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domingo, abril 01, 2012

A cena de Gaspar Noé (2): Carlos Pereira


De forma a coincidir com o mês da estreia do aguardado Enter the Void – Viagem Alucinante, pedi a alguns colegas e bloggers cinéfilos que elegessem “a” cena do cinema de Gaspar Noé, ou noutros termos: a cena que mais admiram em toda a sua filmografia. Carlos Pereira, um dos realizadores do documentário Um Filme Português (2011) e estudante de cinema em Barcelona, respondeu ao desafio. Muito obrigado, Carlos, pela tua colaboração.

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Gaspar Noé parece acreditar que a violência da vida se define em relação direta com a violência da mortalidade. Em “Enter the void”, tal como acontecia em “Irreversível”, o corpo é apenas um veículo da alma: meio de transporte sujo, desorientado, influenciável e condenado. Não é por acaso que o ponto de vista de “Enter the void” não é o de Oscar, o seu protagonista, mas o da sua alma. A câmara de Noé começa num absoluto ponto de vista subjetivo para, mais tarde, deambular enquanto energia numa cidade de Tóquio vista do céu. 

Como filmar a morte? Para Noé, a morte é sempre algo de inesperado, abrupto, que não oferece quaisquer hipóteses de redenção. Daí que a última imagem vista pelos olhos de Oscar após ser alvejado seja tão fascinante: a sua última visão da vida é um confronto com o seu próprio sangue, com a sua efémera materialidade. A viagem começa aí, com uma potência espiritual que se vai perdendo e encontrando no singular espaço das memórias afectivas. Sem coordenadas geográficas, o lugar da reminiscência transforma-se na única prova da irredutibilidade humana.

quarta-feira, março 21, 2012

A cena de Gaspar Noé (1): Bruno Leal




De forma a coincidir com o mês da estreia do aguardado Enter the Void – Viagem Alucinante, pedi a alguns colegas e bloggers cinéfilos que elegessem “a” cena do cinema de Gaspar Noé, ou noutros termos: a cena que mais admiram em toda a sua filmografia. Bruno Leal, autor do tumblr pós-filme, respondeu ao desafio. Muito obrigado, Bruno, pela tua colaboração.

★★★★★

Não é fácil aceitar que o sofrimento também pode ser belo… é difícil. 
É algo que só poderás compreender se mergulhares a fundo dentro de ti.
Rainer Werner Fassbinder

Vi-o em casa, num pequeno ecrã de televisão, quase uma década após a sua estreia, e ainda assim, teve em mim repercussões irretorquíveis. Não voltarei a vê-lo. Quero apenas guardar na memória uma das mais marcantes experiências que tive até hoje.

Ponderei durante algum tempo optar por uma cena de qualquer outro filme menos conhecido do realizador: Carne, Seul Contre Tous, We Fuck Alone (que aliás, parece todo uma única cena)… mas aparte dos seus êxtases, nenhum tinha “a” cena que pretendia, e foi inevitável a eleição da infame cena de violação a Alex (Monica Bellucci) em Irréversible, filme-choque causador de reacções polares, é amor ou ódio aqui, e ninguém lhe é indiferente.

Muitos conhecerão a cena sem terem visto o restante conteúdo do filme, outros tantos terão visto o filme por conhecerem a cena: “É a famosa cena”, dizem.

Porém, define ela todo o filme? Não, Irréversible é mais do que um grotesco acto de transgressão, mas é esta a cena que definiu o cinema de Gaspar Noé.

A audácia desta cena tem-se logo pela exposição, neutra, de um aspecto humano que a arte e o homem persistem em ocultar. Aqui dada sem moralismo, prefere-se uma violação como uma trágica experiência vivida, irreparável, irreversível como o tempo. Algo que é perceptível logo quando Alex entra no túnel: ninguém, nem mesmo o espectador, escapará à fatalidade daquele primeiro verdadeiro rasgo de proximidade que temos com esta personagem.

Quando entramos na sua pele, o flagelo procede-se e é-nos devolvida a confirmação do repúdio a um acto que muitos só terão visto ou experienciado nesse ecrã.

Naqueles onze eternos minutos, o espectador revê-se atormentado, tal como a protagonista. Ambos são violados ininterruptamente, dilacerados naquele único momento, como se tudo fosse real e não houvesse remanescente salvação. Pois, há aquela figura que emerge no fundo, que caminha, olha, pára, recua e desaparece.

Há aqui uma vertente humana (assentada em restantes cenas da película) que impede a gratuitidade da violência, elemento vital na obra do franco-argentino, ainda que se constate um sádico prazer na sua expressão radical, e se veja a beleza que o cineasta almeja no sofrimento. 

Não apenas um plano-sequência com exímios trabalhos de imagem e som mas antes, como Irréversible no seu todo, uma viagem inesquecível, para bem ou para mal, ao interior de cada um de nós. E isto é o cinema. Esta é “a” cena de Noé.

sexta-feira, setembro 30, 2011

7 memórias queer (6)

No contexto do festival Queer Lisboa João Lopes, crítico de cinema e co-autor do blogue Sound + Vision, escreve para O Sétimo Continente "7 memórias queer". Muito obrigado por esta valiosa colaboração.

1993 – M. BUTTERFLY, de David Cronenberg

A legenda talvez pudesse ser: “Mas afinal qual é o meu sexo?...”. Eis a questão: Song Liling (John Lone) é uma cantora da ópera de Pequim. Com a especificidade de, na tradição da ópera chinesa, todas as personagens serem interpretadas por homens. Quando o diplomata francês René Gallimard (Jeremy Irons) se apaixona por Song, que vê ele? O homem que faz de mulher? A Butterfly que é um homem? Ou a mulher que, sendo um homem, vive no interior do artifício codificado do espectáculo? Porque a história, qualquer história, passa por aí: o código dá prazer. E talvez que René (personagem verídica!), ignorando a duplicidade de Song, seja apenas esse amante trágico, anterior ao código, adorando na sua Butterfly um tempo primitivo, alheio à diferença sexual, envolvido numa totalidade maternal onde, a certa altura, se torna difícil respirar. Cronenberg, hélas!, não tem passado a vida a filmar outra coisa: chamemos-lhe a irrisão de qualquer diferença sexual. E que faz René? Perante o cruel vazio do desejo, assume, ele próprio, a personagem de Butterfly – é uma coisa sublime, quer dizer, próxima da nitidez da morte. Tenham medo. 

João Lopes

quinta-feira, setembro 29, 2011

7 memórias queer (5)

No contexto do festival Queer Lisboa João Lopes, crítico de cinema e co-autor do blogue Sound + Vision, escreve para O Sétimo Continente "7 memórias queer". Muito obrigado por esta valiosa colaboração.


1982 – VICTOR/VICTORIA, de Blake Edwards


Julie Andrews não interpreta exactamente uma mulher (Victoria) que se disfarça de homem (Victor). Na verdade, ela assume a identidade de um homem que finge ser uma mulher... Confuso? Sim, sem dúvida, e também devastadoramente divertido. No limite, Blake Edwards consegue colocar em cena, não apenas as fronteiras instáveis do bilhete de identidade sexual de cada um, como as suas permanentes ambivalências. Ou seja: Victoria não é tanto uma coisa ou outra... mas a sua peculiar acumulação. E neste exercício hiper-elegante, o cineasta é o primeiro a saber que o facto de Victoria (aliás, Victor, aliás, Victoria...) ser interpretada por Julie Andrews não é alheio à energia simbólica do filme e também ao seu subtil envolvimento emocional. Afinal de contas, ela foi durante muitos anos a imagem de marca de uma candura (também sexual) consagrada através de filmes como Mary Poppins (1964) e Música no Coração (1965). Mais ainda, estamos a falar de um casal: Blake e Julie eram casados desde 1969.

João Lopes

7 memórias queer (4)

No contexto do festival Queer Lisboa João Lopes, crítico de cinema e co-autor do blogue Sound + Vision, escreve para O Sétimo Continente "7 memórias queer". Muito obrigado por esta valiosa colaboração.


1971 – MORTE EM VENEZA, de Luchino Visconti

A história dos filmes, sobretudo dos mais “antigos”, pode e deve fazer-se também através das reacções e ideias que suscitaram no momento do seu lançamento: assim, hoje não temos medo do primeiro comboio filmado pelos Lumière, mas importa não esquecer que alguns dos espectadores de 1895 se desviaram nas cadeiras, receando ser atingidos pelo objecto “em movimento”. Algo de semelhante se pode dizer do filme de Visconti inspirado na novela de Thomas Mann (e, da parte do cineasta, na personalidade de Gustav Mahler): no momento da sua estreia, Morte em Veneza foi discutido menos como um ensaio sobre as ambivalências sexuais e mais como um exercício sobre a utopia de uma beleza radical – a de Tadzio (Björn Andresen), sob o olhar de Gustav (Dirk Bogarde). E talvez seja essa expressão, sob o olhar de, que, mais do que nunca, importa valorizar. Porque a visão de Gustav nunca é indiferente, muito menos assexuada; ao mesmo tempo, porém, há nela uma violência paradoxal que visa um tempo anterior a qualquer gesto sexual, uma espécie de neutralidade feliz de todas as formas de sexualidade. Bem sabemos que Gustav morre nessa contemplação, mas qualquer utopia tem um preço. 

João Lopes

terça-feira, setembro 20, 2011

7 memórias queer (3)

Durante o festival Queer Lisboa João Lopes, crítico de cinema e co-autor do blogue Sound + Vision, escreve para O Sétimo Continente "7 memórias queer". Muito obrigado por esta valiosa colaboração.

1959 – BEN-HUR, de William Wyler 

A relação entre o judeu Ben-Hur (Charlton Heston) e o romano Messala (Stephen Boyd) entrou para a história da cinefilia queer como um caso que envolve, de uma só vez, a sugestão erótica e a ambivalência figurativa. O escritor Gore Vidal, um dos argumentistas (não creditado no genérico), recordou a situação no documentário The Celluloid Closet, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman [video]. Não se tratou de criar um aparato panfletário (em boa verdade, temática e esteticamente inconcebível em Hollywood de finais dos anos 50), mas sim de jogar com as convenções da superprodução épica (e bíblica!) para introduzir algumas nuances que contaminam o essencial. A saber: os corpos e os olhares dos actores. Olhando agora para estas imagens, deparamos com uma subtil perturbação dos códigos masculinos dominantes na época que talvez não possa ser separada de toda uma reconversão da(s) sexualidade(s) que que os filmes também começavam a integrar. Veja-se, nos nossos dias, a admirável memória crítica dessa mesma época que é a série Mad Men

João Lopes


segunda-feira, setembro 19, 2011

7 memórias queer (2)


Durante o festival Queer Lisboa João Lopes, crítico de cinema e co-autor do blogue Sound + Vision, escreve para O Sétimo Continente "7 memórias queer". Muito obrigado por esta valiosa colaboração.

1953 – OS HOMENS PREFEREM AS LOURAS, de Howard Hawks 

A loura era Marilyn Monroe, como sabemos (e como Madonna, hélas!, nos recordou, através do incontornável teledisco de Material Girl, lançado em 1985). Mas importa não esquecer a morena, Jane Russell, afinal a personagem realista desta vertiginosa comédia dos sexos. Que sexos? Pois bem: o “masculino”, o “feminino” e... os outros. Afinal de contas, Hawks já contava na sua admirável filmografia com saborosos antecedentes como Duas Feras (1938), O Rio Vermelho (1948) e A Culpa Foi do Macaco (1952). Numa cena emblemática, e de emblemática ambiguidade, Russell cantava uma canção de suave e muito romântica demanda amorosa, devidamente intitulada Ain't there anyone here for love? (Hoagy Carmichael / Harold Adamson), surgindo a sua deambulação sensual devidamente enquadrada por uma sereníssima iconografia gay, tão festiva quanto… natural. Moral da história: é sempre bom regressarmos à idade da inocência de Hollywood, antes das perversões do digital. 

João Lopes 

sábado, setembro 17, 2011

7 memórias queer (1)


Durante o festival Queer Lisboa João Lopes, crítico de cinema e co-autor do blogue Sound + Vision, escreve para O Sétimo Continente "7 memórias queer". Muito obrigado por esta valiosa colaboração.

1935 – SYLVIA SCARLETT, de George Cukor
Se é verdade que existe uma paisagem queer no interior da história do cinema, talvez seja necessário descrevê-la como algo mais do que um capítulo dedicado a outro(s) sexo(s). Porquê? Porque a própria sensibilidade queer resiste a essa catalogação fechada: há nela um desejo de pluralidade que, através da sexualidade, nunca é estranho à proliferação das formas & narrativas. Katharine Hepburn, em Sylvia Scarlett, talvez possa ser um caso emblemático. Poderemos “contextualizá-lo” a partir da homossexualidade de George Cukor e da forma discreta como ele a viveu nas suas gloriosas décadas de Hollywood. Mas o enquadramento “biográfico” não basta. O que mais conta é que, nesta aventura visceralmente romântica, a passagem de Sylvia (Hepburn) para “Sylvester” actua nesse lugar sempre exposto que é o corpo do actor, aliás, da actriz. E ficamos a saber que a identidade de Sylvia integra todas as ambivalências que nela habitam. 

João Lopes 

sexta-feira, setembro 16, 2011

10 questões a João Ferreira

O director artístico e programador do Queer Lisboa, João Ferreira, responde a 10 perguntas lançadas pelo O Sétimo Continente. Muito obrigado pela sua colaboração!
1. O que significa um festival como o Queer Lisboa atingir as 15 edições? 

Significa a certeza de que, há 15 anos atrás, a proposta de criação deste festival fazia sentido e que a sua existência continua a fazer sentido hoje. O festival passou por uma série de renovações e soube reorganizar-se e reinventar-se, mesmo nas alturas financeiramente mais adversas, tendo sempre crescido em termos de público, o que significa que a sua trajectória tem ido ao encontro da evolução, não só do cinema que apresenta, mas do panorama cultural lisboeta. 

2. Foi pelo Queer Lisboa que os lisboetas viram em primeira mão cineastas como François Ozon ou Bruce LaBruce. É importante o espaço de descoberta que este espaço proporciona? 

Sim, é fundamental. Um festival de cinema faz sentido como plataforma de descoberta, quer de novos realizadores, quer de filmografias que são desconhecidas do nosso público. Um festival deve marcar a diferença e afastar-se das lógicas profundamente redutoras do circuito comercial das Salas e do mercado de DVD. 

3. Além das representações de sexualidades não-normativas podemos reconhecer características cinematográficas claramente associadas ao cinema “queer”? 

O chamado “cinema gay” foi durante muito tempo uma categoria ligada sobretudo às narrativas. O “new queer cinema” de inícios de 1990, não a tendo inventado – antes reinventado e reapropriado –, veio juntar às narrativas uma especificidade estética e formal. Se pensarmos no cinema de Kenneth Anger, Jack Smith ou mesmo de Paul Morrissey, havia uma enorme preocupação estética, muito ligada ao “camp”, e um certo experimentalismo formal. Esses pressupostos foram recriados no cinema de Todd Haynes, Gus Van Sant ou mesmo de Ozon, mas em comum existe essa necessidade de criação de uma linguagem própria que vá ao encontro dessa não-normatividade. A imagem também conta uma história. 

4. O que representa para um festival como o Queer Lisboa ver filmes como “O Último Verão da Boyita” ou “Uivo” a ter estreia no circuito comercial? 

É importante em termos de visibilidade para o festival, e até mesmo de uma abertura para novos públicos. É também um bom sinal da transversalidade e do ecletismo deste cinema, que toca desde o gosto mais comercial, ao mais marginal. Ou seja, são com certeza felizes coincidências, mas não creio que deva ser um pressuposto ou vocação de um festival de cinema temático. 

5. Por que é escassa a representação do cinema português num festival como o Queer Lisboa? 

No momento em que vivemos na sociedade portuguesa, não acredito que essa escassez esteja ligada a medos ou preconceitos – embora eles seguramente ainda existam. Há muitos realizadores em Portugal a focar esta temática, nomeadamente, nestes últimos anos, de jovens a sair das escolas de cinema. O que se passa em Portugal é, simplesmente, de uma forma geral, uma muito pouca produção de cinema. É um sistema que depende muito do Estado, pois não há grandes alternativas, o que dificulta a produção em mais quantidade.    

6. Haverá ainda filmes “perdidos” da cinematografia “queer” portuguesa, que o festival possa redescobrir, como foram os de Óscar Alves? 

Com o rigor, meios e qualidade dos filmes que o Óscar Alves e o João Paulo Ferreira realizaram nos anos 1970, não creio que existam muitas outras “descobertas” a fazer. Até porque este é um meio pequeno – e era-o ainda mais então –, e seguramente já haveria notícia de outros filmes. Agora, existirão com certeza, quer filmes anteriores à Revolução e mesmo posteriores, feitos com poucos ou nenhuns meios – amadores, experimentais –, que espero venham a ser descobertos ainda. 

7. Como mudaram os públicos ao longo da história do Queer Lisboa? 

O país mudou muito nestes 15 anos. Quando comecei a trabalhar no festival, na sua 4ª edição, em 2000, por um lado, não havia a concorrência de outros festivais de cinema na cidade, o que nos permitia um leque muito grande de filmes que chamavam muita gente, mas por outro, havia ainda um grande preconceito em ir ao festival. Era um lugar onde muitos não queriam ser vistos, fossem gays ou não. Lembro-me da dificuldade de as estações de televisão conseguirem filmar o público, que não o permitia, por exemplo. Isso já não acontece hoje. Outra diferença que noto – e que começou nos anos do Quarteto, entre a 8ª e a 10ª edições –, foi a chegada de uma nova geração de estudantes universitários. Uma faixa que é hoje das mais significativas do festival. 

8. O Queer Lisboa tem perspectivas de alargar o seu espaço de trabalho (e públicos) além do que todos os anos faz durante “x” dias no cinema São Jorge? 

Essa vontade acaba por estar sempre muito restringida pelas limitações orçamentais. No entanto, temos feito um trabalho continuado em termos de programação de cinema português em festivais internacionais e temos organizado também algumas mostras em diferentes pontos do país, durante o ano. No fundo, temos aproveitado esse período para incentivar essa vocação importante do festival que é a da promoção do cinema nacional de temática queer. Mas estamos a trabalhar para uma presença mais regular nos restantes meses do ano, continuando com a programação e investindo também na distribuição. 

9. Que tipo de reconhecimento internacional tem um festival como o Queer Lisboa? 

Este festival teve a estranha particularidade de ter sido primeiro muito reconhecido lá fora, sobretudo pela sua programação, antes de ser reconhecido cá dentro, nomeadamente em termos de cobertura pelos media e de um crescimento em número de espectadores e de cativação de apoios públicos e privados. Pontos que hoje vão sendo conquistados. O reconhecimento sente-se pela quantidade de pedidos que temos por parte de outros programadores para lhes indicarmos os contactos dos distribuidores dos filmes que programamos, os convites que recebemos para integrar elencos de júris em festivais internacionais, ou mesmo o feedback mais directo que temos de colegas de profissão. 

10. O que traz de novo a edição nº 15 do festival? 

A partir da sua 9ª edição – e nesse sentido os anos do Quarteto foram fundamentais em termos de “laboratório” –, o Queer Lisboa criou uma série de secções, algumas fixas, outras moldáveis a cada edição, que acreditamos serem um bom modelo para oferecer uma leitura do nosso programa. Celebrar o 15º aniversário do festival, implicou pensar uma programação especial dentro destas “regras”, quase que a testá-las de novo, a ver se ainda faziam sentido. E aos poucos foi surgindo um mote que parecia colar-se à selecção deste ano e que resumia em muito aquela que tem sido a essência do cinema queer: a transgressão. Assim, procurámos títulos que cobrissem de alguma forma as muitas temáticas e estéticas que este cinema tem tocado e que garantem a sua vitalidade, hoje. E aqui, os filmes de abertura e encerramento do festival têm um valor simbólico especial: Uivo, de Rob Epstein e Jeffrey Friedman, e Taxi Zum Klo, de Frank Ripploh. O primeiro, porque invoca o poeta Allen Ginsberg, figura pioneira da cultura queer, com influência marcada não apenas na literatura da segunda metade do século XX, como também na música e nas artes visuais. Taxi Zum Klo, obra autobiográfica de 1980, realizada em Berlim – cidade emblemática da liberdade sexual –, porque reúne uma série de pressupostos conceptuais da cultura queer: o discurso na primeira pessoa, a afirmação de todas as liberdades, a cultura do desejo.

quinta-feira, setembro 15, 2011

Pró / Contra - Festivais de Cinema Queer

Na véspera de estreia da 15.º edição do Festival Gay e Lésbico de Lisboa (Queer Lisboa), lançamos o debate: farão os festivais de cinema queer sentido? Os estudantes Diogo Figueira (também autor do blogue A Gente Não Vê) e Diogo Seno não partilham a mesma opinião e, nesta publicação, argumentam contra (Figueira) e em defesa (Seno) a este tipo de festivais. Muito obrigado a ambos pela valiosa colaboração! Aproveito para desafiar os nossos leitores a comentarem e a deixarem a vossa opinião sobre a questão.

Contra os festivais de cinema queer

É por fazer a distinção entre a integração civil da homossexualidade e o seu rastilho de aproveitamento político e mediático que considero deveras duvidoso o conceito do cinema queer e, tão especificamente quanto me foi colocada a questão que aqui me trouxe, dos festivais de cinema queer. Espero, desde já, que esta ponta introdutória possa diluir quaisquer viciados leitores da demagogia de confundir a questionabilidade ao movimento com a manifestação de um preconceito.

Não me parece que haja lugar a pôr as coisas em termos de ser contra ou a favor deste tipo de iniciativas. Vivemos numa conjuntura em que é quase mais difícil não ir a um festival do que vencer algum, em que durante o ano há mais festivais temáticos do que dias mundiais de algo (e há dias mundiais de coisas incríveis). Numa época em que há festivais que só aceitam filmes sobre bicicletas, dizer que se é contra este ou a favor daquele, parece-me ser entrar por uma via dicotómica simplista e facilitista. Ou, pelo menos, assim será quando se aborda um tema com relativa sensibilidade como o que nos traz aqui.

Quando me refiro à integração civil da homossexualidade refiro-me ao cultivar de uma sociedade, numa primeira fase, tolerante ou aceitadora, mas a caminho e idealmente projectada na harmonização e quotidianização de atitudes ou opções (que não me parece adequado chamar “fenómeno”). É como ver The Kids Are All Right, em que o factor da homossexualidade é de tal forma pressuposto, de tal forma genuíno, de tal forma familiar, que o filme é sobre tudo menos isso – é sobre os desejos, emoções e falhas daquelas pessoas enquanto pessoas com desejos, emoções e falhas, transversais a qualquer ser humano, e não como gays ou lésbicas. O que está em causa é uma questão de estatuto jurídico e de dignidade. Quanto ao primeiro, pouco me parece que haja a fazer no cinema. Quanto ao segundo, consigo olhar para filmes como o referido para não notar nada menos que a máxima consideração pela questão, ou posso olhar para filmes como Brokeback Mountain, que, focando-se especificamente na relação homossexual (porque também há outros que se focam especificamente na relação heterossexual), tem a integridade suficiente para não se auto-rotular para a caça à manchete.E isto deixa-me com os casos restantes: os que realmente se rotulam para o devido efeito. Nomeadamente desenhados sob um dos mais típicos clichés do cinema europeu, o homoerotismo sofrido ou hipster, constroem-se os festivais queer, sob marcas de orgulho que mais não são do que passadas de auto-exclusão, de ruptura para com a comunidade. Estrategicamente se recorre à promiscuidade, à imagem chocante e rápida, numa mentirosa e sensacionalista mistificação, uma capa dissimuladora do saliente interesse político, vulgo lobby. Aqui me parece que reside a questionabilidade da integridade de todo o conceito – ao invés da proclamada luta pela igualdade, o que se passa é uma planificada e mediática auto-diferenciação cujos interesses me parecem ter pouco a ver com uma prossecução humanista, antes com um utilitarismo grupista.

Diogo Figueira

A favor dos festivais de cinema queer

Ao longo dos anos, têm vindo a proliferar, um pouco por todo o mundo, festivais de cinema de temática LGBT. O crescimento do número deste tipo de festivais, bem como ao aumento do seu mediatismo, encontram paralelo na crescente atenção dada a temáticas LGBT a um nível mais mainstream e alargado.

O aparecimento deste género de festivais acompanhou o crescimento do movimento activista gay desde a década de 70 do século passado e a sua consolidação deu-se na década de 90, com o aparecimento e reconhecimento do denominado New Queer Cinema.

No início da década 90, a estreia de um conjunto de filmes de temática gay, alguns deles obras de realizadores que se consolidariam como autores importantes nessa mesma década e na seguinte – caso de Gus Van Sant e Todd Haynes – chamou a atenção dos jornalistas americanos, tendo B. Ruby Rich escrito ensaios – primeiro na revista de cinema internacional Sight & Sound e, depois, de forma mais alargada, no nova-iorquino Village Voice – sobre a presença assinalável de filmes queer, da autoria de realizadores independentes, no circuito de festivais de cinema do início dessa década. Faziam parte dos filmes mencionados e comentados por esta crítica “Poison”, de Todd Haynes, “The Living End” de Gregg Arakki, “Swoon” de Tom Kalin ou “Edward II”, de Derek Jarman. Ruby Rich denotou a presença de uma estética agressiva na sua representação das temáticas gay (os protagonistas destes filmes eram, na sua maioria, delinquentes que desafiavam a ordem social estabelecida), demarcando-se, por isso, da imagem positiva passada pelo movimento activista gay até então. 

Mas o New Queer Cinema foi apenas uma primeira expressão de novos olhares e novas vozes no cinema (a maior parte delas masculinas) tendo o resto da década de 90 trazido uma míriade de outros olhares e temáticas que teriam reconhecimento junto dos espectadores não apenas em festivais, mas, em número crescente, em estreias comerciais, para públicos mais alargados. 

Esta década viu a consolidação de uma rede de festivais de cinema de temática LGBT que primavam pela exibição de longas e curtas-metragens recentes, mas, também, pela criação de secções paralelas, de retrospectivas, pela promoção de debates e do diálogo com outras formas de arte – criando um espaço cultural bastante variado. 

Na actualidade, existem aproximadamente 150 festivais LGBT espalhados pelo mundo inteiro. Estes festivais decorrem, na sua maioria, no Outono, particularmente em Outubro, mês histórico LGBT, possuindo diferentes características, podendo decorrer num fim-de-semana, numa semana ou ao longo de um mês e podendo focar-se numa forma de expressão artística particular (mais underground, mais comercial) ou apenas numa temática (apenas gay, lésbico ou transgénero, etc.). Estes festivais servem não só como espaços de exibição de filmes de temática LGBT mas também como espaço de visibilidade mais alargada desses mesmos filmes, contribuindo, uma parte considerável das vezes, para a sua posterior estreia comercial em sala. 

Um exemplo de festival LGBT é o português Queer Lisboa, o mais antigo festival de cinema de Lisboa, a decorrer desde 1990 e assinalando, este ano, a sua 15ª edição. 

Os festivais de cinema LGBT encontraram, desde o início, uma certa incompreensão, sendo objecto de controvérsia, porque, apesar de demarcarem um público claro, esta demarcação levanta algumas questões, não apenas relacionadas com o cinema, mas com a representação do género e das orientações sexuais. Afinal, que características deve ter um filme para ser considerado relevante para ser exibido neste tipo de festivais? Não leva a distinção da orientação ou da representação do género a uma maior incompreensão da “sociedade”? 

Estas perguntas pareceram encontrar respostas na forma como os diferentes festivais de cinema LGBT se configuraram e, mais importante, encontraram formas de dialogar com o pensamento e os debates de questões contraditórias e complexas, a um nível mais alargado. 

Estes festivais afirmaram-se não só como espaços convívio e de projecção de filmes de sensibilidades demarcadas, mas também como espaços de discussão e troca de ideias geradas maioritariamente, mas não só, pelos filmes projectados. 

Desde a exploração de temáticas mais sensíveis, como a homofobia ou o VIH-SIDA, a diferentes representações do desejo e da sexualidade, os festivais de cinema LGBT foram responsáveis, paralelamente a outras esferas, pela compreensão e divulgação de diferentes olhares e perspectivas sobre temas e questões não só complexas como contraditórias. Não se tratou, então, de criar um “gueto” ou um espaço “exclusivo” para gays, lésbicas, bissexuais e transgéneros, que, ao contrário do esperado, propagasse o preconceito e a incompreensão, mas sim de criar mais um espaço de representação e discussão de diferentes sexualidades. 

Apesar destas questões e das controvérsias, os festivais de cinema LGBT proliferaram um pouco por toda a parte ao longo dos anos e afirmaram-se como espaços de sociabilidade e convívio, demonstrando, pelo menos a nível de públicos, não só a sua necessidade mas também a sua importância.

Diogo Seno

sábado, setembro 10, 2011

A escolha de João Moço

Alguns críticos e bloggers participam neste mês dedicado ao cinema queer partilhando connosco aquele que é o seu exemplo preferido desta cinematografia. Desta vez, João Moço, jornalista e crítico de música do Diário de Notícias, fala-nos de “A Festa da Menina Morta” (2008 / foto), de Mattheus Nachtergaele. Muito obrigado ao autor pela grande colaboração!
Arrebatadora estreia do cineasta Mattheus Nachtergaele, A Festa da Menina Morta é uma obra que nos faz reflectir sobre o poder da fé, ou mais precisamente, da crença religiosa e das suas implicações, sendo também um filme que mostra que independentemente das crenças de cada um, para compreender o mundo em que vivemos é ainda essencial debruçarmo-nos sobre os caminhos em que se move a fé e a religião. Santinho (interpretado com um dramatismo emotivo por Daniel Oliveira) está no centro desta história. Quando há vinte anos recebeu da boca de um cão o que ainda restava de um vestido de uma menina desaparecida numa aldeia no Amazonas, toda a comunidade, e o próprio Santinho, depositaram nele (e nos seus alegados poderes miraculosos) toda a sua fé. Todavia esta é uma figura bastante perturbada e assombrada com a ausência da mãe. Paralelamente ao peso que carrega nas costas pela crença cega de toma a comunidade nas suas palavras e “revelações”, Santinho não deixa de ser profundamente humano, nomeadamente pelo facto de não renegar o prazer carnal. Aliás, a relação que mantém com o pai ou a atracção, sugerida, pelo irmão da menina morta acabam por mostrar a complexidade e densidade desta figura que conjuga em si um forte papel religioso e ao mesmo tempo um homem com desejos sexuais. Ainda assim, é essencialmente o seu papel como um baluarte da crença religiosa daquela aldeia (que logo criou todo um negócio à volta da fé), algo que se reflecte na sua personalidade bastante desequilibrada, que está no centro de toda a trama. De salientar a forma impressionante, e ao mesmo tempo bem realista, de como é não só retratada a crença religiosa que transcende a simples existência humana, mas também os rituais colectivos que são um reflexo prático dessa fé. No final A Festa da Menina Morta termina de uma forma implacavelmente realista, mas não menos única: “Este ano dor é a palavra”.

João Moço

sexta-feira, setembro 09, 2011

5 perguntas (iv): João Pedro Rodrigues


A propósito do mês dedicado ao cinema queer, o realizador português João Pedro Rodrigues, responsável por títulos como O Fantasma, Odete ou Morrer como um Homem, foi convidado a responder a 5 breves perguntas para O Sétimo Continente. Muito obrigado ao autor pela sua colaboração. As mesmas perguntas serão respondidas para a semana por João Rui Guerra da Mata, co-realizador ao lado de João Pedro Rodrigues das curtas-metragens China, China e da recente Alvorada Vermelha (ler aqui).

★★★★★

1. Entendes como redutora a designação de realizador de cinema “gay” ou LGBT?
Eu não me considero nem uma coisa nem outra, faço filmes que, normalmente, têm personagens gays, é tudo. Vejo-me como realizador de cinema, ponto. Aliás, acho que a maioria do cinema, so called gay, LGBT ou queer (so many names...) é muito pouco interessante, para não dizer mau...

2. Os festivais de cinema LGBT são um importante veículo para levar o teu cinema a públicos pelo mundo fora?
Como os outros festivais, aqueles não LGBT, que escolhem passar os meus filmes. Devo ainda acrescentar que os meus filmes passam maioritariamente em festivais não-LGBT (como lhes vou chamar? Normais? Generalistas? Internacionais? Como vês, temos aqui outra vez um problema de nomenclatura...)

3. Por que razão é tão reduzida a representação de sexualidades não-normativas no cinema português?
Não faço ideia... ou será porque Portugal é um país ainda um bocado atrasado?

4. O que sentes ao ver O Fantasma em listagens de títulos fundamentais da história desta cinematografia? 
Também aparece em listagens de títulos fundamentais do cinema em geral... mas, para responder à tua pergunta, talvez porque é um filme sincero na forma e no tema, e essa sinceridade talvez tenha tocado algumas pessoas... e deixado outras de lado.


5. Qual o filme mais interessante que descobriste num festival de cinema LGBT?
Não me lembro de nenhum.

sábado, setembro 03, 2011

A escolha de Nuno Carvalho

Alguns críticos e bloggers participam neste mês dedicado ao cinema queer partilhando connosco aquele que é o seu exemplo preferido desta cinematografia. A abrir, Nuno Carvalho, crítico de cinema do Diário de Notícias e autor do blogue o reino das sombras, fala-nos de “Otto, or, Up With Dead People” (2008 / foto), de Bruce LaBruce. Muito obrigado ao autor pela valiosa colaboração.
No versículo 13 do capítulo 20 do Levítico, um dos cinco primeiros livros da Bíblia, diz-se: “Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse com uma mulher, ambos terão praticado uma abominação; certamente morrerão”. Foi esta lei abominável do Antigo Testamento, supostamente inspirada por Deus (mas mais provavelmente ditada pela cabeça de um daqueles homossexuais reprimidos e egodistónicos que depois, perversamente, viram homofóbicos), que legitimou, entre muitos “crentes”, a condenação da homossexualidade. Daí que, aos olhos de uma sociedade em muitos aspectos herdeira de princípios judaico-cristãos, a homossexualidade seja vista como um “grande pecado” (e muitas vezes associada ao Mal, ligação que o próprio Papa Bento XVI, que deveria ser mais responsável e ciente das possíveis consequências trágicas das suas palavras nesta matéria, já por diversas vezes estabeleceu) – um pecado digno de “excomunhão”, “proscrição” e “condenação”. Por isso, aos olhos do Deus judaico-cristão, um homossexual é uma criatura que comete um pecado “abominável” que merece a morte (pelo menos uma morte simbólica).

E é dessa morte simbólica e metafórica que trata um filme como Otto; or, Up with Dead People, do realizador canadiano Bruce LaBruce. Uma morte que, afinal, nem sempre é tão “simbólica” e “metafórica” quanto isso. Se é verdade que a Bíblia também diz que “o salário do pecado é a morte” (entendendo-se aqui por “morte” não a morte física, mas sim uma “morte espiritual”), então o homossexual, esse “grande pecador” (aos olhos dos católicos), será uma espécie de zombie espiritual. De facto, é por aí que LaBruce pega para criar a personagem de Otto (interpretada pelo actor belga Jey Crisfar, cujas iniciais do nome coincidem, curiosamente, com as de Jesus Cristo), um jovem zombie gay que deambula pelas ruas de Berlim até ser descoberto por Medea Yarn (Katharina Klewinghaus), uma realizadora iconoclasta que o torna protagonista do seu filme “épico-político-porno-zombie”, precisamente intitulado Otto; or, Up with Dead People, jogando aqui LaBruce com o esquema do “filme-dentro-do-filme”. Mas o Otto de LaBruce não é só um jovem gay que sofre o anátema religioso; é também um ser emocionalmente ferido (devido a uma rejeição amorosa), psicologicamente destruído (fala-se em esquizofrenia) e espiritualmente morto (mas também socialmente invisível – ou mal-visto).

A genialidade do filme de Bruce LaBruce, um dos mentores do movimento Queercore, reside não só no facto de nos propor uma muito bem conseguida e original metáfora da homossexualidade (porque, no mundo que decreta que “Deus detesta os gays”, o homossexual, em termos sociais, só pode ser uma espécie de “morto-vivo”), como também no facto de ser um filme realmente subversivo, heterodoxo e provocador – ou seja, tudo aquilo que deve constituir o espírito do cinema queer.

Nuno Carvalho

terça-feira, agosto 09, 2011

As bandas musicais [iii]: O Bom, o Mau e o Vilão (1966)

Mário Lopes, jornalista e crítico de música do Público / Ípsilon, escreve para “As Bandas Musicais”, rubrica mensal em que um convidado escreverá sobre uma das suas bandas musicais de eleição. Muito obrigado ao autor por esta colaboração no blogue.
Nestes tempos de demasiada mediocridade e formatação, nestes tempos em que tudo o que nos rodeia parece existir apenas enquanto valor comercial (ou publicitário, o que vai dar ao mesmo), é um bálsamo descobrir algo que nos agite e nos sobressalte com um pouco mais de mundo. A cronologia, claro, é neste estado de coisas um pormenor (se sempre o foi, agora mais ainda). Neste tempo em que coexistem todos os tempos, o maravilhamento pelo futuro pode irromper dos sítios mais inesperados, antiquíssimos de séculos ou velhos de décadas. Tudo isto para falar de uma banda-sonora? Precisamente.

Falemos do filme de um italiano que mal arranhava o inglês, Sergio Leone, musicado por outro italiano, Ennio Morricone, que até fala inglês mas que exige um tradutor de italiano em que cada entrevista. Falemos de “O Bom, o Mau e o Vilão”, capítulo final de uma trilogia (sequência de “Por um Punhado de Dólares” e “Por Mais Alguns Dólares”) que, apesar de mal amada pela crítica em 1966, o ano da sua estreia, chega aos nossos dias com o estatuto de clássico absoluto. Tem Clint Eastwood e no seu “Blondie” encontramos a América selvagem e misteriosa, esse país de integridade firmada pela lei das armas, perseguindo a ideia de viagem pioneira (para Oeste, claro, sempre para Oeste) que transformaria território virgem, a olhos descendentes de europeus, bem entendido, em nova civilização – em “Blondie” está, portanto, aquilo que Eastwood, o último clássico americano, seria depois dele enquanto actor e realizador.

“O Bom, o Mau e o Vilão” é um desses filmes que nos reconciliam com o mundo. Na cena inicial está já tudo. Aquela estação de caminhos de ferro deserta e empoeirada, com suor gotejando do ecrã e uma noção de tempo admirável na gestão da tensão: o mundo cá fora apaga-se e é ali que estamos totalmente, incondicionalmente. E há, claro, a música de Morricone: o “tremolo” das guitarras, as vozes masculinas em coro sufocante e as vozes femininas que chegam até nós como matéria etérea que, naquele contexto, soam quase a perversidade; a forma como uma ideia longínqua de country se transforma numa outra coisa, num onirismo sanguinolento; tudo isso se embrenha no filme. Mais: tudo isso faz o próprio filme de Leone.

Daquela estação de comboios inicial à magnífica cena final de duelo no cemitério, música e imagem são impossíveis de distinguir. É quase como se fosse uma perda de tempo ouvir a banda-sonora de Morricone sem as cenas filmadas por Leone – não é, como se sabe. Que essa sensação seja tão forte enquanto aquele western dito spaghetti se desenrola é como que prova definitiva da mestria revelada pela banda sonora. No caso de “O Bom, o Mau e o Vilão”, o raciocínio inverte-se. A banda sonora não é brilhante por sobreviver incólume separada do filme. É brilhante precisamente pelo contrário. Porque é ela também o filme e só nele vive plenamente.

sábado, julho 23, 2011

5 perguntas (iii): Pedro Cabeleira

Pedro Cabeleira, autor do blogue Estúpido Maestro, escreve na rubrica semanal 5 perguntas, que confrontará vários convidados com uma série diferente de questões sobre a sua relação com o cinema. Uma vez, o Pedro escreveu, a jeito de resposta a uma declaração de Jean-Luc Godard sobre o facto de um autor ter apenas deveres e não direitos, um texto sob a forma de manifesto, porventura controverso, sobre o cinema de autor - cuja leitura eu aconselho que seja feita aqui. Muito obrigado, Pedro, pela tua colaboração.

★★★★★

1. Que filme lhe fez mais ter pena do dinheiro que gastou no bilhete?

Houve um certo filme que fui ver numa sessão da Cinemateca com a presença do realizador que poderia ter sido onde o meu dinheiro foi mais mal investido. Apesar da extraordinária qualidade da obra ainda consegui aprender bastante com a situação, por isso, apesar de ter saído da sala após trinta minutos do seu começo, a “Conversa Acabada” de João Botelho não foi o meu pior investimento. Quando fui ver “Sucker Punch”, filme mais recente de Zack Snyder, lamentei imenso os 5 € que apostei, principalmente por ser um filme de um realizador que eu até tinha alguma consideração. A verdade é que após vinte minutos do inicio da sessão os enjoos e a dor de cabeça falaram mais alto, reacções físicas a um dos piores filmes que vi no grande ecrã.


2. O filme que gosta de um realizador que tenha em muito má conta?

Danny Boyle fez dois filmes que eu considero fracos, coopera com ele nestes filmes um compositor cuja música é claramente desadequada, diria que esse realizador pratica um certo cinema do enjoo, abusa nas cores e adopta um ritmo falacioso e exagerado. No entanto, esta realização “dannyboylesca” adequa-se a um filme que adoro, “Trainspotting”.

3. O filme com o melhor fim?

Pergunta difícil. Há “Haverá Sangue”, “Pulp Fiction”, “O Ódio”, “Barry Lyndon”, “Magnolia”, “Raging Bull”, finais extraordinários! No entanto, em 1971, Stanley Kubrick, consegue, a meu ver, o melhor final de sempre. “A Clockwork Orange” tem o melhor final de sempre, e mal de nós será não concordar que Alex está curado, e difícil será também não nos arrepiarmos ao apercebermo-nos que aquilo que acabámos de ver, foi não só um dos melhores estudos de personagem como uma extraordinária abordagem ao ser, aos seus instintos e acima de tudo ao carácter. Aquele quadro final pomposo, claramente perturbador e ao mesmo tempo tão aliviante e suave é insuperável.

4. Um filme sobrevalorizado?

O cinema tem várias componentes que podem ser analisadas e categorizar um filme como de excelência, grande, muito bom, bom, razoável, etc… ou mesmo de uma forma mais simplista, bom ou mau. No entanto há duas coisas que para mim são essenciais para desenvolver uma ideia de um objecto cinematográfico, a história e a forma como esta é contada. É na não harmonia destes dois pontos que “The Usual Suspects” de Brian Singer de 1995 se torna talvez o filme mais sobrevalorizado. Uma história muito boa, com um clímax quase sufocante, um twist muito inteligente, no entanto, é uma história que foi tornada num filme simplesmente interessante, não mais. Brian Singer vulgariza uma história bastante promissora, não a torna nem densa nem negra, não faz com que o clímax seja sufocante, é um filme que se vê e se acompanha, mas é um filme que perde “personalidade”, não senti a magia de Kayser Soze, não senti medo dele, e se não for por dizerem que ele matou não sei quantos e que é o Diabo em figura de gente nunca iria perceber porque raio os outros o temem tanto. Singer podia ter criado um clima tenebroso, uma obra formidável, mas não, “The Usual Suspects” é apenas uma luxuosa receita que acabou por ficar sem sabor.

5. Uma medida para o cinema português?

Sou apologista que o ICA não deve ser extinguido, mas sim, que devia ser considerada outra distribuição do seu financiamento. Não digo também que se devia acabar com o investimento em filmes, o que seria feito do cinema português? Bom ou mau, a verdade, é que este deve ser feito. No entanto, há uma coisa que não se aposta, quando o produto é mau, deve se investir na mão-de-obra de modo a este ficar melhor. Diria que uma parcela do bolo do ICA devia ser atribuída a estágios ou formações no estrangeiro, que qualificassem portugueses e os especificassem em áreas como distribuição, maquilhagem, imagem, etc… Quanto mais especializados estes fossem, mais fácil seria a produção cinematográfica, mais vantajoso seria o investimento, que estes aprendessem com os grandes, para depois não estarem apenas preparados para cumprir e ser competentes, mas para o fazerem com qualidade e distinção. Formação não é sinónima de criatividade, mas certamente que ajuda para o desenvolvimento desta. Trata-se de aproveitar a potencialidade que o nosso país pode vir a ter nesta área. O conhecimento traz segurança não só em quem tem esse conhecimento mas em quem vai ver os filmes. É fulcral apostar numa formação de excelência quando está mais que provado que os produtos não são de excelência.

quarta-feira, julho 13, 2011

5 perguntas (ii): Pedro Ponte

Pedro Ponte, redactor do portal de cinema Ante-Cinema, escreve na rubrica semanal 5 perguntas, que confrontará vários convidados com uma série diferente de questões sobre a sua relação com o cinema. Muito obrigado, Pedro, pela tua colaboração.

★★★★★


1. O filme que viste mais vezes?

Jaws”, de Steven Spielberg. Não hesito porque é uma questão de lógica; não sei ao certo quantas vezes o terei visto, mas quando era criança (e sim, sei que não é o filme mais adequado para uma criança) ficava quase todos os dias durante a semana, depois das aulas, em casa de uma tia minha que tinha poucos filmes em VHS, sendo um deles esse marco do cinema de terror. Muitos outros provavelmente se aproximarão, incluindo muitos filmes da Disney, mas este provavelmente está em primeiro. Adorava a Disney, mas a minha curiosidade em ver se o tubarão, a música, a antecipação e tudo o resto continuariam a mexer comigo falavam mais alto. Hoje, continuo a ver o filme de vez em quando.

2. 3D ou 2D?

Não tenho grandes problemas em afirmar que o 3D não trouxe rigorosamente nada de positivo ao cinema, e tenho poucas ou nenhumas dúvidas de que se tratou apenas de uma jogada comercial. A técnica não é nova, já existia desde os anos 50, e há uma razão pela qual nunca “pegou”: é caro. Muito caro. E foi apenas na década de 00 que se chegou ao ponto de ser financeiramente viável filmar (ou converter) em 3D. É essencialmente ilusão e o brincar com a percepção de profundidade, coisa que o cinema faz desde sempre. Portanto, continuo – não céptico – mas com a plena noção de que não é, simplesmente, necessário. Mesmo dentro dos géneros em que é mais comum – acção, aventura, animação – já foram feitos filmes no passado que continuam, inclusive nos dias de hoje, a ser tão ou mais espectaculares que o “Avatar”. Os filmes de acção do James Cameron ou dos irmãos Scott eram em “2D” e conseguiam ser o epítome da adrenalina e diversão; a trilogia de “O Senhor dos Anéis” idem e será para sempre um marco na história do cinema; um realizador como Christopher Nolan continua a fazer filmes de acção que derrubam barreiras e fá-lo sem precisar de 3D; o período áureo da Disney implicava animação desenhada à mão e continua actual. A única excepção que consigo encontrar chama-se Pixar – são os únicos que aceito que tirem a taxa do meu bolso, mas são também génios. E até eles já fracassaram.

3. Uma medida para as salas de cinema portuguesas?

Correndo o risco de bater numa tecla já muito batida, um maior controlo e rigor no que diz respeito ao comportamento das pessoas. Bem sei que os centros comerciais não vão a nenhum lugar e que é impossível que essas salas deixem de ser frequentadas por públicos pouco instruídos, muitas vezes adolescentes com o único interesse de ir ver algo para se distraírem. É algo que já aceitei e que sei que não mudará. Mas é importante não esquecer que, mesmo nessas salas, continua a haver público que foi ver um filme e que, como tal, exige silêncio, ausência total de telemóveis e distracções. Quem não respeitar essas regras – porque são regras – tem obrigatoriamente que ser proibido de impedir outros de desfrutar da experiência que é ver um filme.

4. Que ciclo falta fazer na Cinemateca Portuguesa?

Como frequentador da Cinemateca, não creio que possa ser feita nenhuma crítica fundamentada ao trabalho que é lá desenvolvido, independentemente das dificuldades que se têm verificado nos últimos meses. Quem vai à Cinemateca, fá-lo porque sabe que é o espaço perfeito para conhecer a história do cinema (é, afinal de contas, um museu), e têm conseguido trazer todos os meses obras essenciais e organizado ciclos interessantes, dos quais destaco o recente dedicado a Nagisa Ôshima. Pessoalmente, e apesar de apreciar clássicos e prezar ao máximo a oportunidade de vê-los em sala, gostaria de ver mais cinema feito a partir dos anos 90, década em que muitos autores brilhantes floresceram e fizeram a ponte entre o clássico e o actual. É difícil não pensar em Quentin Tarantino, que admiro imenso; uma retrospectiva integral da sua obra seria algo que adoraria ver.

5. O último filme visto no cinema?

Bridesmaids”, de Paul Feig. Uma comédia por vezes típica, por vezes mais próxima da qualidade dos filmes de Judd Apatow.

segunda-feira, julho 11, 2011

As bandas musicais [ii]: A Grande Aventura de Pee-Wee (1985)

Victor Afonso, músico responsável pelo projecto Kubik e autor do blogue O Homem Que Sabia Demasiado, escreve a segunda edição d“As Bandas Musicais”, rubrica mensal em que um convidado escreverá sobre uma das suas bandas musicais de eleição. Muito obrigado ao autor por esta colaboração nO Sétimo Continente.
Estávamos em 1985 e Tim Burton era ainda praticamente desconhecido dos cinéfilos (tinha realizado apenas as curtas "Vincent" em 1982 e "Frankenweenie" em 1984). Burton tinha saído recentemente da Disney, na qual desempenhava a função de animador e onde não era propriamente compreendido por causa do seu imaginário estético negro e distorcido. Então, Burton teve a sua oportunidade de realizar a primeira longa-metragem, "A Grande Aventura de Pee-Wee", uma divertida, movimentada e imaginativa comédia sobre a alucinante aventura de Pee-Wee em busca da sua bicicleta. Pee-Wee Herman, a incrível personagem de eterna criança criada na televisão pelo incrível comediante Paul Reubens, era o centro desta tresloucada comédia itinerante de Burton, recheada de situações hilariantes e muita fantasia pelo meio. Para musicar esta fantástica aventura, Tim Burton convidou o seu jovem amigo pessoal Danny Elfman, que na altura fazia parte de uma banda new-wave intitulada Oingo Boingo. Elfman não tinha tido qualquer experiência anterior na composição de bandas sonoras originais para cinema, mas não hesitou em corresponder, com toda a sua criatividade, para a qualidade final do filme. Da linguagem pop-rock original dos Oingo Boingo, Danny Elfman aproveitou a veia fantasista e satírica, acrescentando-lhe uma orquestração clássica, ao mesmo tempo épica e surreal. Percebe-se isso logo na abertura do genérico inicial do filme, o teor da música de Elfman, com uma marcante secção rítmica quase circense (influência de Nino Rota e Ennio Morricone) e uma melodia irresistível de forte ressonância no espectador. É essa mistura entre o quase lirismo poético de Elfman (que viria a revelar-se, em todo o seu esplendor, na música que fez para "Eduardo Mãos de Tesoura") e a exuberância expressiva que fazem deste compositor um dos mais originais criadores de bandas sonoras dos últimos 25 anos. "A Grande Aventura de Pee-Wee" seria apenas o início da criatividade esfuziante de Danny Elfman em colaboração com Tim Burton: uma espécie de almas gémeas que se complementam através das imagens e dos sons.

segunda-feira, julho 04, 2011

5 perguntas (i): Diogo Figueira

Diogo Figueira, autor do blogue de cinema A Gente Não Vê, abre a rubrica semanal 5 perguntas, que confrontará vários convidados com uma série diferente de questões sobre a sua relação com o cinema. Muito obrigado, Diogo, pela tua colaboração - e apelo aos leitores que visitem o seu espaço.

★★★★★

1. O melhor filme português?

Há vários recantos que me falta explorar e teria mais para falar se a questão fosse invertida. De qualquer forma, os dois filmes portugueses que, até hoje, mais prazer me deram ver são de tal maneira diferentes, em conteúdo e forma, que não poderei deixar de nomear os dois: "Recordações da Casa Amarela", de João César Monteiro, e o recente "José e Pilar", de Miguel Gonçalves Mendes. O primeiro pela sua causticidade, pela subtileza do diálogo através do subtexto, aforismo de mestria da escrita para cinema, que tão bem praticam os grandes escritores internacionais e que nunca tinha visto ser feito por cá, ou tão bem. Ainda pela personagem de João de Deus, na qual vejo a personalidade mais marcante do cinema português, muito daquilo que nos falta, personagens capazes de entrar numa lista portuguesa de personagens memoráveis. Enfim, pelo tom irónico e satírico que o filme pratica, que adequadamente ou não, mas pelo menos curiosamente, me faz lembrar a escrita de José Saramago (apesar de não ser uma parábola). O meu único problema com o filme é o ritmo. O segundo, pela sensibilidade, pela beleza do pormenor, pela genialidade das reflexões, pela subtileza e encaixe perfeito dos momentos captados, pelo perfeccionismo da câmara e da montagem que fazem do filme não um fic-doc (como é The Hurt Locker ou Close Up) mas sim um doc-fic, forjando dali dois personagens igualmente memoráveis, que nos atingem com a dimensão mística da ficção, do ideal. Já admirava Saramago, enquanto escritor, e foi muito bom ficar a conhecê-lo longe do sensacionalismo da imprensa.

2. Interdição ou legalização do descarregamento gratuito de filmes na internet?

Legalização, com limites. A favor da interdição há as óbvias questões do lucro, dos direitos autorais, etc. Mas a favor da legalização está o factor mais forte de todos: a publicidade. Se eu não conhecer o trabalho do Iñarritu e puder descarregar o 21 Grams ou o Babel, gostando, a probabilidade de querer ir ver Biutiful será muito maior. Tenho ouvido, por diversas vezes, vozes que, ao combinar ir ao cinema, apelidam "Tree of Life" de "seca". Não fazem a mínima ideia do que estão a falar. Não sabem de que trata o filme, não sabem que é Malick (então este), nada. Mas se virem The New World ou The Thin Red Line, aí as coisas poderão mudar de figura. Actualmente, é financeiramente incomportável para qualquer mínimo assíduo de filmes ir ao cinema ver tudo o que quer. Portanto, as escolhas serão sempre feitas. O que sugeriria era que fosse legalizado o download de filmes cuja estreia no país em questão tivesse sido há mais de um ano. Ou isto ou algo nestes termos. Assim, sempre que um filme sai, existe um período médio em que não pode ser descarregado, mas, a partir daí, não haveria problema - e o seu download poderia fazer certas pessoas ir ver o próximo filme do realizador/argumentista/actor em sala. Repare-se, as pessoas têm sempre de fazer opções. Aqui, apenas 1) se ajuda a tomar a opção (contribuindo, eventualmente, para um enriquecimento do conhecimento cinematográfico da população); 2) contorna-se o inevitável, já que a pirataria é, a meu ver, inexterminável. Surge a questão da venda dos DVDs. Os DVDs que se vendem agora continuar-se-ião a vender na altura porque os motivos para comprar um DVD não são a necessidade de ver o filme mas sim a vontade de ter o sentimento de posse sobre aquele objecto (seja que razão for).

3. Que filme viu mais vezes em sala?

Felizmente, um dos meus favoritos, There Will Be Blood. Duas vezes. Não há outro filme, segundo me lembro, que tenha visto duas vezes em sala, ainda. Em DVD, vence também There Will Be Blood e em VHS ou The Lion King ou The Jungle Book.

4. Digital ou película?

Nem um nem outro; ambos. A película certamente que tem as suas vantagens sobre o digital ou não seria advogada por mestres como Paul Thomas Anderson (e conheces o respeito e veneração que tenho por ele) ou Wally Pfister (ganhou até um Óscar na passada edição dos prémios). Por outro lado, o digital certamente que também comportará as suas, ou não seria advogado por mestres como David Fincher (a belíssima fotografia de The Social Network ou Benjamin Button, ambos nomeados para o Óscar) ou Roger Deakins (estreou-se em digital depois de True Grit e adorou). Eu acho que em última análise o que deve ditar a questão é o orçamento. Se há pouco dinheiro, faça-se em digital. Se há muito dinheiro e somos o Christopher Nolan, faça-se em película. De qualquer forma, acho que o segundo tenderá a desaparecer e acontecerá sem os maremotos de lamentos histéricos que muitos proclamam, com pouco conhecimento de causa já que, como se vê, o digital pode dar uma grande fotografia. Última nota, a película é mesmo, mesmo cara. É uma monstruosidade. E os cineastas portugueses teimam em não aceitar isso.

5. O filme que mais anseia que estreie?

Sem hesitar, os dois de Paul Thomas Anderson: The Master, já em rodagem, e Inherent Vice, em processo de escrita (ainda por cima já li o livro). Depois, Django Unchained, de Tarantino, Midnight in Paris, de Woody Allen (em terras lusitanas), entre muitos outros. O eterno não-concretizado Napoleão, de Kubrick, vale? Bom, agora resta-me esperar para que realmente nunca seja feito.

segunda-feira, junho 06, 2011

As bandas musicais [i]: Alice (2005)


O jornalista e crítico de música João Moço abre “As Bandas Musicais”, rubrica mensal em que um convidado escreverá sobre uma das suas bandas musicais de eleição. Muito obrigado ao autor por esta colaboração no blogue.
Em Portugal é raro a música para cinema chegar a ser editada em CD. Inexplicavelmente colocada no segundo plano de acção, quando tantas vezes tem um lugar fulcral para uma assimilação mais profunda daquilo que o realizador nos quer contar por imagens. A banda sonora de Alice, primeira longa-metragem de Marco Martins, foi uma excepção. Não só pelo facto da música que Bernardo Sassetti compôs para o filme ter ganho uma outra vida em CD, tornando-a uma força que vale por si só, mas principalmente pelo nível de excelência que aqui se ouve. Em movimentos circulares Bernardo Sassetti vai revelando ao piano a obsessão de um pai numa busca incessante pela filha, desaparecida numa Lisboa que se mostra desencantada, sofrida. Essa Lisboa envolve a música de Sassetti pela inclusão dos ambientes da sonoplastia do filme. O mesmo tema repete-se, encontrando novos olhares em diferentes variações harmónicas e movimentos musicais, como se víssemos este pai voltando obsessivamente aos mesmos lugares na esperança de encontrar algo que preencha o vazio da perda que sofre. Assim Bernardo Sassetti conseguiu criar uma música que consegue espelhar toda a angústia que atravessa o pai de Alice (interpretado no filme exemplarmente por Nuno Lopes). Não a vemos, mas Alice está sempre lá, numa voz perdida sugerida pelo clarinete de Rui Rosa, que se ouve entre os passos repetitivos (quase como um ritual) deste pai, representados no piano de Sassetti. É impossível pensar no filme de Marco Martins sem a música de Bernardo Sassetti. Quando isto acontece é porque estamos perante uma obra maior.

João Moço

sábado, maio 28, 2011

A dúvida e a incerteza em Malick: uma observação

Com o mês de Terrence Malick n'O Sétimo Continente a chegar ao fim publico hoje uma reflexão pessoal sobre a sua obra, escrita por Rúben Gonçalves. Um muito obrigado por esta colaboração.
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Power dwells apart in its tranquility,
Remote, serene and inaccessible,
And this the naked countenance of earth
On which I gaze, even these primeval mountains,
Teach the adverting mind.

Percy Bysshe Shelley
Conheci Malick numa altura em que não fazia ideia do que era o cinema. Já se passaram anos desde que vi pela primeira vez “The New World”, e, embora me seja difícil descrever a impressão que o filme me suscitou logo depois dos créditos finais, tenho a certeza de a experimentar, renovada, sempre que o revejo. Não me preocupo muito em tentar precisar no que consiste essa impressão, mas o hábito – e a visualização de obras de semelhante calibre – mostrou-me aos poucos que é ela o meu único critério para avaliar um filme, ou o que dele em mim ecoa: esses momentos imediatamente a seguir à última imagem e ao último som, em que me sinto como que renascido, ridiculamente omnipotente e desperto – a grandeza deixa-me sempre assim. E, com a suspeita de me ter sido revelada uma qualquer verdade que, embora oculta até aí, de alguma forma sempre existiu em mim – como todas as verdades merecedoras do nosso esforço de as descobrirmos –, desligo a televisão (só o “Tree of Life” tive oportunidade de ver em grande ecrã) e despeço-me da vida, pois que é ela senão esses breves contactos com a beleza?

Ora, não se pode falar deste realizador sem se mencionar aquilo que parece ser o tema de onde partem todos os seus filmes, e sobre o qual cada um oferece novas perspectivas: a relação que o homem – o soldado solitário, o forasteiro a descobrir o que aparenta ser o paraíso perdido, o amante em fuga – estabelece com a natureza. As suas personagens são constantemente atormentadas por um desejo de evasão, uma necessidade de se refugiarem daquilo que provoca a manifestação das suas facetas malignas, a busca pela redenção através da familiarização com a natureza, com as origens, que coincide, por vezes, com a promessa de um novo começo. A catarse – ou a possibilidade dela – reside em Malick na paisagem, no confronto com os elementos que universalmente constituem todos os seres, as leis que tudo regem, confronto esse que resulta, não raramente, na negação das ilusões que as personagens vinham acalentando e consequente constatação de que a verdade é afinal aquilo de que eles procuravam fugir. Tal acontece em “Days Of Heaven”, em que o retiro da cidade, da civilização – embora não por completo, como vemos, por exemplo, em “Badlands” – não mitiga os impulsos homicidas do protagonista vivido por Richard Gere, envolvendo-o, em vez disso, numa intriga de mentiras que culmina em morte, aquilo que precisamente desencadeara a sua partida para o campo, ou em “The New World”, em que a condição como que virginal das terras onde chegam os marinheiros parece encerrar augúrios de felicidade e abundância, que a acção do homem, por si só, se apressa contudo em contrariar, a natureza surgindo assim como um estado primitivo – a mãe de todas as coisas – que a presença do homem invariavelmente perturba, ou, antes, que reflecte aquilo de que ela mesma se compõe, pois, admitindo, como em “The Thin Red Line”, a guerra como parte integrante dos fenómenos ocorridos na natureza, a aceitando-a como indispensável para manter a ordem estabelecida das coisas, onde a luta pela sobrevivência ocupa um dos primeiros lugares – senão mesmo o primeiro, juntamente com a conservação da espécie – e a morte surge como condição necessária para a vida, para a regeneração, rejeita-se a concepção de Rousseau segundo a qual a bondade, inerente à condição humana, é corrompida pela vida em sociedade. O homem aparece, então, como manifestação última, como voz, da natureza, e a sua busca pela recuperação dos laços que a ela o unem revela-lhe uma certeza apenas – a existência inegável do caos –, a aceitação dela revelando-se a maior aprendizagem que as personagens podem colher dessa busca.

A propósito de Malick utilizam-se muitas vezes os adjectivos “lírico” ou “poético”, e se tal se deve, sem dúvida, à forma particular com que ele filma a paisagem, tal descrição decorrerá também do recurso à metáfora como figura de estilo por excelência na construção do sentido. Lembremo-nos, por exemplo, do momento em que um dinossauro ataca outro, já caído, mas que não chega a matar, em “The Tree of Life”, e como esse gesto materializa a relação de poder e subordinação que o pai estabelece com os seus três filhos; ou os planos dos animais nas searas, em “Days Of Heaven”, como lembrança de que a recolha do trigo para garantir o alimento do homem representa igualmente a destruição de um habitat.

A metáfora está presente, de resto, nos muitos voice-overs que acompanham as suas obras, e que, nunca parecendo pleonásticos, acrescentam outras camadas àquilo que vemos, conferindo uma outra ambiência ao filme através do carácter quase sinfónico que reveste estes diálogos que as personagens, deslocadas do universo material, vão mantendo entre si, nestas momentâneas manifestações de consciência num plano dir-se-ia abstracto, o do pensamento.

E, claro, o amor. Poder-se-ia dizer que todas as histórias são histórias de amor, na medida em que testemunham essa entrega e esforço de perseverança que estão sempre implicadas na sua concepção, e em Malick não é diferente. Seria legítimo, porém, afirmar que é o amor aquilo que motiva as personagens nas suas acções? Provavelmente não será assim tão linear, mas, observando de perto, não é difícil perceber qual o lugar que tal sentimento ocupa na vida dos seus protagonistas – é o amor, afinal, que impele a personagem do Brad Pitt em “The Tree of Life” a submeter os filhos a uma educação tão rígida e intransigente, pois será isso que os conduzirá, a seu ver, ao caminho do bem (ele personificando, juntamente com a figura materna vivida por Jessica Chastain, essa dualidade entre a via da natureza e a via da graça que está na base da história); é o amor, também, que permite ao soldado interpretado por Ben Chaplin em “The Thin Red Line” enfrentar os pesadelos e os horrores da guerra, vivido sob a forma de uma correspondência que, antevendo um reencontro no futuro, torna suportável um presente de distância; e que é senão o amor que possibilita à Pocahontas do “The New World” enfrentar o desconhecido, pondo em causa a protecção que lhe garante a sua tribo, e alcançar depois a maturidade emocional com a experiência da maternidade? Em “Badlands”, no meio de toda a alienação em que as personagens principais gradualmente mergulham, parece, de igual forma, ser o amor que os une a sua única certeza.

Enfim, como se posiciona Malick em relação a tudo isto? Antes de tentar impor ideologias, questiona-se. Contempla. Sabe que o julgamento é inimigo de todo o retrato do ser humano que se queira fidedigno e, por isso, observa. Não pode fazer mais do que exteriorizar as suas dúvidas e, assim, tentar dissipá-las para si; quanto a nós, é através da sua dúvidas que nos permitimos duvidar, e esse será porventura o primeiro passo do caminho para o qual a sua filmografia nos aponta, um caminho em que a dúvida é condição indispensável e a ausência de certezas absolutas uma realidade inevitável – e não é esse, em suma, o caminho da vida?

Rúben Gonçalves