Há uma misteriosa força que move as quatro horas e meia do encadeamento literário de Camilo Castelo Branco, meticulosamente observado por Raoul Ruiz. Mistérios de Lisboa, que se assume à partida como um filme-novela, um estudo de personagens no seu sentido clássico, é demasiado ambíguo para ser facilmente rotulado, seja obra-prima ou uma produção falhada. Em síntese, podemos considerá-lo um filme cheio, cheio de intenções primárias e cheio de triunfos inalcançáveis. Como é estranho assumirmos que não há qualquer identificação com as personagens e seus dramas (culpa dos trejeitos arcaicos de uma época que já não é ou das interpretações que deixam a desejar uma naturalidade que, aparentemente, deveria existir?) e haver, ao mesmo tempo, um amor tão grande à forma como estas estão ambientadas. E como é estranha a ambiguidade estilística da câmara de filmar do cineasta – tão depressa dança com os seus corpos e emoções, em longuíssimos e ritmados planos sequência, como se distancia, dançando, nervosamente, sozinha, em redor delas. Mas esta estranheza, que infelizmente se alia a uma fotografia desastrada (será também ela deliberada?) e a um argumento previsível, cansativo e demasiado visto (o que comprova que a literatura e o teatro são incompatíveis, literalmente, ao grande ecrã), remete a uma unicidade que nos faz esquecer daquilo que a obra é falha, uma unicidade de que é dotada a realização. Assim, para o espectador, tudo se transforma num brutal banquete de sensações e beleza, num exercício cinematográfico que ficará no seu pensamento como um absoluto mistério.