Há, sem dúvida, um problema, de ordem filosófica, que se insurge, até a contemporaneidade, a respeito de Salò, ainda hoje banido em inúmeros países, levado a público logo após o assassinato do realizador: serão os trabalhos de génio aqueles que conseguem reunir o consenso global do gosto da sociedade pelos mesmos ou, por outro lado, serão os que a abalam na totalidade e a dividem até onde seria impensável? Um filme destes, que, visto em superficialidade, se demonstra nojento, repulsivo e horrível, só pode ser considerado como tal à luz da camada que se lhe sobrevém. O espectro daquele que viveu no corpo revoltado e abominado de Pier Paolo Pasolini apresenta-se e, com ele, nos traz cento e vinte dias de Sodoma e uma obra-prima que ficará nos pilares do cinema como arte autêntica.
Ambientado no regime, ditatorial e repressivo, de Mussolini, na Itália da fase terminal da Segunda Grande Guerra, a película, altamente simbólica em constituição cénica e de narrativa, subdivide-se, de forma análoga ao Inferno de Dante, em quatro segmentos – ante inferno; ciclo das manias; da merda e do sangue –, que progridem, em alucinante força, pelas experiências que quatro homens, de grande influência e poder, exercem sobre três meias dúzias de jovens, rapazes e raparigas, de desregramento, humilhação, dominação sexual e animal, diabólica tortura e morte. Efectivamente, a obra poderá ser entendida sob dois pontos de vista, um político, que subjaz toda a substância tratada nesta e, outro, sexual.
Sem qualquer tipo de dúvida, este golpe de mestria cinematográfica é, antes de tudo, um grito de intervenção – de revolta política, de alerta, de medo. Sendo um tratado sobre a fragilidade humana, Pasolini, que vivera de perto o regime fascista, rebela-se contra o absolutismo, e realiza, aqui, um trabalho de tremenda forma democrática e livre de qualquer tipo de vergonha e que critica, com energia, um mundo guiado pelo desenvolvimento da animalidade, cuja ideia de homem ideal passava pelo seu comportamento andróide, maleável e obediente, destituído de razão, sensibilidade e humanismo. Apesar de se apoiar em Nietzsche com o ultra-realismo (ou derrotismo) com que filma esta tragédia, o cineasta admite a mal interpretação que o seu Gott ist tot adquiriu neste contexto, dando a ilusão de que a perda da fé da existência de Deus poderia liberar o ser humano de qualquer tipo de atitude, incluindo o poder do homem sobre o homem, se essa fosse a sua vontade. O italiano comete, assim, um acto de pura libertinagem ao denunciá-la a ela mesma, como se fosse absolutamente necessário condenar o extremismo pelo extremismo. Não nos admirará que não só se aponte o dedo à corrupção, ao domínio individualista e ao egotismo com imagens altamente repulsivas, como também se ensaie sobre a delação em tempos de ditadura (a sequência dos escravos denunciados atraiçoarem os companheiros com facilidade é bem ilustrativa do que acabo de referir). É, aliás, nesta cena passível de ser vista como ridículo entretenimento, que, também, se identifica a alienação completa dos direitos humanos (que deveriam, a priori, ser tomados como bases implícitas de todo o nosso comportamento) nestes indivíduos que são tomados como pura carne sem alma ou raciocínio (abaixo, como encenam, de cão ou de merda): o facto de denunciarem as incorrecções dos companheiros é motivado não pelo sentido de quererem permanecer vivos mas, sim, duplamente, pelo sentido de serem privados da tortura e do castigo e de serem acompanhados numa humilhação agrupada. Porque, aqui, ficar vivo é mil vezes pior que morrer e porque, num regime autoritário, não se age correctamente para se merecer a liberdade – age-se correctamente para se merecer a possibilidade de não se ser castigado pelos supremos. Esta ideia, obviamente infernal, e paralela à circunstância behaviourista de transformar alguns dos escravos em personificações dos seus déspotas, mostra, com infeliz exactidão, o ponto a que Pasolini quer chegar com a sua poderosa alegoria política e ética: a conclusão de que os valores universais de justiça e de liberdade estarão eternamente condenados à lei do mais forte e ao triunfo do egocentrismo e do relativismo moral.
Por outro lado temos, claramente, a exploração do sexo até o impensável e das pulsões orgânicas e inconscientes do ser humano. Sem pudor, navega-se até o limite da mente de cada indivíduo, onde o bem não é o valor que vinga em última instância, mas o princípio do prazer, da mórbida e freudiana curiosidade pelo macabro, pela experiência e pela violência sadomasoquista, seja física, seja psicológica. Não obstante, este trabalho não se aproxima, nem de longe nem de perto, das produções de cariz pornográfica (que se baseiam na estimulação do observador pelo sexo reproduzido), pelo que este, o sexo, é perspectivado como forma última, não de deleite, mas de punição, degradação e primitivismo. E, apesar de Pasolini captar, com exímia atenção, a efervescência carnal dos quatro homens, repugnantes como simplesmente os podemos classificar, pelos temas mais improváveis (onde se incluem o sofrimento de outrem e a própria morte), demonstrando o carácter animal, desconhecimento e tabu do ser, o realizador revira-se, com engenhosa subtileza, para o próprio espectador, retirado com os seus invisíveis binóculos, desumanizando-o. Aqui, a pior das personagens somos nós. Afinal, por que assistimos ao filme se, em superfície, é um espectáculo zoológico de degradação e barbaridade? E que legitimidade temos de julgar as atitudes daqueles tiranos se assistimos, impotentes, a todas elas?
É precisamente aqui que reside a ferida aberta que tanto divide o mundo em relação a Salò e o último golpe de génio de Pier Paolo Pasolini: o facto de este filme, obra-prima como importa reforçar, confirmar o início de uma nova era, a do sodómico voyeurismo pela banalização e gosto da morte e da crueldade humanas.