Pode o cinema ser uma janela que olha adiante do seu tempo, reflectindo sobre comportamentos que o quotidiano ainda não assimilou? Ainda a legislação alemã mantinha o chamado parágrafo 175 (que criminalizava a homossexualidade) e já um filme abordava o amor entre homens. Estávamos em 1919 e em Anders als die Andern, de Richard Oswald (filme internacionalmente conhecido depois como Different From The Others), o grande ecrã acolhia pela primeira vez uma narrativa que retratava a homossexualidade de forma sóbria (e séria). O filme, rodado com o apoio parcial do Institut für Sexualwissenschaft (Instituto para a ciência da sexualidade), liderado por Magnus Hirschfeld, que contribuiu para a escrita do argumento, tinha entre os seus objectivos um confronto directo com a legislação em vigor na Alemanha de então. Gerando alguma polémica, foi vetado pela censura, as suas cópias acabando apenas distribuídas num circuito restrito entre médicos e investigadores científicos. Muitas dessas cópias do filme foram destruídas pelos nazis logo aquando da sua chegada ao poder, em 1933. Anders als die Andern relata a história de um violinista que se apaixona por um dos seus alunos, este ameaçando depois expor publicamente o primeiro. A forma como o filme integra a busca de uma “cura” num médico, acompanha os efeitos da “revelação” perante a sociedade do seu tempo e aborda a pulsão suicida que assombra o protagonista, não só confere a condimentação dramática para uma narrativa potencialmente capaz de envolver o espectador, como acaba por traduzir comportamentos e medos característicos daquele tempo. Factos que fazem do filme não apenas um marco na história do cinema como também um importante retrato sociológico da época.
Não era a primeira vez que a homossexualidade era representada em cinema. Ainda em 1912, o filme Algie the Miner, dos norte-americanos Harry Schenck e Edward Warren, tomava como figura central um homem de comportamentos vistos como pouco “maculinos” por parte do futuro sogro. O “sissy”, termo que acabou por descrever este modelo comportamental, foi de resto lugar comum frequente nos primeiros retratos de homossexuais no grande ecrã, as histórias ora tomando a sua presença em jeito de ‘comic relief’, ora conduzindo-o à morte.
Curiosamente coube a outro filme de produção alemã a sugestão de um outro importante retrato de personagens homossexuais nos dias do cinema mudo. Grande produção assinada em 1924 por Carl Dreyer (o mesmo que mais tarde rodaria ‘A Paixão de Joana D’Arc’ Ou ‘A Palavra’), ‘Mikael’ [ao lado] apresenta-nos a história de um pintor que se apaixona por um dos seus modelos (que depois) o trai. Apesar de implícita, a relação entre ambos terá sido uma das características do filme a não cativar o discurso dos críticos da época (o reconhecimento de trabalhos posteriores do realizador tendo entretanto conduzido a uma outra avaliação das qualidades do filme).
Uma vez mais foi da Alemanha que emergiu um filme com uma narrativa assente sobre uma história de amor entre mulheres. Estreado em 1931, Mädchen in Uniform [ao lado], da realizadora Leontine Sagan, teve algum impacte no circuito dos bares e clubes lésbicos da Berlim de então e é hoje um filme de culto. Baseado no romance (e peça de teatro) Gestern und heute, de Christa Winsloe, o filme sobreviveu à II Guerra Mundial mas não voltou a ser visto até que, na década de 70, foi exibido na televisão alemã.
Sinais igualmente invulgares da mesma capacidade em olhar adiante no tempo (como se referia no início do texto) chegaram, em 1927, com ‘Wings’ [primeira foto]. Realizado pelo norte-americano William A. Wellman, com Clara Bow e Charles ‘Buddy’ Rogers à frente do elenco, foi o primeiro a receber um Óscar para Melhor Filme. Outra estreia morava contudo entre as imagens. A do primeiro beijo entre dois homens (na verdade um beijo fraternal)… Espantoso sendo depois o facto de ter ganho um Óscar em inícios de 1929. Ou seja, 76 anos antes de ‘Brokeback Mountain’ ter sido preterido perante ‘Crash’ na noite da 78ª cerimónia de entrega dos Óscares.
Mais num plano simbólico há quem entenda como uma das primeiras formas de representação de homossexualidade no cinema a relação algo erótica entre o Sol e a Lua (ambos mostrados como personagens masculinas) no filme de 1907 ‘L'éclipse du soleil en pleine lune’, do francês Georges Meliès.
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