Por vezes há reflexões que têm o indecifrável poder de reposicionar a nossa relação com a imagem cinematográfica – e, como consequência, relembrar o seu poder de alterar a nossa relação com o real. Um desses exemplos, tanto mais extraordinário por ser recente, tem que ver com a transcrição da intervenção da Professora Doutora Maria Filomena Molder (Universidade de Lisboa) sobre A Árvore da Vida, de Terrence Malick (esse filme e esse realizador que foram tratados no ano passado de um modo previsível e injustamente superficial), no colóquio internacional Emoções e Crime. O registo (que foi revisto pela autora) é da responsabilidade de Luís Mendonça (autor do CINEdrio, que também escreve uma introdução inspiradora). O texto pode ser lido aqui.
Mostrar mensagens com a etiqueta Terrence Malick. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Terrence Malick. Mostrar todas as mensagens
segunda-feira, fevereiro 27, 2012
quarta-feira, fevereiro 01, 2012
Vencedor de Sundance quer ser bandeira por uma maior ousadia
Este texto foi publicado originalmente no Diário de Notícias (31 de Janeiro de 2012)
Terminou em Park City, no estado do Utah, no passado dia 29 de janeiro, aquela que é a 28ª edição do maior festival de cinema independente dos EUA – o Festival de Sundance, que este ano exibiu cerca de 120 filmes (58 dos quais em competição oficial).
A longa-metragem assinada pelo estreante Benh Zeitlin (entrevista em baixo) Beasts of the Southern Wild mereceu o maior destaque, tendo sido galardoado com o prestigiado Grande Prémio do Júri para Melhor Filme de Ficção. Este drama, que foi também laureado com o prémio para melhor fotografia (da responsabilidade de Ben Richardson), filma o percurso de uma jovem rapariga que vive com o seu pai, um doente terminal, nos confins dos Estados Unidos, numa pequena comunidade no delta do rio Mississípi.
Foi após um longo trabalho (3 anos) e o apoio do Sundance Institute (preparado para auxiliar cineastas em início de carreira) que Benh Zeitlin aceitou o prémio, esperando que “este filme seja uma bandeira para que os produtores permitam os realizadores serem tão ousados quanto possam para dirigir um filme”.
Os direitos de distribuição foram comprados e garantidos pela Fox Searchlight que, seduzida pelo caráter espiritual da narrativa, encontrou semelhanças com o filme de Terrence Malick, A Árvore da Vida, que se consagrou um sucesso comercial.
Ainda na área da ficção, o júri do festival de cinema independente reconheceu como melhor filme estrangeiro Violeta se fue a los cielos, longa-metragem de Andrés Wood sobre a vida da icónica cantora Violeta Parra (que fundou a música folclórica no Chile).
Mas não só de ficção Sundance foi preenchido este ano. Depois de já ter vencido, em 2005, o prémio para melhor documentário, Eugene Jarecki voltou a receber o galardão, desta vez para The House I Live In, uma crítica sobre a realidade norte-americana atual do combate às drogas. Por sua vez, The Law in These Parts, retrato duro do sistema militar legal hebraico nos territórios palestinianos ocupados, fez com que o israelita Raanan Alexandrowicz levasse consigo o prémio para melhor documentário internacional.
Ainda que o foco do certame seja exclusivo ao cinema independente e de baixo orçamento, Sundance tem tido uma progressiva atenção mediática por ser palco da projeção dos realizadores de amanhã. Assim, não é de admirar o anunciado crescimento de 6% relativamente às submissões de filmes (de acordo com o site oficial, Sundance recebe aproximadamente 9000 inscrições todos os anos).
A edição de 2012, com duração de nove dias, ficou invariavelmente marcada pelo falecimento do produtor Bingham Ray, de 57 anos, durante o festival.
quarta-feira, janeiro 25, 2012
A palavra (4): Jorge Mourinha
Os dois filmes mais nomeados para os Óscares de 2012 são sintomas. Sintomas da cinefilia de quem os fez - no caso de O Artista, Michel Hazanavicius, realizador francês vindo da televisão e cuja obra já revelava um amor pelo cinema "à maneira de"; no caso de A Invenção de Hugo, Martin Scorsese, o mais cinéfilo de todos os cineastas, fervente defensor do restauro e da divulgação da história do cinema. E sintomas da magia do cinema que os dois filmes evocam e procuram recuperar, pelo meio de uma paisagem audiovisual onde ele já não é a força cultural da primeira metade do século XX, mas está perdido pelo meio dos multiplexes, computadores, iPads e televisores.(…) Os Óscares, assim, voltam em 2012 a ser aquilo que sempre foram: uma enorme manobra de marketing que premeia mais o sucesso (As Serviçais, Meia-Noite em Paris) ou o estatuto (Scorsese, Spielberg, Streep) do que a qualidade, que quer fazer passar o cinema que se faz numa Hollywood cada vez menos inspirada pelo único cinema que vale a pena. É por isso que é tão estranho, e tão sintomático, ver A Árvore da Vida, de Terrence Malick, entre os nove nomeados para Melhor Filme - porque Malick é o único cineasta americano contemporâneo que não quer saber de Hollywood. E o seu é o único filme que não precisa dos Óscares - são os Óscares que precisam dele.
Jorge Mourinha in Público (caderno P2, Uma magia que já não se faz), 25 de Janeiro de 2012
Marcado em:
A palavra,
Cinema,
Jorge Mourinha,
Martin Scorsese,
Michel Hazanavicius,
Óscares,
Steven Spielberg,
Terrence Malick,
Woody Allen
sexta-feira, dezembro 30, 2011
Top 10 melhores filmes de 2011
10. ROAD TO NOWHERE – SEM DESTINO, de Monte Hellman
Uma resposta ao mistério ontológico da criação da imagem cinematográfica, debruçando-se sobre a realidade re-presentada (isto é, tornada presente) durante a rodagem de um filme. O realizador-protagonista não é, por isso, senão o espelho de Hellman, que se olha para si mesmo como um criador de várias realidades, ainda que indissociáveis. [texto]
9. UMA SEPARAÇÃO, de Asghar Farhadi
Entre o realismo e o melodrama, Asghar Farhadi constrói na sua quinta longa-metragem, em tom desencantado, uma espécie de evidência sociológica – de que a verdade e a mentira, de mãos dadas com a religião e o medo, são valores que coexistem, para o bem ou para o mal, sem separação.
8. O MIÚDO DA BICICLETA, de Jean-Pierre & Luc Dardenne
Os irmãos Dardenne comprovaram aqui que é possível, na moral e nos tempos que correm, pensar uma dura realidade a partir de uma ficção que demonstre que as pessoas se podem preocupar umas com as outras. Ou em poucas palavras: que a nossa necessidade de sermos amados pode ser consumada. [texto]
7. O ATALHO, de Kelly Reichardt
Apesar de registar um espírito histórico e primitivo de povoamento, união e descoberta, a câmara desta cineasta é consciente do seu tempo e não deixa de filmar algo que permanece profundamente contemporâneo: como o ser humano reage (e se revela) face ao desconhecido e a situações-limite. [texto]
6. INQUIETOS, de Gus Van Sant
Muito embora possamos pensá-lo um filme sobre a morte será melhor desenganarmo-nos. Parece ser sobre uma questão ainda mais fundamental: como viver a vida ou, sem redundâncias, como viver? Porque, como aqui ouvimos, a morte é fácil, o amor (ou toda a vida, não nos importemos de acrescentar) é que é difícil. Em Inquietos chora-se – mas pelos vivos. No plano final do filme percebemos que a memória é o recurso que nos é mais caro para lidarmos com tudo aquilo que é efémero, tudo aquilo que já não é. [texto]
5. AS QUATRO VOLTAS, de Michelangelo Frammartino
Uma visão tranquila sobre a jornada de um homem, de uma cabra e de uma árvore e que pode ser entendida como uma meditação tranquila, fresca e bela sobre a vida, o espírito e as suas metamorfoses.
4. SUBMARINO, de Richard Ayoade
Extraordinário olhar sobre a vida frenética, por vezes imaginada, de Oliver Tate, um jovem galês obsessivo e solitário. Lidando com força com os lugares-comuns da adolescência esta inesquecível comédia (que nos remete para múltiplas citações cinematográficas – mas sem as esconder) é também uma redescoberta do que significa o primeiro amor e o valor da palavra felicidade.
3. SANGUE DO MEU SANGUE, de João Canijo
A sedução de Sangue do meu Sangue provém da criação de um microcosmos (o Bairro Padre Cruz e, se quisermos ser mais particulares, a família que lá vive) que nos obriga, apesar de toda a familiaridade cómica e trágica daqueles comportamentos, a criar uma distância sobre nós – como portugueses e como seres humanos. Portanto: o que são o futebol, o telejornal e a telenovela ao lado dos dramas, das conquistas e da vida que partilhámos e nos une? É aí que reside a irresistível luminosidade de Sangue do meu Sangue: obriga-nos com que não nos esqueçamos da matéria de que somos feitos. [texto]
2. MEL, de Semih Kaplanoğlu
É um daqueles raros acontecimentos cinematográficos que não se esperam - manter uma proximidade com a Natureza, a família e a infância num tom panteísta forte e belo e sermos assim introduzidos a um tipo de realismo espiritual (o termo é do próprio Semih Kaplanoğlu), é coisa rara (embora necessária) no cinema de hoje.
1. A ÁRVORE DA VIDA, de Terrence Malick
Parece, após vermos The Tree of Life, devidamente sem ideias pré-concebidas, impor-se uma questão: como pode o espectador receber um meteorito metacinematográfico como este que se propõe a questionar toda a sua existência? Que efeito terá a obra-prima de Terrence Malick em si? Mais que uma outra aparição nesta forma de expressão, este é um raro filme, sem distinções de público, que ambiciona redefinir-se como objecto de cinema e, para além disso, redefinir quem o percepciona. Então voltemos: como receber este filme que, a partir do momento extraordinário em que o vemos – ou, se nos quisermos aproximar mais da experiência, sentimos –, entramos dentro de nós, recordando afectos, sensações e uma vaga e passada aproximação com o divino, e imaginando respostas para as questões que nos assolam (e permanecem, porventura, silenciadas pelo esquecimento ou o medo)? The Tree of Life, se nos propusermos a mudar os seus contextos e figuras, podia ser um sonho nosso – e Malick parece construir exactamente isso, o seu derradeiro devaneio, uma visão da transcendência e uma ode de proporções cósmicas ao sentirmo-nos vivos, ao amor (esse misterioso sentimento), à família e ao alcance do sagrado por via da comunhão com a Natureza. O terreno serve de ponte para o que realmente interessa: despertar-nos para uma mudança interior e fazer-nos parecer, ao mesmo tempo e de maneira visceral, pequenos e grandes. Os protagonistas são fantasmas que emergem de nós – à luz do filme, não existem referências quando se quer sentir a Vida em estado de graça. The Tree of Life, um dos mais misteriosos filmes do século, é, para além de um hino à humanidade, uma essencial obra sobre o Fim, percorrendo uma busca incansável pela compreensão da morte ou pela aceitação do seu mistério. [texto]
A elaboração do top seguiu os seguintes critérios: 1) filmes que tiveram estreia comercial em sala em Portugal e em 2011 (excluindo, por isso, projecções em festivais de cinema exclusivamente) , 2) apenas longas-metragens.
terça-feira, dezembro 06, 2011
Para os Cahiers temos Moretti
Já se tornou num hábito. Desde 1951 (com alguns anos em branco), no final do ano, a revista de cinema francesa Cahiers du Cinéma lista e divulga aqueles que considera serem os dez melhores filmes do ano. Os de 2011 já estão escolhidos e elegem “Habemos Papam – Temos Papa”, a mais recente longa-metragem de Nanni Moretti que está, actualmente, nas nossas salas de cinema, como o melhor dos melhores. A surpresa (que, em boa verdade, o deixou de ser com a passagem dos anos) é que, em segundo posição e em ex-aequo com a Palma de Ouro A Árvore da Vida, de Terrence Malick, encontramos O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira.
As curiosidades? Primeiro: nos três anos passados os Cahiers fizeram menção a filmes portugueses (em 2010, a Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues, em 2009, a Singularidades de uma Rapariga Loira, de Manoel de Oliveira e, em 2008, a Juventude em Marcha, de Pedro Costa). Segundo: o cineasta português veterano já foi mencionado nas listas da mítica publicação francesa 10 vezes (em 1981, com Francisca, que esteve na primeira posição; em 1989, com Os Canibais; em 1990, com Non ou a Vã Glória de Mandar; em 1993, com Vale Abraão; em 1998, com Inquietude; em 1999, com A Carta; em 2001, com Vou Para Casa; em 2002, com O Princípio da Incerteza; em 2009 e em 2011).
A lista deste ano faz menção ainda a filmes como Hors Satan, de Bruno Dumont, Melancolia, de Lars Von Trier, e a Super 8, de J. J. Abrams:
1. Habemus Papam - Temos Papa, de Nanni Moretti
2. O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira
em ex-aequo com A Árvore da Vida, de Terrence Malick
4. Hors Satan, de Bruno Dumont
em ex-aequo com Essential Killing - Matar para Viver, de Jerzy Skolimowski
6. Melancolia, de Lars Von Trier
em ex-aequo com Un été brûlant, de Philippe Garrel
8. Super 8, de J.J. Abrams
em ex-aequo com L'Apollonide, de Bertrand Bonello
e com O Atalho, de Kelly Reichardt
1. Habemus Papam - Temos Papa, de Nanni Moretti
2. O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira
em ex-aequo com A Árvore da Vida, de Terrence Malick
4. Hors Satan, de Bruno Dumont
em ex-aequo com Essential Killing - Matar para Viver, de Jerzy Skolimowski
6. Melancolia, de Lars Von Trier
em ex-aequo com Un été brûlant, de Philippe Garrel
8. Super 8, de J.J. Abrams
em ex-aequo com L'Apollonide, de Bertrand Bonello
e com O Atalho, de Kelly Reichardt
quarta-feira, agosto 31, 2011
Mais Malick nos próximos anos
Segundo o portal online Twitch, o actor norte-americano Christian Bale foi escolhido para interpretar um papel no novo filme do cineasta Terrence Malick, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes pela longa-metragem “A Árvore da Vida”, que ainda se encontra em exibição.
Após ter representado no quarto filme do realizador veterano (“O Novo Mundo”, sobre a história da princesa índia Pocahontas), Christian Bale regressará num novo projecto que, segundo a mesma fonte, será filmado em princípios de 2012.
O filme contará um casal (um homem e uma mulher) como protagonista. Segundo o Twitch apurou, Terrence Malick encontra-se a decidir que actriz escolherá para o papel principal, encontrando-se dividido entre Rooney Mara (“A Rede Social”), Haley Bennet (“Kaboom – Alucinação”), Clemence Poesy (“Harry Potter”) e Mia Wasikowska (“Alice no País das Maravilhas”).
O próximo filme do consagrado realizador (que entre 1973 e 2011 dirigiu apenas cinco longas-metragens) encontra-se já em fase de pós-produção, a ser em princípio lançado no próximo ano. Encontra-se ainda sem título e conta com a participação das estrelas Ben Affleck (que substitui o papel que inicialmente se dirigia a Christian Bale), Jessica Chastain, Rachel McAdams e Rachel Weisz.
Terrence Malick encontra-se ainda a trabalhar num documentário científico chamado “Voyage of Time” (“Viagem do Tempo”) dirigido para os cinemas de tipo IMAX (que até o final de 2012 serão três instalados em Portugal).
Apesar de ter sido inicialmente considerado como uma peça complementar à longa-metragem “A Árvore da Vida”, tornou-se progressivamente num filme independente.
Segundo declarações do produtor Bill Pohlad ao site Movie Web, “é importante não canibalizar ‘A Árvore da Vida’. Mas queremos fazê-lo.”
Recentemente, “A Árvore da Vida” foi considerado como o melhor filme do ano segundo a Federação Internacional de Cinema (constituída por mais de 200 críticos em redor do mundo), pelo que o prémio será entregue no dia 16 de Setembro, durante a gala de inauguração da 59.ª edição do Festival Internacional de Cinema de San Sebastián (Espanha).
[notícia originalmente publicada aqui]
Marcado em:
Cinema,
Dinheiro Vivo,
Flávio Gonçalves,
Terrence Malick
domingo, agosto 07, 2011
O cinema foi a sua causa
Autor singular do clássico americano, Nicholas Ray que, se fosse vivo, comemoraria [hoje] o seu 100º aniversário, é hoje uma lenda dentro e fora de Hollywood. Este artigo foi publicado originalmente ontem no dia 6 de Agosto de 2011, no Diário de Notícias.
"No fim de cada visão de Johnny Guitar", escreveu no livro Os Filmes da Minha Vida o divulgador de cinema João Bénard da Costa, “só me apetece dizer aos projeccionistas: Keep the film spinning” (que é como quem diz: “deixa o filme continuar”). O poder do cinema de Nicholas Ray era este: o de deslumbrar e apaixonar o público pelo seu trabalho, que sem dúvida foi único no panorama do cinema clássico norte-americano.
Nascido como Raymond Nicholas Kienzle na pequena cidade de Galesville (estado de Wisconsin), a sua forma de olhar e gravar o mundo deve-se, em larga medida, aos estudos realizados na universidade, onde estudou ao lado de um dos principais rostos da arquitectura orgânica: Francis Lloyd Wright. E, de facto, o sentido de espaço dramático é evidente em muitos dos filmes de Nicholas Ray. Após ter desenvolvido, nos film noir, as relações espaciais, é particularmente em Fúria de Viver que exibe uma nova estética sobre as linhas horizontais, utilizando pela primeira vez o formato CinemaScope (sistema que permitia uma filmagem e projecção com formato alargado). Além disso, o realizador geriu uma tensão dramática peculiar, dando ao espectador uma sensação de claustrofobia quando a acção decorria em interiores.
Um pouco mais tarde, Ray trabalhou em rádio e, em Nova Iorque, foi encenador e lançou, em 1946, Beggar’s Holiday, o seu único musical na Broadway. Apenas um ano depois o produtor e actor John Houseman convida-o a dirigir o seu primeiro filme, uma adaptação do livro Thieves Like Us. Lançado em 1948, Os Filhos da Noite marcaria a primeira fase do seu trabalho no cinema, no estúdio da RKO, que perdura até 1953. Filme sedutoramente original e noir sobre um casal em fuga, este foi, provavelmente, a única produção que criou como realmente desejava, apresentando o gosto do cineasta em filmar personagens outsiders (a sua própria vida pessoal foi conturbada, tendo-se divorciado quatro vezes). Os heróis deste e dos seus filmes seguintes caracterizar-se-iam, assim, por serem solitários (Vienna em Johnny Guitar), se encontrarem à margem da sociedade (Jesus em O Rei dos Reis), e por contestarem a sociedade normativa em que vivem para, mais tarde, se tentar reintegrar, o que explica a sua personalidade tão vulnerável quanto violenta (Jim em Fúria de Viver).
Após ter realizado vários film-noir, de O Crime Não Recompensa (1949) a Cega Paixão (1952), e de ter assinado os filmes de acção Inferno nas Alturas (1951, o seu primeiro a cores) e Idílio Selvagem (1952), inicia uma segunda, mais independente e frutífera fase da sua carreira com o emblemático Johnny Guitar (1954). Aqui, Nicholas Ray subverte a lógica tradicional do western, tanto pela sua estilização como por ter alterado o paradigma do género. Invulgar e político, Johnny Guitar, que nos mostra a rivalidade de duas mulheres, tornou-se um clássico assumidamente feminista. Como João Bénard da Costa explica no livro Os Filmes da Minha Vida, “foi a primeira vez num western que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; é um filme cheio de luz e de calor […], em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitectónica” e utilizada “em toda a sua potencialidade”. Curiosamente, a crítica de então apontou no filme um aparente “mau gosto.”
Como se verá no ano seguinte, em 1955, Fúria de Viver, interpretado por James Dean (que viria a morrer pouco depois) e Sal Mineo, também exacerba o uso metafórico e expressionista da cor por parte de Nicholas Ray. Pensado originalmente em preto e branco, a mudança para a cor fez que as personagens pudessem ser caracterizadas com aquilo que vestiam. A personagem de Sal Mineo calçava uma meia preta e uma vermelha (o que transmitia a sua confusão) e a de James Dean ficou conhecida pelo seu casaco escarlate. Fúria de Viver, que estreou um mês depois da morte do seu protagonista, tornou-se rapidamente num fenómeno cultural que modificaria invariavelmente o conceito de adolescente americano, apaixonando particularmente o público juvenil um pouco por todo o mundo (na antologia Poemas com Cinema, o crítico e poeta Pedro Mexia escreveria: Duas infâncias passaram / por mim: uma, no planetário, / com o espanto dos astros. / Outra, com Sal Mineo, / que no seu mundo ansioso / vislumbrou a eternidade.)
Após uma terceira fase de filmes com tom épico (entre 1961 e 63), entre os quais se destacam O Rei dos Reis ou 55 Dias em Pequim, Ray acabaria por abandonar Hollywood, investindo em projectos independentes e experimentais na Europa e, depois, em Nova Iorque.
O seu último filme foi um documentário que co-realizou com Wim Wenders, Nick’s Movie – Um Acto de Amor. Durante a rodagem, viria a morrer, vítima de um cancro, no dia 16 de Junho de 1976. “Veio a ser um filme sobre a realização de filmes, a meio caminho entre todos os géneros”, afirmou Wenders, “e, em virtude do rápido desaparecimento das forças de Nick, um filme sobre ‘um homem que se quer reencontrar antes de morrer, reencontrar o respeito por si próprio’ como Nick diz no filme”.
No seu centenário, o público contemporâneo parece não ter perdido Nicholas Ray, muito menos o respeito pelo seu legado (o Festival de Veneza comemorará o aniversário e exibirá em exclusivo a versão restaurada de We Can’t Go Home Again). Afinal, foi o próprio Jean-Luc Godard que disse que “o cinema é Nicholas Ray” e, “se não tivesse existido” ele “tê-lo-ia inventado”.
Os Filhos da Noite (1949)
They Live by Night (no original) é a primeira longa-metragem do cineasta Nicholas Ray, e que se apresenta como uma mistura de film-noir com romance improvável. Acompanhando Bowie (Farley Granger), recluso envolvido numa série de assaltos, e Keechie (Cathy O’Donnel), Nicholas Ray filma, com atenção, as ilusões que movem o jovem casal em fuga, apesar de dar ao espectador a certeza de que o destino de ambos está condenado (à semelhança de Só Vivemos Uma Vez, de Fritz Lang, ou de Noivos Sangrentos, de Terrence Malick).
Johnny Guitar (1954)
Menosprezado pela crítica da altura, Nicholas Ray filma a chegada de Johnny Logan (Michael Curtiz) a uma casa de jogo detida por Vienna (Joan Crawford), uma mulher de forte temperamento e que se opõe às hostilidades da povoação e, sobretudo, à inveja de Emma. Barroco, sofisticado e trágico, impôs-se rapidamente como um clássico absoluto. Em Portugal, é também conhecido por ser o filme da vida do divulgador João Bénard da Costa, que afirmou ter o “mais belo diálogo da história do cinema”.
Fúria de Viver (1955)
No ano seguinte a Johnny Guitar, Nicholas Ray realizaria outra obra-prima: Rebel without a Cause, que eterniza a última participação de James Dean. Preenchido com um sentido de mise en scène absolutamente inovador (devido ao desejo de exploração da “novidade” do CinemaScope), o cineasta enquadra com originalidade a tensão familiar e do interior da sua personagem. É reconhecido como o paradigma das produções cinematográficas nos EUA para adolescentes (que, hoje em dia, proliferam com qualidade drasticamente menor).
O Rei dos Reis (1961)
Filme visual e narrativamente dotado de uma espectacularidade própria das produções épicas, King of Kings acompanha a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo (interpretado por Jeffrey Hunter). Narrado pelo realizador Orson Welles, este foi a primeira obra com grande orçamento a exibir uma representação da cara de Jesus (outros filmes, como Ben-Hur, preferiam filmar as mãos). Com grande fidelidade histórica (utilizando grandes meios de produção), Nicholas Ray termina o filme com uma imagem de grande impacto simbólico e dramático.
55 Dias em Pequim (1963)
Filme épico de Hollywood sobre a Revolta dos Boxers anti-ocidental ocorrido na China no princípio do século XX protagonizado por Charlon Heston (que representa um militar norte-americano), Nicholas Ray vê-se impelido a dirigir aqui uma típica super-produção (assinada por Samuel Bronston) com milhares de figurantes, tendo abandonado o estúdio por se ter sentido mal. O filme foi concluído por outros dois co-realizadores e Ray nunca mais foi convidado a realizar algo daquela envergadura em Hollywood.
quarta-feira, junho 29, 2011
Que luz é esta que abre e fecha A Árvore da Vida?
Encontrando paralelo com o enormíssimo destaque que a revista Cahiers du Cinema fez para este mês de Junho sobre o realizador (cuja obra recebeu classificações, por parte dos críticos que integram a sua redacção, que viajam da bola preta – “inutile de se déranger” – para as quatro estrelas – “chef d’oeuvre”), a revista semanal norte-americana The New Yorker publicou, na edição de 27 de Junho, um pequeno texto sobre a imagem com que a Palma de Ouro de Terrence Malick, que está a ser projectado em sala entre nós, abre e encerra. Segundo a publicação, os críticos variaram na sua interpretação dessa imagem, uma chama ondulante e cintilante encarnada e amarela, chamando-a “uma bolha de cor de gema” (Robert Koehler, Variety), “um grande o-que-é-isto” (Amy Taubin, ArtForum) e “um vislumbre de uma luz insondável” (Anthony Lane, The New Torker). Já A. O. Scott, do The New York Times, considera que “apenas pode representar o Criador”.
O conteúdo deste plano, atribuído erradamente ao (silencioso) Malick, é da responsabilidade do artista Thomas Wilfred (nascido na Dinamarca em 1889 e falecido em 1968 em Nova Iorque). Na sua “Opus 161” (1965-66; em cima), Wilfred cria mais uma das suas composições luminosas, obras de arte abstractas e etéreas gravadas a partir de uma série de lâmpadas e lentes, reflexões de espelhos e pedaços de metal e vidro pintados.
A produção de “A Árvore da Vida” contactou o coleccionador Eugene Epstein, que conheceu Wilfred nos tempos de estudante no MoMA, e que recorda o objectivo da equipa em “captar algo acerca da criação”. Permitindo a utilização da obra do artista, Epstein conheceu o realizador que estava acompanhado da sua mulher, considerando-o “um homem inteligente, muito cordial e nada pretensioso”.
Que levou, então, Terrence Malick a citar a obra de Thomas Wilfred, que pensava representar a “energia rítmica do universo”, para abrir e finalizar o seu filme? A bem dizer, esta imagem derradeira e desafiante provavelmente resume a beleza e, acima de tudo o resto, o mistério em que invariavelmente o filme se encerra e resume, confrontando o espectador com a sua angústia e necessidade de se transcender absolutas.
Marcado em:
Cinema,
Flávio Gonçalves,
Terrence Malick
terça-feira, maio 31, 2011
Até ao fim dos tempos
Sendo final do mês, é tempo para encerrar o destaque que, ao longo das últimas semanas, tem vindo preencher a agenda do blogue. Terrence Malick foi, através de diferentes pontos de vista e autores, analisado pela sua obra (quando quisermos recordar as publicações sobre o autor que rechearam o mês estaremos sempre à distância de um clique), antecipando o recém-estreado A Árvore da Vida, a sua quinta longa-metragem consagrada com a Palma de Ouro na 64ª edição do Festival de Cannes. Finalizada a sondagem sobre o melhor filme do cineasta, a preferência da maioria dos leitores vai para A Barreira Invisível (1998), que recolheu 28 votos, sendo que o segundo lugar ficou reservado a Noivos Sangrentos (1973) e a Dias do Paraíso (1978), que foram ambos seleccionados por 15 pessoas. Por último, O Novo Mundo (2005) foi votado por 11 pessoas e o recente A Árvore da Vida por 5. Obrigado a todos os que participaram.
Parece, após vermos The Tree of Life, devidamente sem ideias pré-concebidas, impor-se uma questão: como pode o espectador receber um meteorito metacinematográfico como este que se propõe a questionar toda a sua existência? Que efeito terá a obra-prima de Terrence Malick em si? Mais que uma outra aparição nesta forma de expressão, este é um raro filme, sem distinções de público, que ambiciona redefinir-se como objecto de cinema e, para além disso, redefinir quem o percepciona. Então voltemos: como receber este filme que, a partir do momento extraordinário em que o vemos – ou, se nos quisermos aproximar mais da experiência, sentimos –, entramos dentro de nós, recordando afectos, sensações e uma vaga e passada aproximação com o divino, e imaginando respostas para as questões que nos assolam (e permanecem, porventura, silenciadas pelo esquecimento ou o medo)? The Tree of Life, se nos propusermos a mudar os seus contextos e figuras, podia ser um sonho nosso – e Malick parece construir exactamente isso, o seu derradeiro devaneio, uma visão da transcendência e uma ode de proporções cósmicas ao sentirmo-nos vivos, ao amor (esse misterioso sentimento), à família e ao alcance do sagrado por via da comunhão com a Natureza. O terreno serve de ponte para o que realmente interessa: despertar-nos para uma mudança interior e fazer-nos parecer, ao mesmo tempo e de maneira visceral, pequenos e grandes. Os protagonistas são fantasmas que emergem de nós – à luz do filme, não existem referências quando se quer sentir a Vida em estado de graça. The Tree of Life, um dos mais misteriosos filmes do século, é, para além de um hino à humanidade, uma essencial obra sobre o Fim, percorrendo uma busca incansável pela compreensão da morte ou pela aceitação do seu mistério.
Parece, após vermos The Tree of Life, devidamente sem ideias pré-concebidas, impor-se uma questão: como pode o espectador receber um meteorito metacinematográfico como este que se propõe a questionar toda a sua existência? Que efeito terá a obra-prima de Terrence Malick em si? Mais que uma outra aparição nesta forma de expressão, este é um raro filme, sem distinções de público, que ambiciona redefinir-se como objecto de cinema e, para além disso, redefinir quem o percepciona. Então voltemos: como receber este filme que, a partir do momento extraordinário em que o vemos – ou, se nos quisermos aproximar mais da experiência, sentimos –, entramos dentro de nós, recordando afectos, sensações e uma vaga e passada aproximação com o divino, e imaginando respostas para as questões que nos assolam (e permanecem, porventura, silenciadas pelo esquecimento ou o medo)? The Tree of Life, se nos propusermos a mudar os seus contextos e figuras, podia ser um sonho nosso – e Malick parece construir exactamente isso, o seu derradeiro devaneio, uma visão da transcendência e uma ode de proporções cósmicas ao sentirmo-nos vivos, ao amor (esse misterioso sentimento), à família e ao alcance do sagrado por via da comunhão com a Natureza. O terreno serve de ponte para o que realmente interessa: despertar-nos para uma mudança interior e fazer-nos parecer, ao mesmo tempo e de maneira visceral, pequenos e grandes. Os protagonistas são fantasmas que emergem de nós – à luz do filme, não existem referências quando se quer sentir a Vida em estado de graça. The Tree of Life, um dos mais misteriosos filmes do século, é, para além de um hino à humanidade, uma essencial obra sobre o Fim, percorrendo uma busca incansável pela compreensão da morte ou pela aceitação do seu mistério.
Marcado em:
Cinema - Críticas,
Flávio Gonçalves,
Iniciativa,
Terrence Malick
domingo, maio 29, 2011
No princípio era a Imagem
Vencedor da Palma de Ouro, Terrence Malick é quase tão misterioso quanto o seu último filme, A Árvore da Vida, que acaba de estrear nas salas de cinema portuguesas
Ainda o Festival de Cannes não tinha dado a conhecer o cartaz da sua 64ª edição e já o público cinéfilo se rodeava da esperança de que A Árvore da Vida, a quinta longa-metragem do realizador norte-americano Terrence Malick, anunciada há quatro anos atrás, pudesse marcar presença naquela que é considerada a maior festa do cinema do mundo. Embora os detalhes do filme fossem, progressiva e cautelosamente, divulgados ano após ano, entre adiamentos consecutivos, o secretismo em torno desta obra manteve-se até a primeira projecção, originalmente prevista para se enquadrar na selecção de 2010 do mesmo festival. Apesar da disputa entre aplausos e apupos da crítica perante o mais ambicioso dos projectos do realizador quando finalmente ali foi exibido já este mês, o júri, presidido pelo actor Robert DeNiro, confirmou que este era realmente o ano de Malick, contemplando A Árvore da Vida com a Palma de Ouro, possivelmente o mais prestigiante dos prémios de cinema.
Consagrar o filme com o prémio máximo em Cannes ajudou a confirmar, de certa forma, a dimensão mítica que Terrence Malick inspira no seu público. Se quisermos incorrer em comparações, o norte-americano, que provém e se subleva numa indústria cinematográfica baseada ainda no chamado “star stystem”, afigura-se como o perfeito oposto de Jafar Pahani, realizador que, estando preso no Irão, e portanto impedido pelas autoridades de sair do seu país, apresentou em Cannes um filme (fora de competição) sobre si mesmo. Podemos assim, em oposição, considerar Malick como um realizador igualmente recluso, porém dentro do seu próprio universo, negando continuadamente a exposição mediática da sua imagem pública. Recusando ceder veementemente a qualquer tipo de entrevistas, aparições públicas, fotografias ou trabalhos biográficos, foi sem surpresa que, quando anunciada a Palma de Ouro, não tenhamos visto sequer a sombra de Malick, como já acontecera, para grande frustração dos jornalistas, na conferência de imprensa que se seguiu ao visionamento do filme em Cannes. “Ele até vai à casa-de-banho”, certificou, jocoso, o actor Brad Pitt, quando confrontado pelo interesse da comunicação social presente no festival sobre a personalidade do realizador.
A existência de um eremita como Terrence Malick é um caso singular, mais raro ainda nestes tempos que correm de profunda curiosidade e projecção de uma imagem pública que justifique o trabalho apresentado. A decepção de parte do público e da crítica, perante um filme que Malick não pretende discutir, mas “que o público o receba como um poema e que cada um possa interpretá-lo como quiser” (segundo as palavras do produtor Bill Pohlad), advém da falsa crença, cada vez mais robustecida pelos media, de que tem que existir uma justificação do autor sobre aquilo que cria. Porém, se face às suas intenções dermos tempo para reflectir sobre a sua atitude “tímida”, concluímos que a interacção com o espectador está ainda mais presente que um filme cujo conteúdo seja triturado pelo seu realizador. E, de qualquer das maneiras, um cineasta não saberá falar de outra coisa do que de si próprio e das questões interiores e temas que o assolam e seduzem.
Malick é um pródigo perfeccionista tendo, com 67 anos de idade e mais de 35 anos de carreira no cinema, realizado apenas cinco filmes. Nascido a 30 de Novembro de 1943, viu no Texas um mundo de amadurecimento e descoberta (e que filma na sua obra recente), região onde cresceu concluindo estudos numa escola eclesiástica privada. Estudou, com excelentes resultados, Filosofia na Universidade de Harvard, traduziu Heidegger e foi professor universitário de Filosofia enquanto escrevia para jornais como freelancer. Estudando cinema em Los Angeles, realizou em 1973 Noivos Sangrentos, um primeiro filme, após ter escrito e coordenado vários argumentos. Na verdade tinha já assinado um primeiro filme antes deste que hoje se aponta como sendo a sua estreia. Ainda como estudante realiza, escreve, compõe e representa Lanton Mills, um western de 17 minutos que hoje apenas pode ser consultado, pessoalmente, nas instalações da escola. Noivos Sangrentos recebeu uma atenção incomum da crítica, que esperou ansiosamente, em 1978, por Dias do Paraíso, com Richard Gere que consolidou Malick como um autor raro no panorama do cinema dos EUA de então. Para chegar à Árvore da Vida, Malick escapou da indústria para desenvolver “Q”, um projecto que apresentasse as origens do universo. A ambição não ficou adormecida: passados vinte anos, o mundo voltou a ver Malick em A Barreira Invisível, filme anti-guerra com inúmeras estrelas de Hollywood nomeado para sete Óscares da Academia e com sensibilidade para a relação do homem com a natureza. O tom contemplativo é explorado em 2005, quando lança O Novo Mundo, inspirado na vida da princesa índia Pocahontas. Nos intervalos entre os filmes que realizou dedicou muito do seu tempo a outros espaços no mundo do cinema, ora escrevendo argumentos, ora trabalhando como produtor.
É com os filmes e a sua sensibilidade que Terrence Malick perigosamente se expõe a um mundo faminto pela invasão de privacidade. Mas, como Brad Pitt declarou, “este filme é universal” e “espera comover todas as culturas”. O enigma da vida do realizador parecerá infinitamente pequeno se nos conseguirmos confrontar, na Palma de Ouro de 2011, com o derradeiro mistério da nossa própria existência.
Estreia de Terrence Malick no cinema, esta é a história verídica de Charles Starkweather (Kit, interpretado por Martin Sheen) e Caril Fugate (Holly, interpretada por Sissy Spacek), um casal improvável que é perseguido por ter assassinado dez pessoas. O tom ingénuo da narração, assistido pelos temas musicais de Carl Orff ou Erik Satie, desenha os protagonistas de forma lírica e trágica, situando-os em planos preferencialmente gerais de um fantasmagórico midwest. Não obstante a brutalidade dos actos, Malick contempla, calmo e distanciado, a decadência do destino de ambos de forma calma, salientando a inocência presente na paixão que os une e que demonstra ser o motor de condução do filme. Um dos momentos maiores do cinema norte-americano dos anos 70.
Vencedor do prémio de melhor realizador no Festival de Cannes e do Óscar de melhor fotografia, o cineasta consegue, com este segundo filme, um extraordinário feito estético. Debruçando-se sobre um triângulo amoroso e os sentimentos nutridos pelas personagens representadas por Richard Gere e Brooke Adams, Malick evidencia o gosto pela economia de diálogos e a valorização da acção do homem entre os campos onde trabalha. A obra, que também demonstra as primeiras ideias políticas de Malick, relacionadas com a condição precária do proletário, é essencialmente bela e comovente. Para além da fotografia (chegou a despedir-se dois directores de fotografia para se conseguir o efeito idealizado), Ennio Morricone mostra-se como a última peça chave para a experiência sensorial que Dias do Paraíso proporciona.
Depois de um longo hiato, Terrence Malick regressa vinte anos depois do último filme para adaptar o romance de James Jones e realizar um dos melhores filmes de guerra alguma vez feitos, vencedor do Urso de Ouro em Berlim e sete nomeações para os Óscares da Academia. Comandando um elenco repleto de estrelas (Sean Penn, Adrien Brody, Jared Leto, John Travolta, George Clooney, entre outros), o cineasta, pela primeira vez torna mais evidente o seu interesse e paixão pelo valor da vida, o peso da morte e a relação espiritual com a natureza. Simultaneamente horrível, realista e poético, esta é a jornada de um grupo de soldados que, em pleno Pacífico, na II Guerra Mundial, enfrenta o inferno que é construído pelas suas próprias mãos.
Baseado na história de vida da princesa índia Pocahontas, Terrence Malick regressa em 2005 ao cinema com Colin Farrel, Christian Bale e Q'orianka Kilcher, santificando, como nunca antes o fizera, a natureza, um dos principais motivos do seu cinema (simbolizado nos planos que filma da água, das árvores e do sol). Contemplativo e panteísta, este é também um dos mais silenciosos dos filmes do realizador, que coloca o amor pelo outro como o sentimento mais elevado do ser humano. Apesar de mal recebido pela crítica, este filme é dotado de uma beleza repleta de harmonia e de uma sensação, incomum no universo da indústria cinematográfica, de paz. Sentir O Novo Mundo é, em boa verdade, redescobrir, ao som de Wagner, o mundo em que vivemos e questionar a nossa concentração pelo material e o artifício.
A quinta longa-metragem de Terrence Malick é uma viagem interior e onírica carregada de angústia e nostalgia de Jack (Sean Penn) à sua infância perdida, passada nos anos 50 no Texas com o pai (Brad Pitt), a mãe (Jessica Chastain) e os dois irmãos mais novos. Construído como se de uma sinfonia tratasse, o filme explora, muito para além dos conflitos que o protagonista tem com o pai e o irmão, as questões fundamentais do ser humano. Para isso, Malick constrói uma ode à vida, elevando-a como um milagre e valor absolutos e demonstrando uma visão da origem do mundo sem precedentes. Longe de ser uma simples experiência de cinema, A Árvore da Vida propõe-se a redescobrir o cinema como um meio de contacto com o sagrado. São imagens conjugadas que, ao mesmo tempo, são capazes de questionar por que existimos e de responder transcendendo o nível da razão. Dotada de uma técnica e de uma banda musical sublimes, esta é uma obra-prima singular na História do cinema, cuja ambição se posiciona, certamente, ao nível de um “2001: Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick.
Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 28 de Maio de 2011.
Marcado em:
Cinema,
Diário de Notícias,
Flávio Gonçalves,
Terrence Malick
sábado, maio 28, 2011
A dúvida e a incerteza em Malick: uma observação
Com o mês de Terrence Malick n'O Sétimo Continente a chegar ao fim publico hoje uma reflexão pessoal sobre a sua obra, escrita por Rúben Gonçalves. Um muito obrigado por esta colaboração.
_____
Power dwells apart in its tranquility,
Remote, serene and inaccessible,
And this the naked countenance of earth
On which I gaze, even these primeval mountains,
Teach the adverting mind.
Percy Bysshe Shelley
Conheci Malick numa altura em que não fazia ideia do que era o cinema. Já se passaram anos desde que vi pela primeira vez “The New World”, e, embora me seja difícil descrever a impressão que o filme me suscitou logo depois dos créditos finais, tenho a certeza de a experimentar, renovada, sempre que o revejo. Não me preocupo muito em tentar precisar no que consiste essa impressão, mas o hábito – e a visualização de obras de semelhante calibre – mostrou-me aos poucos que é ela o meu único critério para avaliar um filme, ou o que dele em mim ecoa: esses momentos imediatamente a seguir à última imagem e ao último som, em que me sinto como que renascido, ridiculamente omnipotente e desperto – a grandeza deixa-me sempre assim. E, com a suspeita de me ter sido revelada uma qualquer verdade que, embora oculta até aí, de alguma forma sempre existiu em mim – como todas as verdades merecedoras do nosso esforço de as descobrirmos –, desligo a televisão (só o “Tree of Life” tive oportunidade de ver em grande ecrã) e despeço-me da vida, pois que é ela senão esses breves contactos com a beleza?
Ora, não se pode falar deste realizador sem se mencionar aquilo que parece ser o tema de onde partem todos os seus filmes, e sobre o qual cada um oferece novas perspectivas: a relação que o homem – o soldado solitário, o forasteiro a descobrir o que aparenta ser o paraíso perdido, o amante em fuga – estabelece com a natureza. As suas personagens são constantemente atormentadas por um desejo de evasão, uma necessidade de se refugiarem daquilo que provoca a manifestação das suas facetas malignas, a busca pela redenção através da familiarização com a natureza, com as origens, que coincide, por vezes, com a promessa de um novo começo. A catarse – ou a possibilidade dela – reside em Malick na paisagem, no confronto com os elementos que universalmente constituem todos os seres, as leis que tudo regem, confronto esse que resulta, não raramente, na negação das ilusões que as personagens vinham acalentando e consequente constatação de que a verdade é afinal aquilo de que eles procuravam fugir. Tal acontece em “Days Of Heaven”, em que o retiro da cidade, da civilização – embora não por completo, como vemos, por exemplo, em “Badlands” – não mitiga os impulsos homicidas do protagonista vivido por Richard Gere, envolvendo-o, em vez disso, numa intriga de mentiras que culmina em morte, aquilo que precisamente desencadeara a sua partida para o campo, ou em “The New World”, em que a condição como que virginal das terras onde chegam os marinheiros parece encerrar augúrios de felicidade e abundância, que a acção do homem, por si só, se apressa contudo em contrariar, a natureza surgindo assim como um estado primitivo – a mãe de todas as coisas – que a presença do homem invariavelmente perturba, ou, antes, que reflecte aquilo de que ela mesma se compõe, pois, admitindo, como em “The Thin Red Line”, a guerra como parte integrante dos fenómenos ocorridos na natureza, a aceitando-a como indispensável para manter a ordem estabelecida das coisas, onde a luta pela sobrevivência ocupa um dos primeiros lugares – senão mesmo o primeiro, juntamente com a conservação da espécie – e a morte surge como condição necessária para a vida, para a regeneração, rejeita-se a concepção de Rousseau segundo a qual a bondade, inerente à condição humana, é corrompida pela vida em sociedade. O homem aparece, então, como manifestação última, como voz, da natureza, e a sua busca pela recuperação dos laços que a ela o unem revela-lhe uma certeza apenas – a existência inegável do caos –, a aceitação dela revelando-se a maior aprendizagem que as personagens podem colher dessa busca.
A propósito de Malick utilizam-se muitas vezes os adjectivos “lírico” ou “poético”, e se tal se deve, sem dúvida, à forma particular com que ele filma a paisagem, tal descrição decorrerá também do recurso à metáfora como figura de estilo por excelência na construção do sentido. Lembremo-nos, por exemplo, do momento em que um dinossauro ataca outro, já caído, mas que não chega a matar, em “The Tree of Life”, e como esse gesto materializa a relação de poder e subordinação que o pai estabelece com os seus três filhos; ou os planos dos animais nas searas, em “Days Of Heaven”, como lembrança de que a recolha do trigo para garantir o alimento do homem representa igualmente a destruição de um habitat.
A metáfora está presente, de resto, nos muitos voice-overs que acompanham as suas obras, e que, nunca parecendo pleonásticos, acrescentam outras camadas àquilo que vemos, conferindo uma outra ambiência ao filme através do carácter quase sinfónico que reveste estes diálogos que as personagens, deslocadas do universo material, vão mantendo entre si, nestas momentâneas manifestações de consciência num plano dir-se-ia abstracto, o do pensamento.
E, claro, o amor. Poder-se-ia dizer que todas as histórias são histórias de amor, na medida em que testemunham essa entrega e esforço de perseverança que estão sempre implicadas na sua concepção, e em Malick não é diferente. Seria legítimo, porém, afirmar que é o amor aquilo que motiva as personagens nas suas acções? Provavelmente não será assim tão linear, mas, observando de perto, não é difícil perceber qual o lugar que tal sentimento ocupa na vida dos seus protagonistas – é o amor, afinal, que impele a personagem do Brad Pitt em “The Tree of Life” a submeter os filhos a uma educação tão rígida e intransigente, pois será isso que os conduzirá, a seu ver, ao caminho do bem (ele personificando, juntamente com a figura materna vivida por Jessica Chastain, essa dualidade entre a via da natureza e a via da graça que está na base da história); é o amor, também, que permite ao soldado interpretado por Ben Chaplin em “The Thin Red Line” enfrentar os pesadelos e os horrores da guerra, vivido sob a forma de uma correspondência que, antevendo um reencontro no futuro, torna suportável um presente de distância; e que é senão o amor que possibilita à Pocahontas do “The New World” enfrentar o desconhecido, pondo em causa a protecção que lhe garante a sua tribo, e alcançar depois a maturidade emocional com a experiência da maternidade? Em “Badlands”, no meio de toda a alienação em que as personagens principais gradualmente mergulham, parece, de igual forma, ser o amor que os une a sua única certeza.
Enfim, como se posiciona Malick em relação a tudo isto? Antes de tentar impor ideologias, questiona-se. Contempla. Sabe que o julgamento é inimigo de todo o retrato do ser humano que se queira fidedigno e, por isso, observa. Não pode fazer mais do que exteriorizar as suas dúvidas e, assim, tentar dissipá-las para si; quanto a nós, é através da sua dúvidas que nos permitimos duvidar, e esse será porventura o primeiro passo do caminho para o qual a sua filmografia nos aponta, um caminho em que a dúvida é condição indispensável e a ausência de certezas absolutas uma realidade inevitável – e não é esse, em suma, o caminho da vida?
Rúben Gonçalves
Marcado em:
Autores Convidados,
Cinema,
Rúben Gonçalves,
Terrence Malick
quinta-feira, maio 26, 2011
A caminho da obra total
Nuno Galopim, jornalista, crítico de música e um dos autores do blogue sound+vision, escreve hoje sobre a música no cinema de Terrence Malick, num percurso desde Badlands até ao novo Tree of Life, que hoje estreia nas salas de cinema portuguesas. Os meus maiores agradecimentos por esta participação.Foi Richard Wagner quem explicou a sua ópera como representando um patamar que designou como gesamtkunstwerk. Por outras palavras, a obra de arte conjunta e total, à música aliando a palavra escrita, o canto, o teatro, as artes plásticas, a dança... Procurássemos no cinema manifestações de semelhante dimensão (não no campeonato do auto-elogio, mas do feito artístico de quem procura uma experiência igualmente capaz de abarcar todo um mundo de artes e sensações), seria na obra de Stanley Kubrick que, à partida, poderíamos encontrar manifestações que, sem favor, responderiam ao desafio da comparação. Talvez n’A Laranja Mecânica (de 1971), que partia das visões de Anthony Burgess rumo ao olhar de Kubrick, ganhando corpo pelo trabalho ímpar assinado por Walter (hoje Wendy) Carlos na hora de compor música original ou de manipular, pelas emergentes ferramentas electrónicas obras de Mozart, Rossini ou Grieg... Mais ainda que neste exemplo, o ser maior que é 2001: Odisseia No Espaço, de 1968, é certamente um dos filmes que mais de perto pode traduzir, no espaço do cinema, a noção de obra total que Wagner procurara na ópera. Inicialmente pensado para acolher uma partitura inédita de Alex North (que chegou a ser gravada, o compositor ignorando que, no fim, o seu trabalho acabaria fora, tal e qual tantos metros de filme caem na sala de montagem), 2001 acabou antes por respirar a música de Richard e Johann Strauss ou de Ligeti, da relação entre som, imagem e toda uma agenda de intenções para lá das fronteiras de cada uma das artes convocadas ao filme nascendo um caso maior, senão mesmo um paradigma de referencia, na história da relação entre a imagem em movimento e a música.
Não são raras as vezes em que o cinema de Terrence Malick acolhe “comparações” ou a nomeação de jogos de referência com o de Stanley Kubrick. E se há espaço onde essas afinidades de facto se manifestam ele é aquele em que vemos como a música, em ambos, se manifesta como experiência de absoluto protagonismo na construção da sua ideia de “obra total”.
Tal como em Kubrick, uma das características mais marcantes na forma de Malick convocar música ao seu cinema ganha forma no modo como soma à “banda sonora original” criada expressamente para o filme em questão, excertos de gravações de outras obras, na sua maioria exemplos (uns mais célebres, outros menos divulgados) da grande tradição erudita europeia (que, para simplificar, muitas vezes acaba simplesmente referida como “clássica”, na verdade nem toda o sendo num senso estrito...).
Um primeiro exemplo podemos encontrar desde logo em Baldlands (entre nós estreado como Noivos Sangrentos), de 1973. Com partitura original a cargo de George Tipton (nome com mais trabalho reconhecido na televisão que no cinema, trabalhando em sit-coms como All In The Family, Love Boat ou Golden Girls), e a presença ocasional de gravações de música de Eric Satie, James Taylor ou Nat King Cole, a imagem sonora mais marcante de Baldands chega ao som de Gassenhauer nach Hans Neusiedler, de Carl Orff, composição que integrava na origem um dos programas educacionais criados pelo compositor alemão que o mundo teima em não reconhecer além da marcante (mas não peça de interesse único na sua obra) Carmina Burana.
Nova incursão pelos clássicos chega em 1978 em Dias de Paraíso (Days Of Heaven) quando, em paralelo com a música inédita composta por Ennio Morricone (compositor com perfil eternamente associado à tradição do western spaghetti), Malick recorre a registos de Leo Kottke e Doug Kershaw, deixando para o genérico um execerto d’O Carnaval dos Animais de Saint Saëns. A música de Morricone teve mesmo assim distinção pela Academia, merecendo a Malick a primeira das suas nomeações na categoria de Melhor Banda Sonora Original.
Vinte anos depois, em A Barreira Invisível (Thin Red Line no título em inglês), o olhar é mais ambicioso e junta à partitura original de Hans Zimmer (que colheu glória com a música para O Gladiador, de Ridley Scott), fulcral na criação de uma dimensão humana interior que cruza o filme, elementos de outros tempos ora escutados num Animus et Anima de Arvo Pärt (o mesmo compositor que conheceria mais tarde em Gerry, de Gus Van Sant, um filme talhado à medida minimalista de peças como Spiegel im Spiegel ou Alina) ou um instante do Requiem de Fauré. A marca maior da identidade musical de A Barreira Invisível chega porém de uma ligação que sublinha a geografia que acolhe a acção, com uma série de gravações de cantos de povos de ilhas do Pacífico (da melanésia em particular), alguns deles com expressão narrativa no próprio filme. É de resto um dos mais preciosos extras de algumas das edições em DVD d’A Barreira Invisível um disco (virtual) que documenta em registos áudio os cantos que escutamos integrados no corpo do filme. Mesmo não tendo usado na montagem final alguma da música original que Hans Zimmer lhe entregou, o realizador usou-a nos décors como ponte para transportar os actores ao patamar emocional por si desejado. O trabalho de Zimmer valeu a Malick uma segunda nomeação para os Óscares na categoria de Melhor Banda Sonora Original.
Em O Novo Mundo (The New World), de 2005, a música composta por James Horner (parceiro de Ron Howard em alguns projectos como Apollo 13 ou Willow, Na Terra da Magia), está longe der ser novamente a memória de som que se guarda do filme. O disco, com a banda sonora, sabe por isso “a pouco” quando confrontado com as memórias de imagem e som de quem se sentou numa plateia a ver o filme e viveu a pujança da abertura da ópera O Ouro do Reno, de Wagner (que, descrevendo as águas de um rio na intenção original do compositor alemão servem aqui o avançar de uma pequena armada rio acima na sequência de abertura) ou as notas do Concerto para Piano Nº 23 de Mozart vincando outro protagonismo na relação entre a música e as imagens.
No fundo, tudo isto são pistas para chegar ao novo filme...
E se tal como por outros departamentos podemos ver toda a obra anterior de Malick como peças, ideias e feitos que confluem em A Árvore da Vida, a forma como o realizador integra a música não só é resultado de todo um processo de evolução que passa necessariamente pelos títulos anteriores como alcança, como o fez Kubrick em 2001, um patamar de ambição maior que, convenhamos, conduz de forma magistral aos mais felizes resultados.
Também aqui há um compositor encarregue de assinar uma partitura original que serve de corpo comum a parte significativa das imagens. O escolhido foi Alexandre Desplat, que nos últimos tempos assinou, entre outros, trabalhos de composição para O Discurso do Rei, de Tom Hooper, ou O Estranho Caso de Benjamin Button, de David Fincher. Uma vez mais, a banda sonora, em disco, foca o trabalho original do compositor ao serviço do filme. É porém de outras origens que provém os fragmentos de música que, como em filmes anteriores, vincam mais profundamente a forma muito peculiar, profunda e em perfeito diálogo de cumplicidades que Malick define entre as imagens que procura e as músicas que encontra. A Lacrimosa, de Requiem For A Friend de Preisner (o compositor das “três cores” de Kieslowski) é o fio que conduz a sequência que nos transporta aos confins do tempo, da nebulosa onde tudo começou ao processo de acreção do qual nasceram os planetas, o terceiro a contar do Sol sendo aquele onde vivemos. O Requiem de Berlioz cede o fulgor crente que reforça a intensidade do olhar sobre a transcendência que encontramos num outro instante-chave do filme. A pulsão nacionalista que vibrava na Moldávia de Smetana serve aqui episódios de vida a três, entre os filhos do casal O’Brien (que acompanhamos, em memórias vividas algures no Texas, nos anos 50). Pelo caminho um excerto da Sinfonia Nº 3 de Gorecki, outro da Sinfonia Nº 1 de Mahler ou instantes de obras de nomes como Tavener, Respighi, Holst, Kancheli, Couperin, Mussorgsky, Mozart ou Arsenije Jovanovik juntam-se na construção de um monumento maior. A obra total. E, a par com o já citado 2001 de Kubrick ou o genial Koyaanisqatsi de Godrey Reggio (com música de Philip Glass), um dos casos mais expressivos de absoluta capacidade de encontrar caminhos de perfeito entendimento entre a música, a imagem e a intenção final da obra.
Se em grande parte das ocasiões a música surge como uma dimensão que complementa as imagens, como que estabelecendo ligações pela audição a uma realidade que toma a visão com natural protagonismo, há momentos em A Árvore da Vida em que a música que escutamos vai além esse espaço de vida parceira à das imagens, irrompendo pelo espaço cénico ora quando o pai (Brad Pitt) mostra aos filhos um disco com numa gravação da Sinfonia Nº 4 de Brahms por Toscanini num álbum em vinil (na verdade a ficha técnica revela que escutamos uma gravação mais recente, por Karajan à frente da Berliner Philarmoniker) ora quando o mesmo Jack O’Brien toca, numa igreja, a Toccata e Fuga em Ré menor de Bach.
Se podemos ver A Árvore da Vida como toda uma reflexão sobre a vida e o seu sentido, a música que ilustra, alimenta e faz respirar o filme sublinha que o percurso de reencontro com o sublime (que acompanhamos, afinal, através das evocações e pensamentos da personagem interpretada por Sean Penn) pode ser uma experiência sensorial que não pede, necessariamente, uma racionalização das ideias e modelos que a narrativa veicula. A música tem, afinal, esse poder libertador. Transcendente, podemos dizer. Assim como é dotada dessa forma muito rara de encontrar a transversalidade mesmo quando nem sempre partilhamos a fé nas palavras que nos canta.
Um pequeno guia de sugestões para escutar, na íntegra, cinco das obras que Malick visita
em momentos do filme A Árvore da Vida.
em momentos do filme A Árvore da Vida.
Brahms
Sinfonia Nº 4 – Pela Orchestre Revolutionaire et Romantique, dirigida por John Eliott Gardiner.
O disco é lançado pela Soli Deo Gloria, editora do próprio maestro.
O disco é lançado pela Soli Deo Gloria, editora do próprio maestro.
Smetana
Moldávia – Gravação pela Wiener Philharmoniker, dirigida por Herbert Von Karajan, em disco
que inclui também a Sinfonia Nº 9 de Dvorák. Uma outra gravação desta composição surgia também
no trailer do filme.
que inclui também a Sinfonia Nº 9 de Dvorák. Uma outra gravação desta composição surgia também
no trailer do filme.
Gorécki
Sinfonia Nº 3 – Uma das obras de maior sucesso da música contemporânea, viu esta gravação com a voz de Dawn Upshaw, a vender maios de um milhão de unidades nos anos 90.
Berlioz
Requiem – Grand Messe des Morts – Uma entre as várias edições de gravações desta obra do compositor. Gravação histórica pela London Symphony Orchestra, dirigida por Colin Davis.
Preisner
Requiem For My Friend – Gravação de 1998 pela Erato, corresponde ao primeiro registo desta
obra de Preisner.
obra de Preisner.
Marcado em:
Autores Convidados,
Cinema,
Música,
Terrence Malick
domingo, maio 22, 2011
Cannes [12]: A vitória do cinema de Malick
Terminou a 64ª edição da maior festa do cinema do mundo, o Festival de Cannes. Após 11 dias de projecção de filmes em competição para a cobiçada Palma de Ouro, o júri, presidido por Roberto DeNiro, decidiu premiar – e muitíssimo justamente – a quinta longa-metragem do misterioso Terrence Malick: «A Árvore da Vida», a estrear na próxima quinta-feira, dia 26 de Maio, nas salas de cinema portuguesas, e amanhã, dia 23, em antestreia, na Cinemateca de Lisboa. A crítica ao filme (que, por aqui, já foi vista e é uma obra-prima e a maior do realizador), será publicada muito em breve.
O produtor do filme Bill Pohlad, disse: «I have always wanted to speak French, and tonight more than ever. Tonight I have to take the place of a giant. Terrence Malick is very shy and discreet. But I spoke to him today and I know he is very happy to receive this honour. The Tree Of Life was a long journey, but it was all worth it. I would like to thank especially the Festival de Cannes.» O palmarés completo, a seguir:
O produtor do filme Bill Pohlad, disse: «I have always wanted to speak French, and tonight more than ever. Tonight I have to take the place of a giant. Terrence Malick is very shy and discreet. But I spoke to him today and I know he is very happy to receive this honour. The Tree Of Life was a long journey, but it was all worth it. I would like to thank especially the Festival de Cannes.» O palmarés completo, a seguir:
Palma de Ouro
The Tree of Life, de Terrence Malick
Grande Prémio
Le Gamin au Vélo, de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
em ex-aequo com Once Upon a Time in Anatolia, de Nuri Bilge Ceylan
Melhor Realizador
Nicolas Winding Refn por Drive
Melhor Actor
Jean Dujardin por The Artist
Melhor Actriz
Kirsten Dunst por Melancholia
Melhor Argumento
Footnote, de Joseph Cedar
Prémio Especial do Júri
Polisse, de Maïwenn Le Besco
Palma de Ouro para Melhor Curta-Metragem
Cross, de Maryna Vroda
Caméra D'Or
Las Acacias, de Pablo Giorgelli
[em actualização]
Subscrever:
Mensagens (Atom)