Hoje terá sido, na maior das probabilidades, o dia mais esperado de todos nesta edição do Festival de Cannes – a crítica viu, pela primeira vez, o quinto filme de Terrence Malick, The Tree of Life, às 8:30 da manhã. 32 anos depois de ter sido galardoado com o prémio de melhor realizador na Riviera (com «Dias do Paraíso»), Malick apresentou a longa-metragem longe do festival (o realizador nem chegou a voar para Cannes). A ausência, que decepcionou grandemente os jornalistas presentes (a maioria nem uma fotografia tinha visto dele), foi sentida durante toda a conferência de imprensa que seguiu o visionamento. As reacções ao filme foram bastante tão efusivas quanto díspares. Durante a projecção, o nome de Terrence Malick que surgiu nos créditos iniciais suscitou imediatos aplausos. No entanto, no fim da mesma, ovações e apupos misturaram-se.
Na imprensa nacional, o crítico de cinema João Lopes escreveu, no sound+vision, que «The Tree of Life é um acontecimento mágico que nos faz mudar de planeta, conseguindo transfigurar um melodrama familiar numa celebração cósmica. Se pode haver filmes que justificam que se diga a um espectador que nunca viu nada assim... este é um desses filmes.»
Já Vasco Câmara (Ípsilon) duvida e escreve que «nos filmes de Malick: há motivos, temas com aparência de corpos (por isso Brad Pitt fica bem a fazer de alguém de existência e moral hirtas: porque é um actor hirto), errantes (Sean Penn aparece por lá, faz de filho de Brad Pitt na actualidade, a corporizar a corporate America). E sem voz própria, apesar da aparente pluralidade que se ouve em off. A esses corpos (cada vez mais desalmados) a câmara faz tangentes, aproxima-se e afasta-se a seu bel-prazer, com uma coreografia que já se tornou reconhecível e que Pitt descreveu bem como alguém a apanhar borboletas. Há qualquer coisa de autoritário, intimidante, no cinema de Terrence Malick. Como se não houvesse a possibilidade de contracampo. Só ele fala. Deus?»
Já Vasco Câmara (Ípsilon) duvida e escreve que «nos filmes de Malick: há motivos, temas com aparência de corpos (por isso Brad Pitt fica bem a fazer de alguém de existência e moral hirtas: porque é um actor hirto), errantes (Sean Penn aparece por lá, faz de filho de Brad Pitt na actualidade, a corporizar a corporate America). E sem voz própria, apesar da aparente pluralidade que se ouve em off. A esses corpos (cada vez mais desalmados) a câmara faz tangentes, aproxima-se e afasta-se a seu bel-prazer, com uma coreografia que já se tornou reconhecível e que Pitt descreveu bem como alguém a apanhar borboletas. Há qualquer coisa de autoritário, intimidante, no cinema de Terrence Malick. Como se não houvesse a possibilidade de contracampo. Só ele fala. Deus?»
Pelo contrário, José Vieira Mendes vai mais longe e diz: «na verdade do olhar estético de Malick não se podia esperar melhor: mais uma obra-prima com contornos de uma sinfonia visual, com inspiração em Mahler, mas com uma poderosa e marcante banda sonora de oscarizado compositor francês Alexander Desplat. E depois é uma profunda e tocante reflexão filosófica sobre a vida e a morte, um ensaio sobre a criação do mundo e a relatividade do tempo. A narrativa não-linear, segue mais ou menos de uma forma intemporal uma trágica e intimista história de uma família americana da classe media dos anos 50 (os décors e o guarda-roupa fazem lembrar às vezes 'Revolucionary Road'). Mas com um discurso de dimensões épicas e transcendentais. O próprio título do filme não podia ser mais evocativo e explicativo apesar da sua concepção algo abstracta e desordenada: a árvore da vida é o símbolo da maioria das religiões e da teoria darwinista. Ou seja uma combinação da natureza com a espiritualidade, algo que é difícil deixar alguém indiferente mesmo que não se compreenda esta proposta e reflexão de Malick, que está ao nível de um '2001, Uma Odisseia no Espaço', de Stanley Kubrick.»
O enviado do Expresso Francisco Ferreira escreve: «"The Tree of Life" vai provocar reações extremas, defesas apaixonadas, "búúús" intermináveis. No seu gesto experimental e metafísico, o valor da interpretação afasta-se do sentido mais comum do termo (note-se a propósito que, num filme de duas horas e vinte, Sean Penn não aparece mais do que dois ou três minutos, no início e no fim). Os planos do filme encadeiam-se numa torrente de imagens ("O Novo Mundo", filme anterior de Malick, já tinha gerado este efeito) como se fossem no fundo um plano só, uma fonte inesgotável. São imagens sem paralelo, nunca ninguém as inventou assim. Dos anos 50, parte-se para uma cosmogonia a que o cinema nunca deu forma. Não faltará quem se lembre de "2001 - Odisseia no Espaço", quem diga que Kubrick e Malick são almas gémeas, que tocam a mesma sinfonia. São filmes incomparáveis, é certo. Mas a aura de ambos tem a mesma medida. O mesmo abismo. Partem do particular para o incomensurável, até à origem dos tempos. Pai só há um, podia ter dito Jack. O que se pode acrescentar? Que o êxtase, no cinema, é um imenso problema: ele sempre foi mais poderoso quando soube ser austero e simples. Mas o sagrado de Malick - e este filme não fala de outra coisa - extasia. O seu eterno é transbordante. Uma trip sideral, um delírio perpétuo. Refugiados na armadura do seu cepticismo, os cépticos não tardarão a cerrar fileiras. Mas não é isso que interessa, o desafio pede mais, o cinema pede mais: o que interessa é saber se Malick, que não é austero nem simples, chegará ao mesmo sublime pelo caminho mais difícil. Um filme assim, com a ambição extraordinária de transportar a humanidade para o que não é humano, de tocar no sibilino, é o filme de todos os riscos. Não tem meio termo. Só resiste se o seu gesto artístico partir de uma confiança incondicional em si próprio. Malick tem essa confiança. E é por isso que "The Tree of Life" é um filme único.»
Por sua vez, a imprensa internacional também manifestou críticas entusiasmadas. Peter Bradshaw, enviado do The Guardian (Reino Unido), escreve que «o filme magnífico de Terrence Malick desce lentamente como uma espécie de nave-protótipo: é um épico cósmico de proporções vangloriosas, uma reprimenda ao realismo, um repúdio da ironia e comédia, uma meditação sobre a memória e um suspiro de horror e temor sobre a misteriosa inevitabilidade de amar e de perder quem amamos.»
Por sua vez, a crítica de cinema Stephanie Zacharek chamou ao filme um «trabalho de enorme pretensão mascarado de auto-absorção», questionando a razão pela qual Malick, se é reconhecido pela sua habilidade de contar histórias por imagens, tem a necessidade de usar tanta voz-off.
Apesar das opiniões extremistas, houve ainda quem se posicionasse no meio-termo, caso do crítico Dave Calhoun que crê que «nem sempre comunica bem e, quando o faz, é às vezes banal, mas também é incrivelmente belo».
Durante a conferência de imprensa, que pode ser visualizada integralmente aqui, o actor Brad Pitt foi quem mais respondeu às questões dos jornalistas e esteve acompanhado pela actriz Jessica Chastain com quem contracena e pelos quatro produtores Sarah Green, Dede Gardner, Grant Hill e Bill Pohlad (que, quanto à ausência de Malick, respondeu que «ele não quer discutir sobre o seu filme, porque deseja que o público o receba como um poema e que cada um possa interpretá-lo como quiser»). Brad diz-nos que «seriam precisos vários dias para explicar o processo de criação do filme. O argumento foi escrito com muito talento, com muita densidade, mas Terrence Malick não queria segui-lo literalmente. Ele gosta de agarrar a verdade ao voo. É por isso que o filme exala uma impressão de frescura. Além disso, foi quase tudo filmado com luz natural. (…) Este filme é universal, Terrence Malick espera comover todas as culturas.»
O dia foi também marcado pela exibição de «Hors Satan», obra fora de competição principal (mas na secção Un Certain Regard) do grande cineasta Bruno Dumont que se celebrizou por dizer: «não sou crente, o meu filme só contém a exigência de qualquer outra fé no cinema». O estilo do filme, ao que parece, radicaliza-se mais que nunca, apelando às sensações do espectador, fazendo-o viver uma autêntica experiência.
A competir para a Palma de Ouro esteve ainda «L’Apollonide», de Bertrand Bonello, filme decadentista situado no princípio do século passado que tece a crónica do quotidiano das prostitutas que vivem dentro de um bordel secreto. Exercício estético e não político, Bonello diz na conferência de imprensa (a ser vista aqui) que «tudo o que tínhamos a esse respeito era o ponto de vista de homens: pintores, autores... O que eu queria era o ponto de vista das mulheres, o olhar que elas tinham sobre os homens.»
Fora de competição esteve o primeiro filme de Eva Ionesco – «My Little Princess».
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