É tempo de rever A Rede Social – já chegou aquela altura em que a televisão portuguesa o reduziu, com todos os seus delicados intervalos e gosto de programação, como “um filme de sábado à tarde” (foi na SIC, no passado dia 16). Confesso o meu desapontamento quando estreou por cá, ao lado de uma estranha euforia, precisamente alastrada no Facebook, que andava de mão dada com a felicidade de termos um filme – ainda para mais “controverso” (Mark Zuckerberg expressou o descontentamento com o facto de dramatizarem a própria vida) – sobre as origens míticas da rede que prende o planeta do outro lado do ecrã. Enfim, nada nos impede de “corrigir”, mais tarde, as nossas percepções sobre um determinado objeto – foi o que precisamente aconteceu comigo com este filme que, de qualquer modo, chegou seguramente fora do seu tempo (algumas reações mornas davam conta de um filme asséptico, apenas sobre nerds).
A Rede Social não só me parece como um dos melhores que David Fincher nos deu como, sobretudo, como um desses objetos que nos lançam para o abismo da virtualidade do nosso real. Quer isto dizer que funciona perfeitamente como um espelho do mundo das trevas “deste lado” dos espectadores – “das trevas para as trevas”, exatamente como Cormac McCarthy escreveu em Nas Trevas Exteriores (Outer Dark). No mesmo livro, uma personagem feminina diz que “não há uma alma neste mundo que não seja um estranho pra mim” – eis a evidência trágica, escrita há quase 50 anos atrás, que nos leva diretamente para o universo de A Rede Social, universo de triste solidão (a do protagonista) e de dois desejos muito humanos e que pouco ou nada terão a ver com computadores: de nos sentirmos próximos do outro e de consagrarmos, com toda a nossa sede de poder, uma identidade (a nossa). A partir da construção de uma timeline (a nossa linha da vida que existe “daquele lado” do ecrã), dos nossos gestos virtuais (o like, uma partilha, um estado de relacionamento) que vão definindo o nosso próprio mundo. Como nos mostrou Fincher, hoje não somos mais que um algoritmo escrito temporariamente num vidro.
David Fincher, afinal, quebra-nos em dois desde logo na cena da abertura: o medo dos silêncios, o vertigo para o qual os diálogos, mas sobretudo a montagem, nos atira, os diálogos que são debitados – eis o computador (o protagonista) e eis a pessoa que ele não é (nunca será) e com que ele anseia compreender e ficar (a rapariga, Rooney Mara, que abandonamos, mais tarde e pela última vez, numa imagem em que termina de costas – também nós queremos estar com ela, como se fosse o sinal final da realidade-realidade-realidade que escoa neste filme). Parece-me igualmente brilhante o confronto climático, nos escritórios do Facebook, entre Eduardo e Mark – onde se configura uma batalha entre os últimos sinais de uma amizade, e assim de uma humanidade, e a barbaridade tão calculável, precisa e implacável do dinheiro (o mesmo, afinal, tentou Soderbergh filmar em Magic Mike).
Ao longo do filme, “a rede social” é percebida na teia de peões (de personagens) de um jogo maior – jogo de computador, como Rooney Mara diz. Aquelas personagens vivem até ao fim na euforia de se encontrarem “do outro lado”. Que é como quem diz: no desejo de se encontrarem para fazer share / partilha de algo essencial ao Facebook e à nossa vida. A solidão, precisamente.