domingo, julho 19, 2015

Entrevista a Renzo Rossellini

Sara Matos/Global Imagens

Renzo Rossellini (24 de agosto de 1941), filho mais velho do emblema do cinema neorrealista italiano  Roberto Rossellini, colaborou com o pai em cinema e televisão entre 1959 e 1970, começando por trabalhar como assistente de realização. Durante esse período, foi creditado como Renzo Rossellini Jr - para que não o confundissem com o tio, compositor da banda musical da maioria dos filmes do autor italiano.

Foi realizador, mas destacou-se sobretudo na produção ao fundar a Gaumont Italia e ao financiar e distribuir mais de uma centena de filmes - uma lista que inclui títulos essenciais da história do cinema europeu na segunda metade do século XX, assinados, por exemplo, por Fellini, Antonioni, Truffaut, Fassbinder, Bergman ou por um exilado Tarkovsky.

Esta entrevista, publicada no DN no dia 8 de abril de 2015, foi feita quando Renzo Rossellini esteve em Lisboa para apresentar dez filmes do pai restaurados nos últimos anos.


Com que dificuldades se deparou no processo de restauro dos filmes do seu pai?

A película é um material que se arruína muito facilmente. Como um ser humano, pode morrer e desaparecer. O problema era conservá-la e conservá-la bem. Preocupavam-me sobretudo os cortes que foram feitos durante o período da censura. Saía-se do fascismo, mas na cabeça das pessoas não se gostava dos filmes de Rossellini. E, por isso, havia muitos cortes no momento da distribuição. O meu trabalho foi fazer um restauro fisiológico – fazer com que a película voltasse a ser como era no início. O restauro é dedicado aos jovens, que estudam Cinema, História ou Arte.


Qual foi o filme mais censurado?

O filme do meu pai que teve mais cortes foi O Santo dos Pobrezinhos, sobre S. Francisco. Cortaram 11 minutos. No ano de 1950, no Jubileu do pós-guerra, o retrato de um santo pobre foi mal recebido tanto pela Igreja como pela esquerda comunista, habituada aos filmes sobre a Resistência. Assim, a censura cortou o prólogo de cinco minutos com representações de Giotto e episódios como a aparição de uma prostituta – São Francisco conhece-a e dá-lhe um abraço, como Jesus fez com Madalena. Mas cortaram essa cena.


Quando começou a colaboração com o seu pai?

Comecei a trabalhar com o meu pai na pós-produção de Índia. Depois, colaborei em 1959 em O General Della Rovere como assistente de realização. O produtor que financiou o filme exigia que estreasse no Festival de Veneza. O meu pai decidiu que eu filmaria todas as cenas sem o ator principal, Vittorio De Sica. O dia de rodagem era repartido em cenas e lugares diferentes que nós os dois filmávamos separados, pelo que no final de cada dia acabávamos com bastante material. Em Veneza, o filme venceu o Leão de Ouro e o meu pai disse-me: “como filmaste mais minutos, o prémio é para ti”.


Como aconteceu a transição do cinema para a televisão?

O meu pai descobriu a televisão quando filmava na Índia, em 16mm, aquilo que via. Para poder terminar um documento sem pessoas, vendeu à televisão francesa e, depois, à italiana. No dia que sucedeu a emissão, falando com gente da televisão, foi congratulado por ter tido dois milhões de espectadores – algo extraordinário, visto que naquelas imagens não havia atores nem história. Por seu lado, os filmes com Ingrid Bergman e Anna Magnani recolhiam dezenas de milhares de espectadores. Assim, percebeu e questionou o poder imenso da televisão – como é que algo que chegava a milhões de pessoas podia ser tão mal aproveitado, com concursos e outros programas imbecis? Pensou em fazer algo para fazer da televisão algo de útil aos humanos.


Nos dias de hoje, temos mais meios de difusão de imagens...

Como a Internet...


Qual é o lugar do filme face a esta multiplicidade de meios?

Bem, a mim preocupa-me a pirataria dos filmes na Europa. Os EUA dão mais atenção sobre este grave problema. A Europa deixou de prestar atenção à cultura – já não existe, tal como já não existe cinema. É preciso uma evolução para que os europeus aprendam o que é a cultura. No caso dos norte-americanos, essa evolução deu-se com a criação de uma Constituição. Por aqui, temos uma Europa sem Constituição. Muitos dos filmes do meu pai foram feitos nesta perspectiva. Ele foi o primeiro realizador que, depois da Segunda Grande Guerra, viajou a Berlim. Com Alemanha, Ano Zero fez um filme sobre a piedade e o perdão. Ele pensava que, sem o perdão da Alemanha, não havia possibilidade de uma Europa unida.


Faz-nos falta hoje um cinema reunificador?

Sim, mas acredito que os jovens realizadores apenas olham para si próprios, não olham para o que há em redor. Há sempre um momento em que é preciso ser responsável e dizer “não”.


Também é professor de cinema. De que forma lida com as futuras gerações de realizadores?

Quando ensino cinema, digo aos meus alunos que é muito importante observar com olhos de ver e ter uma posição ética sobre o mundo que nos rodeia, sabendo apontar aquilo que é bom e que é mau. Os filmes são meios para expor aquilo que está mal, e também para aprender. Acredito que estamos a viver um momento histórico muito difícil, dominado pelo terrorismo. O terror tem como objetivo dar medo e, se a televisão ajuda a mantê-lo, ganham os terroristas. A única forma de os vencer é não temer e ajudarmos a pensar como nos havemos de opor, com humanidade, contra o terrorismo. São razões sociais, políticas e económicas que criaram esta situação. Há que propor soluções, nem que seja de uma forma utópica - neste sentido, o cinema pode fazer muitíssimo.