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quarta-feira, novembro 14, 2012

Laurence Anyways – a criação e a colagem

O último filme de Xavier Dolan, apontado como um dos possíveis vencedores da competição do Lisbon & Estoril Film Festival, desaponta; não porque tivessem sido criadas expectativas à volta do trabalho do “petit génie de Cannes” (como foi referido por Melvil Poupaud na sessão a seguir ao filme), apenas porque se pressentia uma evolução relativamente aos seus filmes a este precedentes.

Laurence é um professor de liceu de trinta e cinco anos cujo maior conflito é ter nascido no corpo de um homem sentindo-se mulher. Ao longo do filme passam-se dez anos que acompanham o processo de transfiguração de género por que Laurence atravessa.



Um dos pontos mais interessantes do filme é a fuga ao que seria expectável do tratamento deste tipo de temáticas: as dores da transição, os conflitos internos inerentes a esse processo, as dúvidas e incertezas que eventualmente colocariam em causa essa transformação, …; aqui o que se mostra é a dificuldade no processo de renovação da imagem daquele homem sempre do ponto de vista exterior, ou seja, como é que as pessoas que observam esta mudança passam também por uma caminhada transitiva tão forte como aquele que muda, neste caso a sua namorada e a sua mãe. Ao mesmo tempo levanta-se um paradoxo: a narrativa tenta fugir ao cliché, enquanto a gramática vai sempre convergir às soluções mais básicas e expectáveis relativamente à construção da linguagem.

Isto não é, de todo, o que mais desaponta no filme, porque ao observar a curta obra (sem relativizar este aspeto tendo em conta a idade do autor) de Dolan, o que se retém das suas duas longas-metragens é um pastiche de referências diversas que são aplicadas sem que para isso haja qualquer intenção gramatical que vá de encontro ao tratamento narrativo da ação.

Neste Laurence Anyways isto agrava-se: para além da colagem das referências imagéticas que é feita sem qualquer propósito (exemplo da cena da festa em que há uma cópia descarada do estilo do videclip The Knife, Pass This On), a tentativa de criação de uma estética própria é feita pelo recurso a marcas do trabalho de câmara e montagem que se aproximam da histeria protagonizada pelo trabalho de Cassavetes (a noção de histérico, trabalhada por Deleuze relativamente à obra de Francis Bacon que se verifica no tratamento do estilo feito pelo cineasta referido), que resultam num ritmo frenético e desconectado de qualquer sentido cinematográfico. Dolan não é um auteur, é um cinéfilo que ainda anda à deriva na procura da criação de um estilo singular, mas para isso tem de se demarcar das suas referências e gostos.

O trabalho de inspiração sempre aconteceu na história da criação artística, mas não é pela aplicação direta dessas alusões que um estilo se concretiza.

Contudo, a análise paradoxal que é feita a este filme revela potencialidades que se podem vir a concretizar: há algumas ideias de cinema, há a construção formidável de personagens com uma profundidade relevante; falta o trabalho, a aprendizagem e o pensamento; falta não fazer filmes que respondem às vontades dum festival, mas sim àquilo que se quer tratar, e à criação duma gramática sem preconceito, dotada de ingenuidade e franca.

Ressalvar o trabalho dos atores Melvil Poupaud e Suzanne Clément que têm momentos absolutamente singulares e comoventes.

segunda-feira, novembro 12, 2012

Titanic anyways

No cinema, tal como na arquitetura, existe uma tendência contemporânea de sermos guiados por um minimalismo que ganha, por exemplo, expressão evidente na filmografia de Robert Bresson. Quase como em reação a esta filosofia, Xavier Dolan aterrou no mundo das imagens ditando, através do seu universo, algo de muito simples: que mais... é sempre mais.

E este é um lema que os seus filmes exibem em toda a sua extravagância. Até agora são “apenas” três as longas-metragens – número que se torna tanto mais impressionante quando pensamos na idade do realizador: “apenas” 23 anos. Ao mesmo tempo, Xavier Dolan, nascido no Quebeque (Canadá), é um daqueles casos de rapaz-prodígio proclamado e acarinhado por um festival de cinema – neste caso o de Cannes, onde começou por apresentar o seu primeiro filme que fez com 19 anos, J’ai tué ma mère (2009).

Ainda que este drama autobiográfico, que nos trilha os labirintos da sua relação disfuncional com a mãe, não tenha estreado entre nós, a receptividade tida por Os Amores Imaginários (2011) comprovava então o poder da Internet na nova geração de cinéfilos e que Dolan se tinha tornado num dos cineastas de culto em Portugal.

Por tudo isto Laurence Anyways, filme intimista com duração de épico (quase três horas), seja esperado com tanta ansiedade no Estoril & Lisbon Film Festival, onde se [estreou ontem] na secção competitiva (sala 1 do cinema Monumental às 21h45). Depois de ter sido projetado na edição deste ano do Festival de Cannes (o facto de ter sido programado na secção paralela Un Certain Regard e não na competição oficial gerou alguma discórdia mediática), Xavier Dolan foi recebido pelos franceses entusiasticamente: a revista de cinema Cahiers du Cinéma dedicou-lhe um especial destaque carregado de elogios e Cannes acarinhou o filme com dois prémios: a Queer Palm (atribuída a filmes de temática homossexual, bissexual ou transgénero) e o prémio para melhor atriz, Suzanne Clément, que surge aqui como autêntico furacão de emoções.

Quem nos deixa absolutamente rendidos é, também, o seu protagonista que empresta o seu nome ao título, interpretado por Melvil Poupaud (que estará presente hoje nas sessões). Ao calçar os saltos altos de Laurence, Poupaud dá-nos a transfiguração de alguém que se apercebe que durante a sua vida viveu uma mentira devastadora: que era homem para os outros ainda que se sentisse sempre mulher. O drama, contudo, não é previsível (o foco poderia estar previsivelmente nos traumas desta transformação): traz-nos, pelo contrário, a relação de um casal apaixonado que se sente obrigado a gerir a implacabilidade destas mudanças.

O que se torna, isso sim, previsível é como Dolan trata formalmente o seu primeiro “Titanic”. A ambição, desde logo assumida, de construir um melodrama barroco e hiperestilizado torna-o tão comovente como superficial, tão interessante como inconsequente. Apesar de notarmos que já está a emergir uma voz só sua, o seu cinema continua a querer chamar muitos outros cinemas: Gus Van Sant, Cassavetes ou, desta vez mais assumidamente, Douglas Sirk (há folhas de outono que preenchem um plano enormemente aberto, como acontece em Escrito no Vento, de 1956; há camisolas a cair do céu...).

A energia é assim visceral (histriónica, tal como todas as suas personagens) e o resultado esquizofrénico, ainda que longe de ser maçador. No entanto, não conseguimos deixar de sentir que acabamos de assistir a um teledisco com duração de “longa”, tal é a enorme seleção musical de um apurado sabor pop (convocam-se os Fever Ray, Depeche Mode, Duran Duran...) ou as referências visuais (cita-se, por exemplo, o teledisco de Fade to Grey, dos Visage). Mas o cinema de Dolan precisa de mais silêncios, um pouco de mais calma, de aprender a saber quando se deve calar.

Este texto foi publicado no Diário de Notícias (papel e e-paper) a 11 de novembro de 2012.

sexta-feira, setembro 09, 2011

Queer cinema (8/30): O enfant terrible que veio do Canadá

A dar seguimento a um realizador cuja primeira obra projectava parte da sua própria intimidade (Tom Ford com Um Homem Singular), importa referir o jovem canadiano Xavier Dolan(-Tadros), que com o filme J’ai tué ma mère (um Tudo sobre a minha Mãe que estuda sobre as relações familiares na sociedade contemporânea, focando-se particularmente na de um adolescente de dezasseis anos, atrevido e explosivo como é dado na idade, fervilhante em ideias e criações, apaixonado pelo namorado e que discute constantemente com a mãe) comemorou no Festival de Cannes a sua estreia no cinema, com 20 anos acabados de fazer. 

Em boa verdade, podemos considerar este autêntico benjamim uma espécie de ícone de toda uma nova geração de realizadores que se tem vindo a formar na era do culto da rapidez no consumo da imagem e do audiovisual. Nascido em 1989 no Quebeque, a sua incursão pelo universo das câmaras foi precoce. Aos cinco anos, representou pela primeira vez numa série televisiva e em anúncios publicitários e, em 1997, estreou-se como actor no cinema, à semelhança do que fez o pai, acabando por ter mais projecção no filme de terror franco-canadiano Martyrs, de 2008. No entanto, a decisão de entrar no cinema de um ponto de vista mais criativo e autoral fez-se relativamente tarde, aos 17 anos, quando conheceu "as diferentes pessoas" que o "inspiraram e mostraram o caminho" e a obra de grandes nomes como Abbas Kiarostami, Gus Van Sant e François Truffaut (este último que, lembra Xavier, os amigos viam já com nove anos enquanto ele se divertia ainda com o Sozinho em Casa). 

A ele, chamam-lhe de hipster, um rebelde egocentrêntrico que só se quer filmar e falar de si. E, de certa forma, é verdade. Apesar da sua destreza no plano da realização e argumento (fruto de uma cinefilia tardia vista em deslumbramento e de uma experiência pessoal semelhante à de tantos outros adolescentes – e daí a facilidade da identificação com os seus filmes), Dolan é uma voz singular agregadora de muitas outras. Ou, como já escrevi, “um Gus Van Sant que se casa com Wong Kar-Wai e tem Pedro Almodóvar como amante”. 

Contudo, não retiremos mérito à sua segunda longa-metragem, Amores Imaginários, que saiu há poucos dias no mercado português de DVD. Amores Imaginários, que segue um triângulo amoroso (do qual, evidentemente, Dolan faz parte) parte de uma busca – do amor, de uma forma de reenquadrar a realidade, de um estilo que possa dizer “é meu e de mais ninguém”. Enfim, de uma identidade, se quisermos por nestes termos. 

Apesar de não devermos subestimar as qualidades cinematográficas da jovem obra de Xavier Dolan, há a certeza de que é preciso um amadurecimento. E, no seu caso, parece que tentar é a única solução (da sua autoria, esperamos Laurence Anyways, longa-metragem sobre o amor impossível entre um transexual e uma mulher, e Letters to a Young Actor, vão estrear em 2012 e 2014, respectivamente) . De certa maneira, é precisamente essa pulsão para fazer, sem medo de errar, que mais podemos apreciar no seu cinema, carregado de uma energia que só um jovem poderia oferecer.

A edição em DVD de Amores Imaginários pode ser comprada aqui. Este texto congrega partes de dois artigos publicados no blogue aqui e aqui.

quarta-feira, setembro 07, 2011

Uma história do cinema queer (6/6)
Pelo século XXI

Foi em Fevereiro do ano 2000. Hillary Swank, nomeada pelo seu papel em Boys Don’t Cry (1999) de Kimberly Pierce, ganhava o Oscar de Melhor Actriz, a Academia distinguindo assim, com o seu mais importante prémio, a representação no grande ecrã de uma personagem transgénero. O filme partia da história real (e trágica) de Brandon Teena, a realizadora tendo lido então All She Wanted, livro de Aphrodite Jones que documentava o caso real de Teena, desenvolvendo o argumento que deu a Hillary Swank o papel que lhe valeu o Oscar. A década dos zeros mostrava assim o que parecia ser uma nova etapa no relacionamento do cinema com as representações de figuras LGBT. O facto da estreia ter coincidido com um novo crime de ódio, que custou a vida a Mathew Shephard (caso que podemos revisitar em The Laramie Project, filme de 2002 de Moises Kaufman) e alguns factos que o tempo somou depois a esta história deixaram contudo claro que há ainda conquistas pelo caminho até se atingir uma eventual igualdada na forma do cinema, de quem o faz, promove, divulga e ver, encarar as sexualidades normativas e não normativas.

O cinema mainstream tinha já conhecido alguns episódios de bom relacionamento com personagens homossexuais, bissexuais e trangénero nos noventas. Um dos exemplos de maior sucesso chegara da Austrália, em 1994, com The Adventures of Priscilla, Queen Of The Desert, de Stephan Elliot. Terence Stamp (bem longe de outros papéis que conhecera na sua carreira), Hugo Weaving e Guy Pierce vestem a pele de três travestis, em viagem ao coração da Austrália em busca de emprego. Pelo caminho ouvem canções dos Abba. E descobrem que a noção de preconceito pode ser coisa sem sentido em sociedades rotuladas como “primitivas”... A banda sonora, entre canções dos Abba e clássicos disco sound fez do filme um fenómeno maior que a sua expressão no ecrã e acabou por gerar um musical de palco. Ainda mais próximo de plateias mainstream, a estreia em cinema dos irmãos Wachovski (mais tarde os criadores de Matrix) fez-se em 1996 com Bound, thriller que recorda ecos do film noir e que toma como central a relação entre duas mulheres, interpretadas por Jennifer Tilly e Gina Gershon), numa representação contudo a milhas da pulsão criativa que então surgia em exemplos nascidos do new queer cinema.

A década dos zeros abriu mais ainda o espaço do circuito mainstream a represençações de personagens e vivências LGBT. Um dos melhores exemplos deste cenário coube a Transamerica (2005, foto), de Duncan Tucker. Protagonizado por Felicity Huffman (num desafio de interpretação em registo bem distante do que lhe dera fama em Donas de Casa Desesperadas), a história de Bree, que espera a operação de mudança de sexo e com ela apagar a sua vida até então e que descobre então que tem um filho. O papel valeu à actriz uma nomeação para os Oscares e um Globo de Ouro. Mais sorte teve Sean Penn que, em Milk (2008), de Gus Van Sant, arrebatou da Academia o Oscar para Melhor Actor depois de interpretar a figura de Harvey Milk. Na cerimónia de entrega das estatuetas douradas, tanto ele como Dustin Lance Black (o também premiado autor do argumento de Milk) protagonizaram discursos emotivos, mas contundentes, que marcaram politicamente a história dos Oscares.

Nomeado para diversos Oscares, entre os quais o de Melhor Filme, Brokeback Mountain (2005, primeira foto), de Ang Lee, é talvez o mais bem sucedido dos casos de vida mainstream de uma história de amor entre personagens do mesmo sexo. Baseado no conto homónimo de Annie Proulx, narrando o romance escondido de dois cowboys que, ao longo de 20 ano se encontram, espaçadamente, para viver o amor que sentem um pelo outro na solidão de uma paisafgem de montanha, o filme foi protagonizado por actores de primeiro plano (em concreto Jake Gylenhall e Heath Ledger). Ang Lee (que há havia abordado o amor gay em Banquete de Casamento, de 1993), saiu da cerimónia com o Oscar de Melhor Realizador. Já o prémio de Melhor Filme acabou entrege ao (hoje praticamente esquecido) Crash.

Nem todos os filmes com carreira mainstream chegaram aos patamares de premiação de Boys Don’t Cry, Milk ou Brokeback Mountain. Mas ao longo da última década podemos a estes juntar casos como The Deep End (2001, foto), de Scott McGhee e David Siegel sobre como uma mãe (Tilda Swinton) procura encobrir o que julga ter sido a morte do homem com quem o seu filho teria uma relação. Com grande impacte internacional convém referir ainda o impacte de O Fantasma (2000), primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues. E reconhecer a abertura de curiosidade na exploração de temas e personagens que a década assistiu, revelando olhares sobre a velhice de figuras homossexuais, como se viu em Solange du hier bist (2007), do alemão Stefan Westerwelle ou Avant Que J’Oublie (2007) de Jacques Nolot.

Apesar desta visibilidade maior, a esmagadora maioria da cinematografia queer continua “invisível” nos circuitos comerciais, cabendo aos festivais de cinema, em particular aos que divulgam esta cinematografia, o papel de representar o elo de ligação entre criadores e espectadores. Os festivais de cinema queer (e são muitos pelo mundo fora) serão mesmo hoje um motor de dinamismo que desafia realizadores e demais profissionais, abrindo espaços não apenas a representações de personagens LGBT no grande ecrã como a uma forma de ousadia narrativa e estética que, desde os dias de Kenneth Anger e Jean Genet, passando depois por nomes como Jean Cocteau, Fassbinder, LaBruce, Araki, Van Sant ou Haynes, ajudaram a revelar novos caminhos ao cinema. Sem sermos exaustivos, podemos apontar uma mão cheia de casos de filmes que, revelados em festivais de cinema queer, só em pontuais mercados chegaram às salas de exibição no circuito comercial.

Filmes como Glue (2006), de Alexis dos Santos, XXY (2007) de Lucia Puenzo, The Bubble (2006) de Eytan Fox, The Blossoming Of Maximo Oliveros (2005), de Auraeus Solito, Presque Rien (2000), de Sebastien Lifchitz, Garçon Stupide (2004) de Lionel Baier, Gypo (2005), de Jan Dunn, Saturno Contro (2007) de Ferzan Ozpetek, Soundless Wind Chime (2009, foto) de Kit Hung, J'ai Tué Ma Mère (2009), de Xavier Dolan ou Miss Kicki (2009), de Hakon Liu, são apenas alguns entre os muitos exemplos de títulos que poderiam ter conhecido visibilidade adiante do espaço das programações dos festivais. Mais “radicais”, mas não menos interessantes, filmes como Otto: Up With Dead People (2008) de Bruce LaBruce, Itty Bitty Titty Committee (2007) de Jamie Babbitt ou Rabioso Sol Rabioso Cielo (2009) de Julian Hernandez vincam por outro lado o carácter renovadamente ousado e algo subrevsivo que continua a marcar algumas das melhores propostas que passam pelo circuito dos festivais.

Outra sorte tiveram, portanto, filmes como As Canções de Amor (2007), de Christophe Honoré, Shortbus (2006) de John Cameron Mitchell, Tarnation (2003), de Jonathan Caouette, Mysterious Skin (2004) de Gregg Araki, Far From Heaven (2002, foto), de Todd Haynes ou Savage Grace (2007), de Tom Kalin, alguns dos raros casos de títulos que mereceram estreia entre nós. Destaque-se, em jeito de nota final, o caso de O Último Verão da Boyita (2010) de Julia Solomonoff. Vencedor do Queer Lisboa em 2010 foi o primeiro caso de triunfo no único festival de cinema queer português a chegar ao circuito comercial. Coincidência? Ou primeiros sinais de uma nova realidade?

PS. Em breve aqui publicaremos um episódio extra sobre o cinema queer made in Portugal.

terça-feira, maio 24, 2011

O benjamim do cinema canadiano



Aos 22 anos Xavier Dolan começa já a afirmar-se como um nome de peso de uma nova geração de realizadores

Xavier Dolan podia ser uma representação da pintura expressionista «O Grito» de Edvard Munch. Mas o jovem canadiano, que acabou de estrear esta semana «Amores Imaginários», a sua segunda longa-metragem que escreveu, realizou, produziu e protagonizou, tem vindo a comprovar que é cada vez mais uma figura presente na expressão cinematográfica contemporânea.

Em boa verdade, podemos considerar este autêntico benjamim, que acaba de comemorar o vigésimo segundo aniversário, uma espécie de ícone de toda uma nova geração de realizadores que se tem vindo a formar na era do culto da rapidez no consumo da imagem e do audiovisual. Nascido em 1989 no Quebeque (Canadá), a sua incursão pelo universo das câmaras foi precoce. Aos cinco anos, representou pela primeira vez numa série televisiva e em anúncios publicitários e, em 1997, estreou-se como actor no cinema, à semelhança do que fez o pai, acabando por ter mais projecção no filme de terror franco-canadiano «Martyrs», de 2008. No entanto, a decisão de entrar no cinema de um ponto de vista mais criativo e autoral fez-se relativamente tarde, aos 17 anos, quando conheceu «as diferentes pessoas» que o «inspiraram e mostraram o caminho» e a obra de grandes nomes como Abbas Kiarostami, Gus Van Sant e François Truffaut (este último que, lembra Xavier, os amigos viam já com nove anos enquanto ele se divertia ainda com o «Sozinho em Casa»).

É com essa idade que o ainda adolescente decide escrever «J’ai Tué ma Mère» (que podemos traduzir como «Matei a minha Mãe»), uma história semi-auto-biográfica sobre a sua descoberta da sexualidade e a relação auto-destrutiva que mantém com a mãe. Dolan estreia-o no Festival de Cannes em 2009, que o recebeu com grande entusiasmo (ainda que apontando dedo a um aparente egotismo existente no filme), galardoando o realizador (entretanto com 20 anos) com três prémios. A sua primeira longa-metragem, que não teve entre nós estreia comercial, é uma experiência que confirma que o canadiano não deseja, com os seus filmes, declarar amor ao cinema, mas «simplesmente contar histórias».

«Amores Imaginários», que lança em 2010 e que se centra num triângulo amoroso (mas menos interessante que o de Bertolucci, em «Os Sonhadores», ou o de Truffaut, em «Jules et Jim») no qual a personagem interpretada por Dolan surge como protagonista, é a continuação falhada da projecção da sua persona onanista e solitária (pelo menos assim se considera), e a procura desenfreada de um estilo que possa dizer que é seu, ainda que tenha alguns momentos interessantes (resultantes essencialmente do argumento, área onde, há que reconhecer, é realmente habilidoso). Cruzando as cores e personagens estilizadas do universo de Almodóvar, a liberdade de Godard (ídolo com quem competiu no festival com esta obra) e de Van Sant, e os slow-motion presentes no belo cinema de Wong Kar-Wai, não se sabe se Xavier Dolan, nesta etapa da sua vida, é um prodigioso cinéfilo ou cineasta impulsivo do pastiche.

Mas Xavier está confiante e parece querer amadurecer fazendo mais filmes. Comprovam-no «Laurence Anyways», longa-metragem sobre o amor impossível entre um transexual e uma mulher, e «Letters to a Young Actor», a estrear da sua autoria em 2012 e 2014, respectivamente.

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Este texto foi publicado originalmente no dia 21 de Maio de 2011 na revista Notícias Sábado do DN e JN.

quarta-feira, maio 04, 2011

IndieLisboa 2011 [1]: Xavier e os seus amores imaginados

O IndieLisboa dá o início já no dia de amanhã, às 21:30, tendo como filme de abertura, projectado na cerimónia, a segunda longa-metragem do jovem cineasta canadiano Xavier Dolan, Amores Imaginários, que o lançou com apenas vinte e um anos de idade. O filme, que não está em competição e será amanhã analisado, procede o interessante e semi-autobiográfico J’ai tué ma Mère (ler crítica), a crónica de uma relação disfuncional entre uma mãe e o filho adolescente. Estreia, comercialmente e em Portugal, no dia 19 de Maio (trailer em baixo). Ainda no Cinema São Jorge, projectar-se-ão «Winter Vacation», filme chinês de Li Hongqi, e «Vampires», do belga Vincent Lanno. Paralelamente, o Grande Auditório da Culturgest passará, às 21:15, «Carlos», de Olivier Assayas, filme com mais de 5 horas de duração que se debruça sobre uma organização terrorista e que, entre nós, estreia no dia 2 de Junho. O Pequeno Auditório terá «Todos vós sodes Capitáns», filme espanhol de Oliver Laxe e, no Teatro do Bairro, o filme francês «Rubber», de Quentin Dupieux, será exibido.

O novo filme de Xavier Dolan foi opinado (post original aqui) pelo jornalista e um dos autores do sound+vision Nuno Galopim, artigo que transcrevo e faço minhas as suas palavras:
Foi uma das boas surpresas da edição 2010 do IndieLisboa. Com evidente carga auto-biográfica, e integrado na secção Cinema Emergente, o filme J’ai Tué Ma Mère revelava o jovem realizador canadiano Xavier Dolan num emotivo - e muito gritado - debate entre um filho (por si interpretado) e uma mãe. O estranho encontro com tão inesperada proposta fez desde logo de Les Amours Imaginaires um dos títulos mais aguardados da edição deste ano do IndieLisboa. Tanto que acabou mesmo por repartir com Assayas o estatuto de filme de abertura.
O novo filme mostra não apenas maiores ambições na narrativa e no pensar de uma imagem, como reflecte o que parece ser um orçamento menos próximo do quase nada que se sentira no filme de estreia. À ambição (que nunca fez mal a nenhum artista) não corresponde contudo igual poder de concretização.

Cruzada com pequenas vinhetas de tertúlias (ou são entrevistas?) que, mesmo concentrando alguns dos melhores instantes de humor do filme, acabam por não conseguir um relacionamento consequente com a linha narrativa central, Les Amours Imaginaires é, em traços muito largos, a história de um triângulo amoroso (mais desejado que realmente concretizado). Na verdade é mais um jogo de poder nas mãos de um dos vértices (o loiro Nicolas), os outros dois (Francis, interpretado pelo próprio Dolan, e Marie) imaginando um amor perfeito que, contudo, não está nas suas mãos.

Apesar de ocasionais momentos que reafirmam no jovem realizador um talento a acompanhar, Dolan junta contudo demasiados ingredientes neste segundo filme e perde a mão na hora de dosear os temperos. Uma colecção simplesmente fabulosa de canções (onde encontramos The Knife, Vive La Fête, Indochine ou uma versão de Bang Bang em italiano, por Dalida) e um trio de personagens que garantem alguma solidez ao centro de gravidade da narrativa impedem mesmo assim que o tropeção seja maior. Mas, garantidamente, fica aquém das expectativas.




[este post foi actualizado às 16:06, no dia 05/05/2011]

segunda-feira, agosto 09, 2010

J’ai tué ma Mère


É um Gus Van Sant que se casa com Wong Kar-Wai e tem Pedro Almodóvar como amante. Mas é, também, antes de tudo isso, íntimo, belo, humano,… especial, como o protagonista detestava ser catalogado. Considero bastante assombroso como o canadense Xavier Dolan-Tadros, que vestiu a pele de actor, produtor, argumentista e realizador, apenas com dezanove anos, no seu primeiro filme, chega a um patamar de sobriedade e unicidade tão vincado e forte em todas as fases do trabalho. Não me admira, também, que os críticos tenham recebido J’ai tué ma Mère com particular estranheza, uns observando a atípica construção narrativa e estética com amor, outros com repulsa, focando-se no narcisismo da obra semi-auto-biográfica (mas não são todas?).

«Matei a minha Mãe» é um «Tudo sobre a minha Mãe» que estuda sobre as relações familiares na sociedade contemporânea, focando-se particularmente na de um adolescente de dezasseis anos, atrevido, egocêntrico, explosivo como é dado na idade, fervilhante em ideias e criações, apaixonado pelo namorado, que discute constantemente com a mãe – e esta, por sua vez, é sarcástica mas complacente, frágil mas mascarada, esforçada mas incapaz de compreender o seu fruto. E é pela oposição tão demarcada de personalidades e a desconstrução do choque entre ambas, associado ao irremediável complexo de Édipo, que faz com que tudo flua com naturalidade, sem maniqueísmos morais. As discussões, engenhosamente arquitectadas, só demonstram a sinceridade e potência com que o cineasta faz transpirar as suas personagens e as circunstâncias por onde estas caminham, debruçando-se sobre um tipo de amor disfuncional e bipolar, pelo outro e por elas mesmas, que atinge o cume do entendimento na distância e no silêncio e não nos sucessivos “amo-te” e “odeio-te”que perfazem os diálogos entre mãe e filho. 

E finalmente Xavier mostra ter um excepcional bom gosto na sua criação no ponto formal, confluindo com a originalidade e a matemática dos filmes independentes mais recentes, através de uma atrevida mas harmoniosa montagem de planos minuciosamente decorados e pensados, muito à semelhança de Tom Ford, por exemplo. Mas agradou-me como ele, que ainda está tão fresco, tão vivo e tão jovem, não se resta à técnica e à sua experimentação, mostrando como não se tornou escravo desta, construindo uma docu-ficção que se apresenta como uma interessantíssima carta de amor à mãe a à sua intemporal figura.