quinta-feira, maio 19, 2011

O triunfo da magia

Acabado de sair o DVD da primeira parte de «Harry Potter e os Talismãs da Morte» e a dois meses de estrear o último filme, um olhar de balanço sobre a saga que marcou uma geração.

Passavam pouco mais de dois meses desde que o horror dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 abalara o mundo quando o produtor David Heyman lançou, nos EUA, um franchising cinematográfico que se revelou como uma autêntica bomba. Não são de admirar os recordes de bilheteira e os 150 milhões de dólares (104 milhões de euros) obtidos no fim-de-semana de Acção de Graças em que a Warner Bros. deu a conhecer Harry Potter no grande ecrã. De certa maneira o franzino e estranho rapazinho inglês maltratado pelos tios com quem vive e que, no seu décimo primeiro aniversário, descobre ser órfão de pais feiticeiros, equipara-se ao espectador norte-americano de então: fragilizado e com a necessidade de um escape. Foi precisamente a partir do momento em que o jovem é convidado a estudar na Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts que a sua vida mudou radicalmente. Depois de uma década, a magia prepara-se para chegar ao fim, quer para Harry, que enfrenta o arqui-inimigo, como para os milhares de não-feiticeiros (que é como quem diz, os muggles, expressão que até o Oxford English Dictionary hoje inclui) que constituem o público que o segue nas suas aventuras no cinema. Antes da estreia da segunda parte do último capítulo da saga, «Harry Potter e os Talismãs da Morte», prevista para o dia 14 de Julho em Portugal, o que podemos dizer que mudou e como olhamos a geração que se formou, à volta de todo o globo, na companhia do mais famoso dos feiticeiros?

Ao contrário da resposta para a questão que se coloca, a fórmula da britânica J. K. Rowling é simples. Levando consigo os níveis da originalidade e complexidade de Tolkien (autor de «O Senhor dos Anéis»), que alia com o seu fértil imaginário, a autora dos sete livros baseia a progressão da série num conflito clássico maniqueísta no qual o bem e o mal, representados respectivamente por Harry Potter e Lord Voldemort, lutam entre si. Apesar disto, será curioso salientar como, a cada ano lectivo e livro que o retrata, Rowling vai enfraquecendo a ingenuidade do herói, seguindo a adolescência e propondo-se a caracterizá-lo misturando qualidades e defeitos que, não poucas vezes, se parecem diluir. Esta ideia de «herói por acidente», bem como a de desígnio, complementam a imagem ideal de como deverá ser o leitor: fiel à sua individualidade e propósitos na vida (metáfora que a própria divisão dos alunos de Hogwarts em equipas, cujos valores são distintos, representa bem).

Watson, Radcliffe e Grint.
A produção dos filmes, que adquire os direitos de «Harry Potter e a Pedra Filosofal» (originalmente publicado no Reino Unido em 1997) por 1,14 milhões de euros, empenha-se em acompanhar a febre que se instala no princípio do milénio (pela primeira vez, um livro da saga – o quarto – é lançado à meia-noite), revelando o primeiro poster no dia 30 de Dezembro de 2000. Steven Spielberg é considerado para assinar contrato para a realização de sete títulos mas as suas divergências com o formato do filme (o realizador acreditava que funcionaria apenas como animação) e com a origem do elenco (que a escritora quis assegurar que seria exclusivamente britânica) fazem-no abandonar o projecto. Entretanto, surge em cena Chris Columbus, que se encarrega de dirigir os jovens actores Daniel Radcliffe (Harry Potter), Emma Watson (Hermione Granger) e Rupert Grint (Ron Weasley), o trio, agradavelmente improvável, de melhores amigos que se forma no primeiro ano de escola. A presença de Columbus, conhecido sobretudo pelos dois primeiros e bem-sucedidos «Sozinho em Casa» (em 1990 e 1992), era, para além de evasão à realidade, sinónima de criação de entretenimento dirigido, particularmente, para as famílias. O realizador acabou por adequar a sua visão aos filmes de David Lean que mais o inspiraram – «Great Expectations» (1946) e «Oliver Twist» (1948), ambos curiosamente adaptações literárias –, que o permitem criar um universo altamente colorido e detalhado, como se visto pelos olhos de uma criança e do próprio Harry. É talvez por isso que sentimos uma curiosidade pueril no primeiro filme, lançado a 30 de Novembro de 2001 em Portugal (estreia que bateu na altura o recorde de bilheteira como o fim de semana mais lucrativo de sempre entre nós). É fulcral assinalar como a história abre com um tom de desagregação familiar e de agoniante solidão para percorrer um arco que termina em união e esperança. Quer isto demonstrar que o primeiro filme introduz um conjunto de valores que, apesar de não serem novos, acabam por reforçar a tendência da produção cinematográfica mainstream ligada ao público jovem para se ajustar às realidades contemporâneas. O primeiro filme introduz-nos o universo em que entram, em desconhecimento total, o protagonista e o espectador, que se confundem por entre os corredores da escola e o desenvolvimento da trama.

Nunca será demais afastarmo-nos das consequências socioculturais resultantes do conteúdo para perceber como a lógica do blockbuster e do marketing em seu torno acabou por se mostrar altamente frutífera. Muito à semelhança do fenómeno «Guerra das Estrelas», o tema musical central, composto pelo icónico John Williams, tornou-se globalmente reconhecível, tamanha passou a ser a sua utilização nas apresentações das sequelas, nos eventos organizados pelos fãs, nos toques para telemóveis e nos jogos de vídeo, da responsabilidade da Electronic Arts, que fizeram parte do merchandising «potteriano». Para além destes, enquanto a Mattel, a Lego e a Hasbro adquirem os direitos para produzir figuras em miniatura, surgem produtos comestíveis baseados no mundo fantástico e outros artigos essencialmente destinados às crianças. A Coca-Cola encarrega-se de promover os filmes depois de um contrato de 104 milhões de euros. A série difundia-se internacionalmente a um ritmo singular na era da Internet, impulsionando a criação e partilha de fóruns, desenhos, ficção literária baseada no universo de Rowling, montagens de vídeo e portais dedicados aos fãs, nos quais discutiam os desenvolvimentos do futuro dos filmes e dos livros. A partir do momento em que a comunidade dos admiradores de Harry Potter ultrapassa a fasquia inicialmente promovida para o público leitor e espectador, abarcando todas as idades, a imagem do protagonista e da sua cicatriz na testa em forma de raio afirmaram-se definitivamente como um ícone cultural de conhecimento obrigatório.

Watson, Grint e Radcliffe em «Harry Potter and the Chamber of Secrets»

Um ano depois, «Harry Potter e a Câmara dos Segredos» estreia em todo o mundo, com um retorno financeiro de 429 milhões de euros fora dos Estados Unidos, ultrapassando os 406 milhões da segunda parte de «O Senhor dos Anéis». O segundo capítulo foi recebido com um olhar bem mais atento pelo público e crítica, que confirmava a continuação da adaptação literária dos livros de J. K. Rowling até o fim, e serviu de introdução ao vilão da história. Se no primeiro esbatemos contra uma clara ambivalência entre as forças do bem e as do mal, neste segundo mergulhamos na psicologia e passado de Lord Voldemort e do seu caminho para a perdição, algo que será continuadamente aprofundado ao longo dos futuros filmes. «A Câmara dos Segredos» introduz, de igual maneira e melhor que qualquer outro filme, o tema histórico e político da segregação e da urgência de igualdade de direitos. Não se tratam de judeus, mas dos meio-sangue discriminados e dos elfos domésticos escravizados (a liberdade de Dobby, o elfo que acaba por travar amizade com Harry, é inclusive auto-proclamada na primeira parte do último filme). Toda a terminologia empregue lança, sempre com cautela, mensagens subtis que invocam constantemente o respeito pela diferença (em 2007, a autora revelou que Dumbledore, o grande mentor do aprendiz de feiticeiro e director de Hogwarts, era homossexual), pelo que poderemos considerar a saga como uma apologia da diversidade.

Watson e Radcliffe em «Harry Potter 3»
Em 2003, enquanto «A Ordem da Fénix» vendia 5 milhões de livros no primeiro dia de lançamento, a produção do terceiro filme decorria, na qual Chris Columbus fica afastado da realização. Guillermo del ToroO Labirinto do Fauno», 2006) é convidado a dirigir «Harry Potter e o Prisioneiro de Azkban», colaboração que recusa pelo desinteresse em se associar a algo que considerava ser demasiado «brilhante, feliz e cheio de luz». O posterior auxílio do mexicano Alfonso Cuarón (mais conhecido pelos seus filmes «E a tua Mãe Também», em 2001, e «Os Filhos do Homem», em 2006) acabou por refutar essa ideia, desenvolvendo, na terceira parte e reunido com a fotografia e a banda musical, uma atmosfera distinta, fria, estilizada e negra, fazendo sobressair, pela única vez, a sua identidade enquanto autor sobre o entretenimento puro dos filmes da série. Não é de admirar que, aqui, nunca a morte tenha parecido tão próxima, já que a consciência do herói se vê, pela primeira vez, na obrigação de proteger a própria vida dos Devoradores da Morte. A própria Rowling admite que os livros são essencialmente «sobre a morte». Não existem, neste filme, lançado no Verão de 2004, traços da pré-adolescência ingénua apresentados nos capítulos precedentes, anunciando uma maturidade e independência das personagens e do próprio cinema de Harry Potter, que se complexifica em personagens e em narrativa.

O facto de o terceiro ter sido o menos lucrativo dos sete filmes fez com que a promoção se intensificasse em 2005 para «Harry Potter e o Cálice de Fogo» (realizado por Mike Newell), que estreou em Novembro, rendendo 622 milhões de euros, tornando-se no mais rentável desse ano. Dois anos depois, David Yates surgiria como o realizador definitivo dos próximos episódios, lançando «Harry Potter e a Ordem da Fénix» em 2007, a adaptação com a mais breve duração (para um livro que detém o recorde de páginas sobre os restantes) e que explora o lado da subversão política dos jovens face às injustiças vividas e o primeiro amor vivido pelo protagonista. «Harry Potter e o Príncipe Misterioso», lançado em 2009, é provavelmente o menos «mágico» de todos os capítulos, focando-se nas emoções e relações amorosas das personagens e exigindo um maior trabalho de actores. À sua semelhança, este sexto episódio surge num aproximar do fim da década assinalado pela presença de blockbusters fantásticos dirigidos ao público adolescente, como a série «Crepúsculo».

O sétimo filme, «Harry Potter e os Talismãs da Morte – Parte 1», antecede o grande final previsto para este ano, situando, através da fotografia do português Eduardo Serra, o trio fora de Hogwarts e num contexto social mergulhado no terror. Nunca antes os valores de companheirismo e lealdade estiveram tão exacerbados, prometendo uma conclusão encerrada na noção de união e esperança. Não deixa de ser curioso que, passada uma década também marcada pelo medo, a segunda parte dos «Talismãs da Morte» estreie dois meses após a morte de Osama Bin Laden.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Notícias Magazine do DN e do JN, no dia 15 de Maio de 2011.

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