Se [hoje], dia de estreias nas salas de cinema comerciais portuguesas, decidirmos prestar atenção aos títulos em cartaz teremos uma estranha surpresa chamada O Artista (título original: The Artist). Não, não é 3D, mas um filme… praticamente mudo e a preto e branco. O facto deve ser sublinhado: devido à não advertência das suas qualidades peculiares, o cinema Odeon Liverpool One, na Inglaterra, viu-se obrigado a reembolsar os seus espetadores, que mostraram desagrado e estranheza pelo formato.
Escrito e realizado por Michel Hazanavicius (n. 1967), esta produção francesa leva-nos à Hollywood de 1927 onde atores como George Valentin (interpretado por Jean Dujardin) perdem irrevogavelmente a sua fama devido à passagem do mudo para o sonoro no cinema, assistindo à ascensão de novas estrelas preparadas para enfrentar a nova tecnologia, como Peppy Miller (Bérénice Bejo que, tal como Dujardin, é uma figura presente no trabalho do realizador). A jornada de Valentin relembra, para além do filme Crepúsculo dos Deuses (filme realizado por Billy Wilder em 1950), a decadência real de atores como John Gilbert, Vilma Banky ou Norma Talmadge, ridicularizados pelas suas vozes e sotaques.
Este caricato retorno à era do mudo era já desejado pelo cineasta há já algum tempo: “os grandes cineastas que eu mais admiro provêm do cinema mudo… Hitchcock, Lang, Ford, Lubitsch, Murnau, Billy Wilder (como argumentista).” O interesse, aliás, vem já presente na restante filmografia de Hazanavicius, resultado do seu trabalho como realizador de anúncios de televisão e marcada essencialmente pelo pastiche e pela cinefilia – desde o telefilme La classe américaine, de 1993 (que parodia o cinema clássico norte-americano ao colar vários extratos de filmes da Warner Bros. e ao dobrá-los com novos diálogos) às paródias aos filmes de espiões Agente 117 (que chegou a estrear em Portugal em dezembro de 2006 e está disponível em DVD) e a sua sequela Agente 117 – Perdido no Rio (de 2009, entre nós disponível em aluguer de vídeo).
Homenagem ao cinema mudo ou simples paródia que encantou os norte-americanos mais nostálgicos, a verdade é que O Artista não tem parado de colecionar prémios. Estreado na competição oficial no Festival de Cannes (onde, apesar de ter “perdido” a Palma de Ouro para A Árvore da Vida, foi galardoado com o prémio para melhor ator). Foi considerado o grande vencedor na mais recente edição dos Globos de Ouro (melhor filme de comédia ou musical, melhor ator de comédia ou musical e melhor banda musical, responsabilidade de Ludovic Bource) e é talvez a maior aposta para a próxima cerimónia de entrega dos Óscares da Academia (estando nomeado para um total de 10 nomeações, incluindo melhor filme, realizador e ator). Não nos admiremos por isso que a estreia de O Artista (que chegou em Portugal, pela primeira vez, em outubro do ano passado, ao abrir a 12.ª edição da Festa do Cinema Francês) chegue em plena época de corrida aos Óscares, despertando os olhares mais curiosos.
Independente das suas qualidades, O Artista foi alvo de uma atenção que, para além de histérica, é tão pueril quanto a narrativa com que é preenchido. O que, na verdade, não nos admira: o esforço de conduzir esta homage para os Óscares estava já patente quando estreou no sul de França (uma espécie perversa e bizarra de meta a conquistar). Depois de tomarmos conhecimento de que Billy Cristal estará acompanhado, num sketch a decorrer na cerimónia de entrega dos prémios da Academia, por Uggie (o parceiro canino do protagonista) parece já não haver dúvidas do filme que se imolará vitorioso. O que, em boa verdade e sabemos nós, não significa absolutamente nada.
O que O Artista comprova, isso sim, é que uma boa história dispensa qualquer artifício (seja o 3D, a cor, o som, o digital ou uma proporção da imagem e velocidade distintas…) e que, apesar de a proposta seduzir – ou desinteressar – pela “invulgaridade” do seu formato, é a energia com que as suas sequências são motivadas que efetivamente importa. O filme está carregado dessa potência que entretém (isto é: que agarra com habilidade a atenção do espetador) e impressiona (através da brincadeira com os inúmeros clichés de Hollywood), mas que se reduz, em última instância, por se limitar à cópia daquilo que já não é e a um formalismo encantado de estudante de cinema.
Estou crer que não seja o objetivo do filme motivar o interesse do público pela era do mudo no cinema norte-americano (Luís Mendonça escreveu no seu blogue, em jeito de nota irónica, que “o editor dos 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer já poderá tirar os poucos filmes mudos - e já agora também Singin' in the Rain, Sunset Boulevard ou até Modern Times - que tem vindo a incluir nesse menu fast-food de cinema: afinal, para quê maçá-lo com velharias imperfeitas, se podemos sintetizá-las em hora e meia de grande diversão? Nem parece que está a ver um mudo, né verdade?”). Porque, para o bem ou para o mal, quando assistimos a’O Artista parece que estamos diante não de um filme deslumbrante mas, antes, de um filme deslumbrado.
(A primeira parte deste texto foi publicada no Diário de Notícias - 1 de Fevereiro de 2012)