. 1963). Vencedor do Urso de Ouro na penúltima edição do Festival de Berlim, este filme constitui a última parte de um tríptico autobiográfico a que o realizador deu o nome de ‘Trilogia de Yusuf”, e que explora diferentes fases da vida de uma mesma personagem. Mas fá-lo, porém, numa ordem cronológica invertida, ou seja, começando pela idade adulta de Yusuf (em Egg, de 2007), passando pelos seus tempos de estudante universitário (em Milk, de 2008), e terminando na infância deste. Os três filmes têm nomes de alimentos de origem animal, mas, a avaliar por Mel, é de um autêntico alimento espiritual que se trata.
Kaplanoglu definiu o estilo do seu cinema como “realismo espiritual”. Um termo perfeito para designar um cinema que, sendo pura e simplesmente realista, não o é todavia num sentido literal, banal ou empobrecedor. Trata-se aqui de um realismo sublimado, espiritualizado, que encontra na realidade (e sobretudo no real natural) uma espiritualidade imanente, em boa parte decorrente de um olhar poético sobre as coisas. É uma poética da simplicidade que se desenha neste filme que, afinal, é mais do que um filme: é um milagre, uma epifania cinemática, um sopro de ar puríssimo.
Numa remota região do Mar Negro, Yusuf (Bora Altas), um tímido e frágil menino de seis anos, que se encontra na primeira classe, tem dificuldades em ler diante dos seus colegas de turma (é acometido de uma súbita gaguez, porventura de origem emocional, de cada vez que tem de o fazer). Porém, em casa, consegue quebrar esse bloqueio verbal, sobretudo junto do pai – mas a única forma que encontra para contornar a sua inibição é sussurrar as palavras ao ouvido deste, com quem tem uma ligação especial. Todavia, quando este, que é apicultor, desaparece nas entranhas de uma floresta aonde foi armar as suas colmeias, Yusuf deixa de falar, o que acentua ainda mais a ansiedade da sua mãe.
O lugar de Mel na ‘Trilogia de Yusuf’ é similar ao de Pather Panchali na ‘Trilogia de Apu’, de Satyajit Ray. Mas, no caso desta “prequela” de Semih Kaplanoglu, são traçadas as origens de uma alma que, futuramente, e em larga medida devido à sua relação conturbada com as palavras, se tornará poeta. Vivemos sempre muito em função dos que nos falta, e no caso de Yusuf, como aliás na maior parte dos casos, é da superação de uma insuficiência que nasce a virtude. Não sabemos até que ponto a Trilogia de Yusuf é autobiográfica; sabemos apenas que Kaplanoglu é um poeta das imagens e que Mel é um autêntico maná cinematográfico.»