sábado, maio 21, 2011

Cannes [7-10]: Os dias em que a Croisette tremeu


A grande festa do cinema teve, nos dias passados, eventos que chegaram a marcar a sua história. Referimo-nos, um pouco mais especificamente, à expulsão de Lars Von Trier após as declarações feitas em conferência de imprensa – mas já aí vamos. Recordemos, primeiro, o sétimo dia do Festival de Cannes. Assinalado pela apresentação, em competição pela Palma de Ouro, do aplaudido «L’Havre», do realizador Aki Kaurismäki. «Divertimento» acima de tudo o resto, o cineasta diz, na conferência de imprensa (aqui): «Não tenho esperança alguma em relação ao nosso planeta quando vejo os homens que habitam nele, é por isso que não dramatizo mais e que o meu filme é antes de tudo um divertimento. Aos 10 anos, certas coisas já me tinha desiludido mas, nessa época, fingia que acreditava nelas para suscitar esperança nos outros». O crítico de cinema do Ípsilon Vasco Câmara escreve: «Le Havre não é filme de respostas e é seco como um carapau se se procura discussão de "tema do dia". Mas fala-nos de outras maneiras e por todos os lados, apesar de ser quase sempre mudo, e sempre para nos dizer que o mundo é feito ao contrário daquilo que o filme mostra, com os silêncios, com as cores e com os cenários e não só com os (poucos) diálogos dos actores.»

O realizador Alain Cavalier apresentou, a competir para a Palma de Ouro, «Pater», que o enviado José Vieira Mendes diz ser «um filme muito interessante mas igualmente uma das obras mais bizarras e âmbiguas desta selecção oficial.» Por sua vez, Jodie Foster estreou-se na realização trazendo a Cannes «The Beaver» (fora de competição), com Mel Gibson como protagonista, e que, na conferência de imprensa (aqui), afirmou: «fazer filmes é a minha forma de enfrentar a minha própria crise interior. É um processo de cura para fazer avançar a minha vida». O crítico de cinema João Lopes escreveu que «para além de ser um dos momentos altos deste festival, será também, por certo, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico».
O maior acontecimento do oitavo dia no Festival de Cannes, que o situou nos destaques jornalísticos um pouco em redor do mundo por razões extra-cinematográficas, foi a conferência de imprensa do filme «Melancholia», do realizador dinamarquês Lars Von Trier (e que pode ser aqui visualizada integralmente). Controverso e lascivo como gosta de estar perante os jornalistas (Von Trier tinha já afirmado que se considerava «o melhor realizador do mundo» e, neste dia, trazia nos dedos da mão direita, a palavra «fuck» escrita), as declarações que fez face às questões abalaram a direcção do festival. A tensão instalou-se, primeiro, quando referiu, em tom machista, a posição das actrizes que protagonizam o filme (Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg): «É assim que as mulheres são, e a Charlotte está por trás disto. Elas agora quem um filme hardcore e estou a fazer o meu melhor. Eu disse para termos muito diálogo e elas disseram que não queria saber das conversas e que só queriam muito sexo. É o que estou a escrever agora». Após ter considerado em tom jocoso que considerava o filme uma «porcaria», o dinamarquês, questionado sobre as suas raízes germânicas, respondeu: «eu achava que era judeu e era muito feliz por isso. Mas depois descobri que na verdade era nazi», acrescentando: «Como sabem, a minha família era alemã... O que também me deu algum prazer», e: «O que posso dizer? Eu compreendo o Hitler. É claro que ele fez algumas coisas erradas mas eu consigo imaginá-lo no fim sentado no seu bunker... Eu simpatizo com ele, um bocadinho». Mordaz mas nervoso, Von Trier tentou ainda emendar a sua tirada irónica justificando-se perante uma sala cheia de jornalistas silenciosos, mas em vão, ao referir Israel como uma «pedra no sapato». Um pouco por todo o mundo, as reacções espalharam-se (e também divergiram), chegando ao ponto de a Associação Americana das Vítimas do Holocausto e dos seus Descendentes considerar o evento como «uma exploração do sofrimento das vítimas para se auto promover e publicitar» e o realizador como um «fracassado moral». Nessa tarde, o Festival de Cannes exigiu ao realizador explicações que, por sua vez disse que «se ofendi alguém esta manhã com as palavras que disse na conferência de imprensa, eu peço as mais sinceras desculpas». Em comunicado de imprensa, pudemos ler no portal: «A direcção do Festival toma nota e transmite as desculpas de Lars von Trier, reafirmando que nunca admitirá que a manifestação possa ser palco de tais declarações sobre tais assuntos.»

Sobre o filme, houve, um pouco por toda a parte, reacções negativas – Vasco Câmara escreveu que «é apenas um ensopado de ambição wagneriana, tal como a publicidade nas páginas da Vogue ou da Vanity Fair poderia recriar»; João Lopes que é «um filme que se limita a coleccionar uma série de lugares-comuns sobre as crises familiares e conjugais, com uma câmara muito ágil (?) e muito preguiçosa, de vez em quando "enfeitando" a (in)acção com alguns sofisticados efeitos digitais».

Em competição para a Palma de Ouro, a realizadora Naomi Kawase apresentou «Hanezu No Tsuki» (cuja conferência de imprensa poderá ser vista aqui). A assinalar o dia 18 esteve ainda «La Conquête», o filme de Xavier Durringer sobre Nicolas Sarkozy, igualmente mal recebido pelos críticos supracitados: Vasco Câmara considera que o filme «nunca tira a política do teatro televisivo» e João Lopes que a obra cria «uma galeria de personagens-marionetas que existem menos em função de qualquer desejo de história e mais para impor uma iconografia "naturalista", sem espessura dramática nem visão histórica».

No dia seguinte, o Festival de Cannes vivia ainda perturbado sobre a sombra das palavras de Lars Von Trier. Face às mesmas, foi deixada uma declaração que viria a fazer novamente notícia nas páginas dos jornais: «O Festival de Cannes propõe aos artistas do mundo inteiro um fórum excepcional para que possam apresentar as suas obras e defender a liberdade de expressão e de criação. O Conselho de Direcção do Festival, que realiza uma reunião extraordinária hoje, dia 19 de Maio de 2011, deplora que este fórum tenha sido utilizado por Lars Von Trier para exprimir comentários que são inaceitáveis, intoleráveis e contrários aos ideais de humanidade e de generosidade que presidem a existência vital do Festival. O Conselho de Direcção condena severamente estes comentários e declara Lars Von Trier persona non grata no Festival de Cannes, imediatamente aplicável.» Deixando de ser bem-vindo e banido no festival em futuras edições, o dinamarquês conseguiu ainda que «Melancholia» restasse em competição para a Palma de Ouro (ainda que, no domingo, caso a vença, tenha sido aconselhado a não recebê-la na cerimónia). Termina assim a novela de um festival de cinema que acolheu Von Trier como um filho e o viu crescer, galardoando-o em 2000 com a Palma de Ouro para «Dancer in the Dark».

Quanto a competição oficial, o realizador espanhol Pedro Almodóvar, assumidamente desiludido por nunca ter vencido no prémio máximo, regressa à Riviera Francesa com «La Piel que Habito», com Antonio Banderas. Sobre a narrativa, Almodóvar diz-nos (aqui, na conferência de imprensa) que «é uma história de sobrevivência em condições extremas, e isso é a história da humanidade. Pensei ao mito de Frankenstein depois, e sobretudo à ligação com o mito dos titãs e de Prometeu». Vasco Câmara opina e escreve que «é tão incomodativa a plasticidade forçada, peças díspares que não colam, que resistem a fazer corpo, que quando há a sensação de autoparódia involuntária serena já a coisa esta à beira de acabar. Mas que filme podia ter sido, a que delírios podia ter chegado.»

A concorrer para a Palma de Ouro esteve ainda Takashi Miike, com «Ichimei», a primeira longa-metragem a entrar em competição a utilizar a tecnologia do 3D. Este diz, na conferência de imprensa (a ver aqui): «o tema, o enquadramento e o cenário de Ichimei foram propícios a uma filmagem em 3D. Disto isto, filmar em 3D impõe muitos constrangimentos. O filme não tem cenas de batalhas porque demora muito filmá-las em 3D. Por outro lado, filmar em 3D cria outra espécie de excitação». Vasco Câmara escreve, no Ípsilon: «são tipos a falar, como em "Cães Danados", de Tarantino, mas coisa mais hierática, e de vez em quando há uma "cena da orelha", que aqui são cenas de seppuku. Só que o filme não nos compensa pelo facto de Takashi Miike não ser Akira Kurosawa

Foi ainda projectada uma versão restaurada de «Laranja Mecânica», de Stanley Kubrick.

Dia 20 de Maio foi o décimo do Festival de Cannes e assinalou-se por «This Must Be the Place», de Paolo Sorrentino, com Sean Penn, que representa uma ex-estrela rock semelhante (em parecença) com Robert Smith, vocalista dos The Cure. Na conferência de imprensa (a ser vista aqui), o actor explica como o projecto nasceu: «Nós encontrámo-nos durante o Festival de Cannes 2008, aquando da entrega dos prémios. Paolo acabava de receber o Prémio do Júri por Il Divo. Disse-lhe algo do género: "É quando quiser, onde quiser, seja qual for o argumento". Um ano mais tarde, recebi-o. Não tive nenhuma hesitação». João Lopes escreve: «É mesmo uma ficção total, centrada na figura de um ex-rocker, de nome Cheyenne, que tenta ajustar contas com os muitos fantasmas do passado, em particular com a memória traumática do seu pai — uma boa surpresa, em tom de drama interior, transfigurado pelos cenários (irlandeses e americanos) e também pela vertigem da memória.»

«Drive», filme de acção de Nicolas Winding Refn com Ryan Gosling e Carey Muligan, tem, na opinião de José Vieira Mendes, «os condimentos para 'Drive' se tornar quase num clássico de série B, mas que no melhor propósito até se parece às vezes com Colateral' ou com 'Heat'- Cidade sob Pressão, ambos de Michael Mann. Esta comparação só abona em favor de um filme interessante e intrigante, assinado pelo jovem realizador dinamarquês, que nos seus filmes europeus ('Pusher' e 'Broson'), não atinge este patamar e usa e abusa de uma violência radical sem qualquer sentido.»

Este dia ficou ainda marcado, fora de competição, pela presença do aplaudido «Isto não é um Filme», de Jafar Panahi, filmado na sua prisão domiciliária em Teerão. O co-realizador Mojtaba Mirtahmasb diz: «Não podemos virar a câmara para a nossa sociedade, portanto viramo-la para nós mesmos. Não quisemos baixar os braços perante a situação, mas sim utilizá-la de forma útil. Decidimos então tomar a energia desta situação para fazermos algo dela”. Serge Toubiana: “É um filme sobre a encenação. A encenação é um processo mental. Um cineasta faz um filme na cabeça. Quando se está privado de cinema, pode-se na mesma sonhar com um filme e é o que nos diz este filme magnífico», e ainda: «Preferimos ser homens livres do que heróis prisioneiros. Não somos combatentes políticos. Somos realizadores».



No seguimento da projecção, no dia anterior, de «Laranja Mecânica», o actor Malcolm MacDowell prestou uma conferência e homenagem ao icónico realizador Stanley Kubrick. « Gosto de dar energia às minhas personagens. Não gosto das personagens em 2D. Geralmente, baseio-me no meu instinto para lhe dar profundidade. Quando me iniciei, decorava o guião para não voltar a pegar nele. Hoje em dia, com a idade, é mais difícil! Gosto de trabalhar os textos e de esquecê-los depois, de modo a ficar livre para fazer o que quero durante a filmagem», explicou.

Resta referir os prémios que já começaram a ser entregues: a Cinéfondation com o Grande Prémio para «La Lettre», realizado por Doroteya Droumeva, e na Semana da Crítica que premiou «Take Shelter», de Jeff Nichols, com o Grande Prémio e «Las Acacias», de Pablo Giorgelli, com o Prémio de Apoio à Difusão e Prémio da Crítica Jovem da Semana da Crítica.

Os vencedores da Quinzena dos Realizadores foram também anunciados: «Les Geants», de Bouli Lanners, e «Atmen», de Karl Markovics, foram os vencedores, o primeiro com o Grande Prémio da Quinzena e o Prémio Arte, bem como o Galardão SACD (Melhor Filme em Francês). O segundo levou o Prémio Label Europa Cinemas (Melhor Filme Europeu).

O Festival de Cannes termina no domingo.

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