Vencedor da Palma de Ouro, Terrence Malick é quase tão misterioso quanto o seu último filme, A Árvore da Vida, que acaba de estrear nas salas de cinema portuguesas
Ainda o Festival de Cannes não tinha dado a conhecer o cartaz da sua 64ª edição e já o público cinéfilo se rodeava da esperança de que A Árvore da Vida, a quinta longa-metragem do realizador norte-americano Terrence Malick, anunciada há quatro anos atrás, pudesse marcar presença naquela que é considerada a maior festa do cinema do mundo. Embora os detalhes do filme fossem, progressiva e cautelosamente, divulgados ano após ano, entre adiamentos consecutivos, o secretismo em torno desta obra manteve-se até a primeira projecção, originalmente prevista para se enquadrar na selecção de 2010 do mesmo festival. Apesar da disputa entre aplausos e apupos da crítica perante o mais ambicioso dos projectos do realizador quando finalmente ali foi exibido já este mês, o júri, presidido pelo actor Robert DeNiro, confirmou que este era realmente o ano de Malick, contemplando A Árvore da Vida com a Palma de Ouro, possivelmente o mais prestigiante dos prémios de cinema.
Consagrar o filme com o prémio máximo em Cannes ajudou a confirmar, de certa forma, a dimensão mítica que Terrence Malick inspira no seu público. Se quisermos incorrer em comparações, o norte-americano, que provém e se subleva numa indústria cinematográfica baseada ainda no chamado “star stystem”, afigura-se como o perfeito oposto de Jafar Pahani, realizador que, estando preso no Irão, e portanto impedido pelas autoridades de sair do seu país, apresentou em Cannes um filme (fora de competição) sobre si mesmo. Podemos assim, em oposição, considerar Malick como um realizador igualmente recluso, porém dentro do seu próprio universo, negando continuadamente a exposição mediática da sua imagem pública. Recusando ceder veementemente a qualquer tipo de entrevistas, aparições públicas, fotografias ou trabalhos biográficos, foi sem surpresa que, quando anunciada a Palma de Ouro, não tenhamos visto sequer a sombra de Malick, como já acontecera, para grande frustração dos jornalistas, na conferência de imprensa que se seguiu ao visionamento do filme em Cannes. “Ele até vai à casa-de-banho”, certificou, jocoso, o actor Brad Pitt, quando confrontado pelo interesse da comunicação social presente no festival sobre a personalidade do realizador.
A existência de um eremita como Terrence Malick é um caso singular, mais raro ainda nestes tempos que correm de profunda curiosidade e projecção de uma imagem pública que justifique o trabalho apresentado. A decepção de parte do público e da crítica, perante um filme que Malick não pretende discutir, mas “que o público o receba como um poema e que cada um possa interpretá-lo como quiser” (segundo as palavras do produtor Bill Pohlad), advém da falsa crença, cada vez mais robustecida pelos media, de que tem que existir uma justificação do autor sobre aquilo que cria. Porém, se face às suas intenções dermos tempo para reflectir sobre a sua atitude “tímida”, concluímos que a interacção com o espectador está ainda mais presente que um filme cujo conteúdo seja triturado pelo seu realizador. E, de qualquer das maneiras, um cineasta não saberá falar de outra coisa do que de si próprio e das questões interiores e temas que o assolam e seduzem.
Malick é um pródigo perfeccionista tendo, com 67 anos de idade e mais de 35 anos de carreira no cinema, realizado apenas cinco filmes. Nascido a 30 de Novembro de 1943, viu no Texas um mundo de amadurecimento e descoberta (e que filma na sua obra recente), região onde cresceu concluindo estudos numa escola eclesiástica privada. Estudou, com excelentes resultados, Filosofia na Universidade de Harvard, traduziu Heidegger e foi professor universitário de Filosofia enquanto escrevia para jornais como freelancer. Estudando cinema em Los Angeles, realizou em 1973 Noivos Sangrentos, um primeiro filme, após ter escrito e coordenado vários argumentos. Na verdade tinha já assinado um primeiro filme antes deste que hoje se aponta como sendo a sua estreia. Ainda como estudante realiza, escreve, compõe e representa Lanton Mills, um western de 17 minutos que hoje apenas pode ser consultado, pessoalmente, nas instalações da escola. Noivos Sangrentos recebeu uma atenção incomum da crítica, que esperou ansiosamente, em 1978, por Dias do Paraíso, com Richard Gere que consolidou Malick como um autor raro no panorama do cinema dos EUA de então. Para chegar à Árvore da Vida, Malick escapou da indústria para desenvolver “Q”, um projecto que apresentasse as origens do universo. A ambição não ficou adormecida: passados vinte anos, o mundo voltou a ver Malick em A Barreira Invisível, filme anti-guerra com inúmeras estrelas de Hollywood nomeado para sete Óscares da Academia e com sensibilidade para a relação do homem com a natureza. O tom contemplativo é explorado em 2005, quando lança O Novo Mundo, inspirado na vida da princesa índia Pocahontas. Nos intervalos entre os filmes que realizou dedicou muito do seu tempo a outros espaços no mundo do cinema, ora escrevendo argumentos, ora trabalhando como produtor.
É com os filmes e a sua sensibilidade que Terrence Malick perigosamente se expõe a um mundo faminto pela invasão de privacidade. Mas, como Brad Pitt declarou, “este filme é universal” e “espera comover todas as culturas”. O enigma da vida do realizador parecerá infinitamente pequeno se nos conseguirmos confrontar, na Palma de Ouro de 2011, com o derradeiro mistério da nossa própria existência.
Estreia de Terrence Malick no cinema, esta é a história verídica de Charles Starkweather (Kit, interpretado por Martin Sheen) e Caril Fugate (Holly, interpretada por Sissy Spacek), um casal improvável que é perseguido por ter assassinado dez pessoas. O tom ingénuo da narração, assistido pelos temas musicais de Carl Orff ou Erik Satie, desenha os protagonistas de forma lírica e trágica, situando-os em planos preferencialmente gerais de um fantasmagórico midwest. Não obstante a brutalidade dos actos, Malick contempla, calmo e distanciado, a decadência do destino de ambos de forma calma, salientando a inocência presente na paixão que os une e que demonstra ser o motor de condução do filme. Um dos momentos maiores do cinema norte-americano dos anos 70.
Vencedor do prémio de melhor realizador no Festival de Cannes e do Óscar de melhor fotografia, o cineasta consegue, com este segundo filme, um extraordinário feito estético. Debruçando-se sobre um triângulo amoroso e os sentimentos nutridos pelas personagens representadas por Richard Gere e Brooke Adams, Malick evidencia o gosto pela economia de diálogos e a valorização da acção do homem entre os campos onde trabalha. A obra, que também demonstra as primeiras ideias políticas de Malick, relacionadas com a condição precária do proletário, é essencialmente bela e comovente. Para além da fotografia (chegou a despedir-se dois directores de fotografia para se conseguir o efeito idealizado), Ennio Morricone mostra-se como a última peça chave para a experiência sensorial que Dias do Paraíso proporciona.
Depois de um longo hiato, Terrence Malick regressa vinte anos depois do último filme para adaptar o romance de James Jones e realizar um dos melhores filmes de guerra alguma vez feitos, vencedor do Urso de Ouro em Berlim e sete nomeações para os Óscares da Academia. Comandando um elenco repleto de estrelas (Sean Penn, Adrien Brody, Jared Leto, John Travolta, George Clooney, entre outros), o cineasta, pela primeira vez torna mais evidente o seu interesse e paixão pelo valor da vida, o peso da morte e a relação espiritual com a natureza. Simultaneamente horrível, realista e poético, esta é a jornada de um grupo de soldados que, em pleno Pacífico, na II Guerra Mundial, enfrenta o inferno que é construído pelas suas próprias mãos.
Baseado na história de vida da princesa índia Pocahontas, Terrence Malick regressa em 2005 ao cinema com Colin Farrel, Christian Bale e Q'orianka Kilcher, santificando, como nunca antes o fizera, a natureza, um dos principais motivos do seu cinema (simbolizado nos planos que filma da água, das árvores e do sol). Contemplativo e panteísta, este é também um dos mais silenciosos dos filmes do realizador, que coloca o amor pelo outro como o sentimento mais elevado do ser humano. Apesar de mal recebido pela crítica, este filme é dotado de uma beleza repleta de harmonia e de uma sensação, incomum no universo da indústria cinematográfica, de paz. Sentir O Novo Mundo é, em boa verdade, redescobrir, ao som de Wagner, o mundo em que vivemos e questionar a nossa concentração pelo material e o artifício.
A quinta longa-metragem de Terrence Malick é uma viagem interior e onírica carregada de angústia e nostalgia de Jack (Sean Penn) à sua infância perdida, passada nos anos 50 no Texas com o pai (Brad Pitt), a mãe (Jessica Chastain) e os dois irmãos mais novos. Construído como se de uma sinfonia tratasse, o filme explora, muito para além dos conflitos que o protagonista tem com o pai e o irmão, as questões fundamentais do ser humano. Para isso, Malick constrói uma ode à vida, elevando-a como um milagre e valor absolutos e demonstrando uma visão da origem do mundo sem precedentes. Longe de ser uma simples experiência de cinema, A Árvore da Vida propõe-se a redescobrir o cinema como um meio de contacto com o sagrado. São imagens conjugadas que, ao mesmo tempo, são capazes de questionar por que existimos e de responder transcendendo o nível da razão. Dotada de uma técnica e de uma banda musical sublimes, esta é uma obra-prima singular na História do cinema, cuja ambição se posiciona, certamente, ao nível de um “2001: Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick.
Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 28 de Maio de 2011.
Excelente artigo!
ResponderEliminarAbraço
Frank and Hall's Stuff
Obrigado Bruno :)
ResponderEliminarO "Badlands" não está editado na Criterion. Nem está previsto ser editado nos próximos meses. (não quer dizer que não venha a sê-lo).
ResponderEliminarTrata-se de uma falsa capa, aquela que "postou" no seu blog
Fiel de Armazém: é verdade, o Badlands não tem nenhuma versão da Criterion (e seria uma óptima ideia editarem). Peço desculpa por induzir em erro o leitor. A capa já foi substituída.
ResponderEliminarObrigado Flávio. Só comentei a capa e não o resto do artigo porque a excelência não se comenta, aprecia-se; e fui isso que eu fiz, apreciei o seu artigo.
ResponderEliminarExcelente, Flávio, excelente !
ResponderEliminarUm blog muito bacana. Vou linká-lo ao meu.
ResponderEliminarCumprimentos cinéfilos!
O Falcão Maltês
Obrigado Fiel de Armazén, Diogo e António :)
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