«(...) escreve o argumento de «The Gravy Train», realizado por Jack Starrett e, quatro anos depois [1978], escreve, realiza e surge também como figurante em «Days of Heaven», filme com Richard Gere e Brooke Adams, onde batalha pela imagem modelar que materializasse as suas ideias cinematográficas, chegando a despedir dois directores de fotografia. O esforço é reconhecido pela Academia, que galardoa o filme com o Óscar de Melhor Fotografia, e pelo Festival de Cannes, onde vence o prémio de melhor realizador.» (do post «Seguindo o trilho de Malick»)
Álvaro Martins, autor do blogue Preto e Branco, é desta vez o novo convidado especial e que nos apresenta a segunda longa-metragem de Terrence Malick - Days of Heaven (1978). Os meus maiores agradecimentos por esta colaboração.
Primeiramente que tudo, Dias do Paraíso é um filme de época (e o genérico inicial atesta-o bem), duma época em que se dava o boom da economia norte-americana, estávamos no inicio do século em plena expansão da industrialização (era o auge da Revolução Industrial Americana que reconstruía/desenvolvia o sul do país após uma devastadora Guerra Civil) em que obrigava milhares de pessoas a migrarem do norte para o sul (além da emigração europeia que se fez sentir abruptamente nesse período) em busca de trabalho e na fuga à pobreza (causa da demora do sul em se reconstruir económica e socialmente após uma derrota na Guerra Civil que devastou o seu território e o condenou durante anos a uma política que favorecia o norte em detrimento do sul) e à exploração fabril. De facto vemos bem vincado em Days of Heaven essa exploração da mão-de-obra barata que a imensa procura de trabalho e o próprio crescimento laboral e económico que o sul atravessava permitia às entidades patronais e aos grandes fazendeiros (caso do filme).
Days of Heaven é na sua superfície uma tragédia resultante dum triângulo amoroso composto por Bill, Abby a namorada que ele apresenta a todos como sua irmã e o fazendeiro onde estes vão trabalhar, respectivamente Richard Gere, Brooke Adams e Sam Shepard. O filme começa com Bill a trabalhar numa fábrica de fundição de aço em Chicago onde, após um desentendimento e consequente luta, acaba por matar o capataz. Antes de avançarmos para a fuga que leva Bill, Abby e a sua pequena irmã Linda (Linda Manz) até ao Texas e à fazenda de Sam Shepard, salienta-se desde já o espírito subversivo de Bill (que personifica uma geração e uma classe) face à sua condição social e económica e ao trato a que esta era comummente submetida. "Aqui tratam-nos como cães'' diz mais tarde, já na fazenda. Bill é orgulhoso e ambicioso, mais tarde o comprovaremos, mas naquele momento com aquela sublevação momentânea contra aquele capataz a sua natureza não é a de um criminoso mas sim de um inadaptado (à semelhança daquilo que fizera em Badlands) à sua condição social, porque ele não o queria matar mas sim tombar, mostrar que o operário não é escravo. Coisa própria do vigor e da inocência da juventude, mas acima de tudo resultante da dignidade, do orgulho e da rebeldia. Ainda Bill está sobre o capataz, que mal sofre o golpe desferido se tomba no chão sem mais reacção, e ouvimos uma voz-off que nos diz (enquanto Bill se consciencializa do que cometera) “Eu e o meu irmão costumávamos ser apenas eu e o meu irmão. Costumávamos fazer coisas juntos. Divertíamo-nos. Vagueávamos pelas ruas.” Mais tarde ficaremos a saber de quem é a voz-off e ficaremos acima de tudo a saber que Days of Heaven não é um filme sobre um triângulo amoroso e sua resultante tragédia mas sim sobre ela, Linda, e como a sua visão de menina viu surgir e desvanecer aqueles “dias do paraíso”. A isso o comprova a última imagem do genérico inicial, a fotografia de Linda. Talvez por isso (mais do que talvez seguramente) vejamos aquele triângulo de longe, não só narrado constantemente pela voz-off dela (e já todos sabemos que a voz-off é uma constante nos filmes de Malick) mas também pela sua visão distante, sem nunca sentirmos de perto toda a paixão arrebatadora de Bill ou do fazendeiro, porque de facto não é vivido por ela. Por isso vemos com maior enfoque a natureza (mais outra constante em Malick) e a sua relação (a de Linda) com ela, por isso se destaquem os “dias do paraíso”, aqueles dias em que tudo pareceu perfeito aos olhos de Linda, que mesmo compreendendo toda a ambiguidade e duplicidade daquele relacionamento os viveu intensamente e a marcaram não só pela sua excepcionalidade “Nunca tínhamos sido tão ricos entendem? Subitamente, estávamos a viver como reis. Só tínhamos de dizer graçolas e andar por ali. Não tínhamos de trabalhar. Digo-lhes que as pessoas ricas é que sabem.” (por isso o paraíso), como pela tragédia que daí resultaria.
Da tragédia, mas nem só da tragédia, resulta a perda. E por isso Days of Heaven é filme da perda e da nostalgia. O que a voz-off de Linda deixa transparecer (e sobretudo aquele final) é de que o tempo dessa voz-off é um tempo não muito distante da tragédia, tragédia essa que resultará no seu sentimento de perda aliada (a tragédia) à nostalgia (e Malick consegue tão bem transmitir visualmente e sensorialmente esse sentido nostálgico) daqueles dias que traduzem, no fim de contas, outra perda. Assim, Days of Heaven é um filme lamento, coisa brutal e dilacerante na tragédia mas acima de tudo na contemplação do espaço (que o eleva a ele e ao tempo como coisa quase divina) e no sentimento de perda, de nostalgia, de melancolia e de amargura que aquela voz-off de Linda transmite.
De resto, e embora se tenha que falar de simbologias à terra e ao ar e ao fogo e à água (coisa que também acontece nos outros filmes de Malick), a principal simbologia em Dias do Paraíso é a praga de gafanhotos que antecede e que como que profetiza (dando assim uma dimensão bíblica à obra) a tragédia. O que fica de Days of Heaven é, não o confronto com a morte mas sim uma elegia à vida (e isto pelo que fica para aquela adolescente de dezasseis anos mesmo com toda a amargura do mundo) e a tudo o que rodeia a vida (essencialmente a natureza). Porque isso é o que faz o cinema de Malick, é isso que o representa e o distingue do resto (ou de quase todo o resto) do mainstream norte-americano (lembro-me de Van Sant com a tentativa de aproximação embora a sua grande influência seja Tarr e seja no “manejamento” da câmara que este mais incorra), a contemplação e a harmonia com que filma os espaços abertos (Tarkovsky à cabeça), não só a natureza como o céu (mais nenhum se aproxima tanto mas tanto de Ford), o vento, a terra, as plantas, a vida, o cariz sensorial (não confundir com sentimental) que consegue transmitir, a forma como cada imagem (e a fotografia, aqui de Nestor Almendros e de Haskell Wexler, também para isso muito contribui) é um tela pintada, a comunicação entre toda aquela contemplação visual com a música (aqui de Morricone) que resulta nesse extravasar sensorial que nos maravilha. E tudo se deve a essa desmesurada magnitude (e simbologia e transcendência) que Malick atribui aos quatro elementos que compõem a natureza (água, ar, terra e fogo) e à relação do Homem com estes. É isso o cinema de Malick, é isso a sua beleza e que faz dele um dos melhores cineastas da actualidade.
Álvaro Martins
Excelente crítica para uma das obras primas de Malick.
ResponderEliminarSim, Manuela, de facto é excelente, o texto do Álvaro e o filme.
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