Gus Van Sant é, sem margem para dúvidas, um dos grandes cineastas, na verdadeira acepção do termo, da contemporaneidade e, como tantos outros, o seu génio, apesar de implícito e inclusivo na sua própria filmografia dos anos oitenta e noventa (numa fase mais comercial, noutra, mais experimental e independente da comum concretização cinematográfica) revelou-se, na totalidade, no virar de um novo milénio, na última década por que passamos, na qual assinou cinco filmes que, sendo díspares, muito têm em semelhança: em 2002, o subversivo e belo “
Gerry” (
crítica), no ano seguinte, a obra-prima “
Elephant” (
crítica), em 2005, o filme semi-biográfico de Cobain “
Últimos Dias” (
crítica), dois anos depois, a adaptação de um ensaio dostoievskyano “
Paranoid Park” (
crítica) e, em 2008, o reconhecido “
Milk” (
crítica). O que, efectivamente, e reparámos caso nos voltarmos para a análise do anterior trabalho do autor norte-americano, reconhecemos, é a união de um elemento em comum, de um estado que é valorizado e trabalhado como um fantasma de toda a sua obra: a solidão.
Percepcionada por Van Sant, a solidão anuncia-se como uma condição inerente, de forma orgânica e normal, ao ser humano. Mais do que natural, esta é vista como basilar, apesar das circunstâncias em que pode surgir. Por outras palavras, podemos reconhecer a existência de duas solidões ─ a que se demonstra inevitável à existência do protagonista e a que é, de forma plena e lúcida, procurada por ele, seja por que motivo ou motivos. Esta dualidade de isolamentos, apesar de, na sua essência, se volverem ao mesmo, é importante que seja realizada, a fim de percebermos os contextos em que as personagens do mundo da obra do realizador se movem.
A primeira enunciada sucede sempre, necessariamente, num dado momento da vida: no fim desta. Assim, para Gus, todo o homem, mesmo fisicamente assistido, morre sozinho, só no seu id se nos quisermos voltar para a psicanálise, no espectro da sua subconsciência e na revelação, esta já límpida, que o último instante da existência poderá proporcionar, no limiar da metafísica do espírito, que não é passível de se ver acompanhado. Será, pois, interessante reparar, a título de alguns exemplos (todos eles retratando, curiosamente, um homicídio), que tal ocorre em “Milk”, quando Harvey é morto, simbolicamente vislumbrando o seu reflexo numa janela que direccionava o olhar para a bandeira dos Estados Unidos da América, e é filmado, por breves momentos, a contemplar-se; em “Paranoid Park”, quando o segurança da estação de comboios, após empurrado por Alex para a linha e morto pela passagem de uma locomotiva, o olha nos olhos em genuíno desespero, procurando por algo, que não a intangível sobrevivência, que nem ele saberia o que seria; ou em “Elephant”, quando Michelle, procurando companhia e ocupação nos livros da biblioteca, é repentina e brutalmente assassinada frente a todos, mantendo-se, nos últimos e escassos momentos de “si”, ao lado dos livros, que não lhe servem, então, de nada; ou no remake de “Psycho” (original de Alfred Hitchcock), com o homicídio já conhecido de Marion na banheira; ou em “Disposta a Tudo”, quando Larry é morto por Suzanne. Em “A Caminho de Idaho”, a morte de Bob, apesar de evidenciar o fatídico e indesejado retiro do mesmo, é ligeiramente desigual, dada a sua origem ser um ataque cardíaco. Todavia, não só a solidão inevitável à existência do protagonista nos aparece no momento da sua morte. Aliás, vários são, ainda que não forçosos, os momentos em que Gus Van Sant constata que nos poderemos sentir retirados do mundo sem que tal queiramos. Em “Mala Noche”, Johnny é um mexicano imigrante que rejeita o desejo de Walt, vendo-se numa nova América, apartado de qualquer sítio que possa considerar uma casa, onde a linguagem e o amor têm idiomas diferentes do seu. Em “O Bom Rebelde”, é-nos descrito o arco de mudança de Will, que se isola na dissonância que lhe afunda o entendimento, navegando entre a sua personalidade moldada pelo meio por onde cresceu e as múltiplas capacidades da sua sobredotada inteligência (reveladas sem que este o quisesse), e cuja situação vê um revés após uma decisão que, apesar de influenciada, foi pessoal e resultado de um afectado enclausuramento interior. No mencionado “Paranoid Park”, evidenciamos o estado de loucura interna a que Alex se leva, pelo peso inconjecturável da culpa, à aflição de uma sempre incompreendida solidão. Já em “Elephant”, a supracitada Michelle revelava-se em malquerido estado de retiro, resultado da violência psicológica exercida pelos colegas e da ausência de amigos ou de pessoas que com ela comunicassem verdadeiramente. A procura de locais, como a biblioteca, que lhe possibilitavam ser útil e interagir, não importava se de forma impessoal, com outras pessoais, como o bibliotecário, apenas nos confirma a animosidade pelo facto de estar só. O mesmo filme prima, portanto, por nos conseguir mostrar como que em locais tão movimentados, agitados e ocupados, como a escola e os seus corredores, se remisturam relações interpessoais, esquecendo os apartados, que se aglomeram na ruidosa multidão. Tal é denunciado pelo realizador num exacerbado derrotismo, que filma, com deleite e acalmia voyeuristas, o submundo dos retirados da sociedade – os delinquentes e os homossexuais, por exemplo –, como se lá residisse a esperança de encontrar a percepção e o entendimento que é sentir-se sozinho pela rejeição.
O segundo dito tipo de solidão, que a tratava como procurada e tencionada pelo protagonista, é vista por Gus Van Sant como, grosso modo, um estado fulcral para a total revelação do mundo e de si mesmo. Sendo a mais complexa, também surge apenas em escassos momentos e, nalgumas vidas errantes, esta nem se chega a manifestar. É na solidão que reside, para a personagem, a verdade, a possibilidade para partir para um estado de única introspecção e avaliação do real, de pura interacção com a Natureza viva e natural (representada, na imagética, pela contemplação longa daquilo que é coercivo ao homem e belo, como o verde da floresta ou a amplitude de um céu azul, representada, no som, pela melodia calma, distante, misteriosa e compassiva de uma criação de arte humana ou pelo recurso de sons viscerais e expansivos, como é o caso do cântico dos pássaros) que serve, por sua vez, como ponte para a síntese da sua própria natureza e pureza. Tudo isto se poderá reparar em “Últimos Dias”, que determina os últimos dias vividos por Blake por sua conta, perdido e retirado num mundo dentro de si, manifestando-se no poder íntimo e místico da música. Daí o filme ser, na maior das probabilidades, tão inacessível: a força do nosso protagonista tem uma só uma alma só, o que será o mesmo se disséssemos que ele apenas seria compreendido por ele mesmo (uma personagem de ficção torna-se independente do criador e do público) e as imagens que tão serenamente acompanhamos apenas serviriam para mostrar a impossibilidade da existência uma objectivação directa como via de compreensão de um outro ser humano. Aqui, não importam as razões que motivaram o suicídio de Blake – importa sim constatar que os seus últimos momentos foram presenciados em total reflexão da existência, da identidade, do mundo e da vida.
E assim estabelecemos a conexão com “Gerry”, que demonstra ser a confluência das duas explicitadas solidões. Se, numa primeira instância, constatamos que os dois Gerry viajavam, sob o espectro fatal e indeclinável da morte, juntos, podemos, também, admitir que a junção entre os dois, que demonstram unir-se em situações-limite que os põem à prova, levou a uma consequente solidão, que se mostrou necessária mas vital. A revelação última do Gerry de Casey Affleck, exterior e inultrapassável, apesar de ser compartilhada com o Gerry de Matt Damon aquando da interacção dos dois com a natureza recheada pela poesia musical de Arvo Pärt, mostrou-se também diferente da dele dado que, morrendo primeiro na mais transparente e amargurada solidão, agravou a sentida pelo outro, que acaba, na prática, consigo mesmo, no Infinito do deserto da morte. Contudo, a companhia da Solidão (passe-se a implícita redundância), fazia-se sentir em ambos protagonistas enquanto estavam juntos, se atentarmos ao facto de que se comungavam, em imaculabilidade e transcendência, consigo e com um mundo exterior, vivo e inumano.
Resta-nos concluir sabendo da determinação van santiana de que, apesar de todas as uniões que coabitam no universo das possibilidades, o ser humano é genuinamente um ser condenado à solidão, tendo, pois, que saber aproveitar-se dela, deslocando-a para múltiplos caminhos na sua vida, sendo a procura de um significado desta o mais importante de todos eles.