Srebrenica, 11 de julho de 1995. As forças de manutenção da paz da ONU mantinham-se impassíveis. Os soldados do exército sérvio da Bósnia, então comandados pelo comandante Ratko Mladić (a ser, neste momento, julgado no Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia por 11 crimes de guerra e contra a humanidade), reuniram mais de 8000 homens e rapazes bósnios muçulmanos num estádio de futebol e mataram-nos. Aconteceu há 17 anos.
Como é que conseguimos lidar hoje com o fardo desta memória? Em que altura é que hoje nos lembramos que o mal existe e que habita a nossa alma perturbada? Ou simplificando: quando confrontados com o real como é que conseguimos viver?
Quando Joaquim Sapinho viajou para a Bósnia em junho de 1996 e, depois, em janeiro de 1998, esta questão esteve sempre premente. Entre as viagens filmou, primeiro, o desvanecimento de uma ideia sobre um país face “às ruínas e à destruição” e, da segunda vez, ultrapassado o pudor inicial que o impedia antes de apontar a câmara à frente daqueles que choravam e desejavam gritar, filmou “o silêncio e o luto” (Expresso, 15 de julho de 2006).
Afinal, o que os habitantes e realizador, sobreviventes da Guerra da Bósnia, colocavam em cima da mesa eram cartas muito difíceis de encarar: “as dores de nascimento de uma nação” (Expresso), o confronto com a intolerância e a dolorosa possibilidade em continuar a viver.
É neste sentido, talvez, que Diários da Bósnia pode ser visto como complemento direto de Je vous salue Sarajevo: enquanto Godard glorifica a “exceção” da “arte de viver” daqueles que colidem com um tempo de guerra na Bósnia, a concentração de Sapinho está na mesma arte da sobrevivência – desta vez, num tempo silencioso de pós-guerra. É por isto que Diários acaba por ser um filme que é inevitavelmente contaminado pela força da religião – recordada como impulsionadora (em parte) do conflito armado ocorrido entre abril de 1992 e dezembro de 1995 e, depois, filmada como “manifestação visível do luto”. É curioso, aliás, perceber como Deste Lado da Ressurreição prossegue o caminho de ver a espiritualidade como o “ajustar de contas” com o absurdo da morte.
No documentário, esse absurdo ganha expressão, por exemplo, nas cenas do elétrico em direção ao subúrbio, que parece olhar para vivos-mortos, ou nas do Museu de História Natural, assustadoras como os travellings que abrem Noite e Nevoeiro de Alain Resnais. (Será possível acreditar que o filme foi lançado 50 anos antes do Diários? A História era outra e, no entanto, a mesma...)
A referência mantém-se quando pensamos também em Hiroshima mon Amour (59), do mesmo autor. João Lopes recordou-nos então que “a intensidade do lugar e das suas memórias expunha-nos à violência irrecusável de todas as histórias, a colectiva e as individuais; por outro lado, a consciência de tal violência tornava qualquer discurso hesitante, pudico, consciente das suas drásticas limitações. Mas era importante não desviar o olhar” (Diário de Notícias, 14 de julho de 2006). Diários da Bósnia é, portanto, um dos maiores e potentes exemplos recentes dessa coragem em querer continuar a olhar – por querer compreender.
A “exceção” de que nos fala Godard (em off, na primeira pessoa e em tom de confissão, tal como Sapinho) está também presente na humildade desta vontade. Lembro-me de uma aula que deu no meu segundo ano. Dizia ele: “é como se houvesse duas funções na arte: uma que serve para que o tempo passe e outra que nos mostra coisas que nos fazem parar.” Quando Sapinho filma a Bósnia tal como a viu (e não exatamente como “é” – quem consegue apontar isto, afinal?) e se propõe a testemunhar a transformação de uma postura (a que se mantém sempre em off e que é protagonizada pelo realizador), está a fazer-nos parar e a relembrar, como Godard a partir da montagem, que a imagem nunca é uma transparência do real. É, por vezes, aquilo que há de invisível e que emana da força do olhar desse real.
E esse olhar é marcado no filme por uma pulsão eminentemente impressionista – as caminhadas, o chão que percorremos, a cena em que Sapinho filma o cavalo e se perde, parecem fazer raccord com os travellings de Stalker (1979), de Andrei Tarkovsky, que confundiam as memórias com o sonho e o desejo.
Ao mesmo tempo, Diários parece estar absolutamente indissociável da potência do elemento da neve – é ela que, afinal, vai ditando uma certa ordem pictural nos enquadramentos de Sapinho (basta-nos recordar todos os planos que coabitam com a presença compulsiva da rapariga do lenço vermelho – mas quem é ela? e por que nos fica tão cravada na memória?)
É sobre a neve que ela vai caminhando; a mesma neve que, mais tarde, faz com que “tememos o esquecimento”. Do horror, do mal, mas também dos cânticos, do reencontro das famílias, da arte de viver, do lenço vermelho na cabeça da rapariga. Mas enquanto exceções como estas viverem continuaremos a aprender a sobreviver.