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domingo, outubro 28, 2012

Sobre O Rio Sagrado


Deu início na passada sexta-feira (dia 26 de outubro), com O Rio Sagrado (1951) de Jean Renoir, o ciclo de cinema Ao Encontro De..., na Escola Superior de Teatro e Cinema (Lisboa) organizado pelo Rúben Gonçalves e por mim. Um espaço público de descoberta e reflexão de filmes estrangeiros e portugueses que tem expressão neste canal de Youtube (onde serão publicadas as filmagens das apresentações e discussão dos filmes) e neste blogue (onde estarão os nossos comentários e vídeos, bem como os dos espectadores). A propósito de O Rio Sagrado escrevi este texto que foi divulgado nas folhas de sala entregues aos espectadores:
Descobri O Rio Sagrado numa aula de Teoria da Montagem – descobria então aquele que é um milagre de filme; “milagre” no princípio, que nos dá as boas-vindas a um território (a Índia) onde me parece que a vida é celebrada como uma passagem para outro início (outra Índia); “milagre” no fim, que reforça a ideia de eterno retorno com um nascimento. Lembro-me (porque escrevi no caderno de notas) que tive medo de intervir na aula, sob a pena de destruir algo, potencialmente bigger than life, que estava diante de mim. No momento em que escrevo estas palavras continuo com esse medo e, também, ainda assombrado.

João Bénard da Costa, no seu texto sobre O Rio Sagrado, redisse que era “o mais belo filme do mundo” – convicção que acompanhou com um ligeiro espanto: se é o mais belo por que razão não o vemos citado como um dos mais importantes Renoirs? Se não fôssemos descrentes na arbitrariedade da enciclopédia 1001 Filmes para ver antes de Morrer morreríamos descansados por não termos visto O Rio Sagrado (que não consta na lista). Um filme que, afinal, não teme a morte – e é obrigatório, dizemos nós, para se ver vivo!

Quando, em 2012, (re)vemos este filme as suas imagens parecem-nos levar a um referente desconhecido, como se a memória recordasse bem as personagens e o discurso patentes no filme do Renoir. Por fim descobrimos o raccord: afinal foi Terrence Malick quem, no ano passado, nos fez descobrir um novo mundo chamado A Árvore da Vida. Lá encontrámos a figura da mãe, omnipresente, as dores do crescimento, essenciais em ambos os filmes, a angústia sobre o mistério da morte, também ela central, e o modo de conduzir a nossa espiritualidade. As fundações dos grandes temas que Malick trata na sua destemida odisseia tinham já sido tocadas havia então 60 anos.

O Rio Sagrado, que nos sugere também a imagem de uma grande árvore (“a árvore da vida” que, quando surge de vez a vez, domina a força de todo o enquadramento e nos obriga a pensar na questão da fusão de tempos – passado, presente e futuro), segue estas questões com agilidade (e notável serenidade).

Renoir concentra, contudo, a voz interior do filme numa – na protagonista, a Harriet do futuro, que conduz, sempre em off e até ao fim, o fio da narrativa num discurso que percorre, primeiro, um lado eminentemente realista e documental – ligados aos rituais religiosos e ao quotidiano da Índia, ignorando os estereótipos dos “elefantes, lanceiros e tigres”, como o próprio Renoir refere na sua apresentação do filme, e filmando (através da bela fotografia do sobrinho do cineasta) a vida que há no Oriente e que é percepcionada pelos olhos de um “viajante” do Ocidente. Depois, a voz de Harriet toca também a poesia (os versos simples que tão sincera e ingenuamente dedica ao Capitão John por quem está apaixonada) e, também, a fábula (a história dentro da história que nos faz aceder à cerimónia nupcial: mágica e primitiva, já que nos leva à origem da tradição).

O rio tem uma poderosa força simbólica (Bénard da Costa referia a sua feminilidade para descobrir como este era porventura o filme mais “feminino” de Renoir) mas parece-nos que é de igual modo uma imagem altamente sugestiva pelo seu lado unificador. Como a vida, o rio também existe através das suas atribulações ou, dito de outra forma, através das suas ondas – o equilíbrio daquela família inglesa faz-se não pela total estabilidade mas pelo crescimento, necessariamente agitado, de cada personagem. É certo que Renoir se foca no desenvolvimento de Harriet que, ao procurar dar sentido à crescente desordem do seu universo, se depara com a realidade dos acontecimentos (será que em 2012 alguém, com a informação instantânea da Internet, sente a violência destas descobertas?).

Ao mesmo tempo, parece-nos que todas as personagens deste filme vivem constantemente um dilema entre viver num ideal da felicidade e uma realidade incerta que é, porventura, dolorosa – Valerie, a dado momento, desabafa: “it was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want to be real”. Do mesmo modo, numa das cenas mais fascinantes do filme, Harriet confronta-se inevitavelmente com absurdo da realidade logo após a morte do irmão: afinal, o Bogey morreu e estou diante de um prato de comida? Ao mesmo tempo e contrariamente, Mr. John faz uma confissão radical mas absolutamente consciente: “we should celebrate that a child died a child. That one escaped. We lock them in our schools, we teach them our stupid taboos, we catch them in our wars, we massacre the innocents. The world is for children. The real world.”

Assim o rio continua – como a vida. Num círculo sem “end”, mas “endless”. Depois da morte, um nascimento; depois de uma desilusão, as cartas que são esquecidas nas escadas... E tudo isto convive simultaneamente, isto é, em fusão. Foi, talvez, a lição mais preciosa que tirei da aula em que vi pela primeira vez O Rio: o filme, que integra (e não separa) corpo e espírito, Ocidente e Oriente, vida e morte, prova-nos que o cinema, tal como a nossa existência, pode ser, ao mesmo tempo, claro e indeciso. Obscuro e luminoso.

terça-feira, agosto 14, 2012

Em Busca do Cinema Perdido (5)
As Lágrimas Amargas de Petra von Kant e Lágrimas e Suspiros — Fassbinder, Bergman e o retomar da linguagem teatral em direcção à modernidade


Em Busca do Cinema Perdido, que pretende ser uma rubrica que recupere filmes e realizadores que já não são nossos contemporâneos e que, de uma maneira ou de outra, permaneceram na história do cinema, contará, a partir desta publicação, com algumas colaborações de Rúben Gonçalves, já nosso conhecido. Este texto foi realizado no âmbito da unidade curricular História do Cinema IV (2012), leccionada por Luís Fonseca, da Escola Superior de Teatro e Cinema.
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A realidade e o cinema; as raízes de Fassbinder e Bergman no mundo do teatro, e sua importância para a carreira no cinema 

Pensar o cinema equivale sempre a pensar, de alguma forma, a sua relação com a realidade, ou não fosse a experiência de assistir a um filme algo simultaneamente curioso e intrigante, por tudo aquilo que o gesto de renunciarmos temporariamente àquilo que aceitamos como sendo a realidade - local onde as nossas acções têm inevitavelmente consequências, caracterizado pela irreversibilidade do tempo, ausência de possibilidade de repetição de um acontecimento nas circunstâncias em que primeiramente se deu, e por todas as óbvias limitações inerentes à nossa própria condição, que nos impõe, no contacto com o outro, seja ele paisagem ou evento humano, a necessidade de ocuparmos uma posição que, embora mutável, nos oferece sempre, e unicamente, uma perspectiva da qual não nos conseguimos evadir; em suma, ocupamos sempre, de cada vez, um lugar no espaço e no tempo, e noções como a omnipresença ou omnisciência soam involuntariamente como alheias a tudo o que encaramos como a convencional experiência humana, porquanto seja indiscutível que dela tenha brotado a ânsia por estas modalidades de existência e conhecimento - para a substituirmos por uma mentira fabricada, um universo do qual não fazemos parte, acarreta: se é verdade que ao assistir a um filme o nosso papel não se reveste de uma completa passividade, uma vez que a compreensão de uma narrativa cinematográfica depende, como a compreensão de outras formas de arte, das nossas "skills of inference, memory and imagination" (Bordwell:106) enquanto espectadores, e o nosso envolvimento com aquilo que vemos é já, por si, uma forma de participação, não podemos deixar de reconhecer que o acto de ver um filme parece conter em si um valor duplamente apelativo: o de potencialmente ultrpassarmos as nossas limitações físicas e adquirirmos faculdades que, se não são aquelas supra-citadas, nomeadamente, a omnipresença e a omnisciência, aspiram a sê-lo, e o de podermos presenciar o infortúnio ou tragédia alheios, bem como as suas consequências, sem que nos seja exigido, em momento algum, que ajamos de alguma forma para os suavizar ou resolver, pormenor que permite que satisfaçamos a nossa curiosidade pelo mórbido sem que soframos qualquer tipo de prejuízo pessoal: as personagens da tela surgem sempre dentro de um determinado enquadramento, do qual nunca deixamos de estar conscientes, e a nossa relação com o que lhes acontece é assim análoga àquilo que sentimos relativamente às figuras que nos visitam em sonhos, no momento em que acordamos: toda a felicidade ou desventura que derivamos desses episódios é sempre matizada pela certeza de ter sido ilusória - porque sem reais consequências naquilo que constitui para nós (e para os que nos rodeiam) a realidade -, e apenas possível num estado de suspensão da nossa relação com o mundo como em geral o consideramos, embora aquilo que tenha acontecido enquanto dormíamos decorra sempre da realidade (ou da ideia que construímos dela). Assim, podemos pensar a relação do cinema com a realidade segundo dois critérios: ontologicamente, como acabamos brevemente de o demonstrar, ou historicamente, evocando os seus primórdios e a estreita relação que mantinha com a linguagem teatral, ou atentando no cinema ao chegar à sua própria modernidade e interessando-se por uma ""subjective" or "expressive" notion of realism" em que o cinema "aims to exhibit character" (Bordwell: 207), num interesse pelas personagens que leva Bordwell a estabelecer uma analogia entre o cinema clássico e os contos de Poe, e entre aquilo que ele apelida de art cinema e Tchekhov, analogia cujos fundamentos, a nível de tratamento de personagens e construção narrativa iremos explorar mais adiante, mas de que retemos, para já, esta ideia de aproximação ao teatro pela evocação do autor russo, mestre do conto e do drama, por aquilo que ela traduz no que respeita a uma cisão com o cinema clássico das décadas de 30-50: enquanto esse tipo de cinema decorria sem dúvida da vida, da realidade, mas a retratava submetendo-a a uma série de códigos de representação que invariavelmente criavam um distanciamento entre ela e o modo como surgia no cinema, o "art cinema", no qual se incluem os realizadores que abordaremos neste trabalho - Rainer Werner Fassbinder e Ingmar Bergman -, aparece no rescaldo das descobertas levadas a cabo pelo neo-realismo, para desenhar uma nova relação entre o cinema e a realidade, e que se caractertiza por um movimento de aproximação dele relativamente àquilo que lhe serve de matéria-prima, movimento cujas implicações formais tentaremos averiguar em seguida, debruçando-nos sobre dois filmes em particular, As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Fassbinder, e Lágrimas e Suspiros, de Bergman, ambos de 1972. 

Ora, quer Fassbinder, quer Bergman encontram as raízes das suas vidas artísticas e profissionais no teatro, embora ambos se tenham eventualmente dedicado também ao cinema. Para Fassbinder, o teatro serviu como "a place of provocative discourse on contemporary cultural and political issues" (Watson: cap 2, 18), o seu trabalho nesse meio (dos finais da década de 60 até meados de 70) sendo inspirado pelo conceito de "teatro de crueldade" desenvolvido por Antonin Artaud, poeta e teórico de teatro francês, que defendia a criação de uma modalidade teatral que servisse como uma "believable reality which gives the heart and the senses that kind of concrete bite which all true sensation requires" (Artaud, citado em Watson: cap2, 18). Assim, Fassinder, desejando desde o início trabalhar em cinema mas adiando sucessivamente essa perspectiva (por questões financeiras relacionadas com a produção cinematográfica mas não só), dedicou-se ao teatro (meramente porque era mais acessível e imediato para ele dar aí os primeiros passos a nível profissional do que no mundo do cinema), juntando-se a um grupo underground que, na linha dos movimentos que originaram o Maio de 68, começou a produzir um teatro subversivo que rapidamente chamou a atenção para o nome de Fassbinder, mas que lhe permitiu, acima de tudo, "test out his capacities for friendship, intimacy and aggressiveness" num grupo de pessoas com quem ele podia explorar "a wide variety of themes and theatrical styles" (Watson: 19), e tudo isso, aliado à influência de Jean-Marie Straub - com quem Fassbinder colaborou, ainda no contexto do teatro, em 1968, e que lhe permitiu, enquanto actor, explorar um método de auto-distanciação a nível de construção de personagem que se distinguia da tradição do teatro e cinema ditos realistas -, e de Douglas Sirk, realizador germano-americano cuja filmografia constituiu para Fassbinder uma autêntica descoberta, e que lhe daria o derradeiro impulso para abandonar o estilo das suas primeiras obras (filmadas com escassíssimos recursos, e com pessoas da companhia de teatro a que pertencia) e abraçar o cinema decidido a explorar aquelas que para ele eram as verdadeiras potencialidades deste meio, e que ele reconhecia como presentes nos filmes de Sirk (ao ponto de escrever um ensaio intitulado Imitation of Life, o nome, inspirado pelo filme homónimo de 1959, sugerindo o seu conteúdo, uma reflexão sobre os filmes do realizador em que Fassbinder afirmava que Sirk compreendera "the essential nature of the medium - that films are made with people, with light, with flowers, with mirrors, with blood" (Fassbinder, citado em Watson: cap. 4:11), este último elemento por ele referido ecoando a ideia de Artaud, relativamente ao teatro, de que, para permitir ao público descobrir em si as "magical liberties of dreams", o teatro deveria apresentá-las sob o matiz do terror e da crueldade), potencialidades essas, dizíamos, que passavam pela capacidade de apelar "to audience expectations while simultaneously subverting them" (West German Film, citado em Watson, cap. 4:12) e de propiciar ao espectador não só a carga emotiva existente no típico melodrama norte-americano, mas também a "possibility of reflecting on and analyzing what he is feeling" (Sparrow, citado em Watson, cap. 4:14), unindo às qualidades que Fassbinder atribuía ao cinema de Hollywood a crítica do status quo da sociedade alemã de então, todas estas influências, em suma, delineando os traços por que se caracteriza a obra de Fassbinder enquanto cineasta. 

Para compreendermos a relação que Fassbinder mantinha com o teatro e com o cinema, talvez seja pertinente a evocação de Bergman, realizador que afirmou ter-se dedicado ao teatro "sobre todo para conocer mejor a las mujeres" (Company:145), e que tinha em relação ao teatro e ao cinema uma posição semelhante à de Fassbinder. Para o realizador alemão, o teatro era interessante pelo processo - que oferecia maior controlo sobre os recursos de produção e consequente emprego deles -, sobretudo pelo trabalho de grupo nele envolvido, e não tanto pelo resultado; o cinema, por sua vez, apresentava um resultado que o cativava, embora o processo até lá fosse "tiring and sometimes very unsatisfying" (Fassbinder, citado em Watson, cap. 2:20); quanto a Bergman, também no teatro o processo constituía o principal atractivo, ele apelidando-o como uma viagem colectiva, caracterizada pelas relações de intimidade entre os seus elementos, ao passo que, no caso do cinema, tudo é "fatigoso e incluso doloroso", não existindo nele "nada de purificante ni de libertador" (Bergman, citado em Company:146), funções que ele reconhecia ao processo de montar um espectáculo para o palco. O background do mundo do teatro não o impediu, porém, de escrever na introdução às "Four Screenplays" o seguinte: "I do not want to write novels, short stories, essays. biographies, or even plays for the theater. I only want to make films - films about conditions, tensions, pictures, rhythms and characters which are in one way or another important to me. The motion picture, with its complicated process of birth, is my method of saying what I want to my fellow men. I am a film-maker, not an author" (Bergman: 18). 

Assim, o teatro serviu para ambos testarem estilos e técnicas que depois aplicariam no seu trabalho no cinema, e que se encontram particularmente presentes nos dois filmes sobre os quais discorreremos agora. Ora, As Lágrimas Amargas de Petra von Kant começou por ser uma peça de teatro que Fassbinder concebeu como inspirada na sua relação com o amante Günter Kaufman - e que se especula que tenha desempenhado na vida do realizador papel análogo ao que, no filme, Marlene, assistente de Petra, representa relativamente à protagonista), mas que depois absorveu detalhes das relações que ele manteve com várias pessoas com quem ele se envolveu e trabalhou (Irm Hermann, Peer Raben, por exemplo), acabando por ser uma história "about women" (Fassbinder, citado em Watson: cap.6:7), e que depois adaptou para cinema conservando, no entanto, a estrutura em cinco actos da peça original, e que no filme aparecem divididos por sucessivos fades a negro, a história adquirindo assim uma dimensão episódica que Bordwell atribuía ao igualmente às obras que se incluíam na corrente que ele apelidou de "art cinema". 

A herança da peça de teatro original em Petra; o significado do fade em cada um dos filmes e o tratamento do passado 

O filme de Fassbinder pode então ser dividido nos seguintes momentos (ou actos): a visita matinal de Sidonie, amiga de Petra, que lhe apresenta a esbelta Karin, por quem Petra se apaixona; a primeira noite que Petra e Karin passam juntas; a manhã que despoleta a sua separação e regresso de Karin para o marido; o aniversário de Petra, em que a encontramos junto ao telefone, no chão, desesperadamente à espera de uma chamada de Karin; e um episódio final, em que, sozinha com a mãe, Petra adopta em relação a Karin uma outra postura daquela que demonstrara na cena anterior, e em que, deixada pela mãe, Petra pede a Marlene, que permanecera em silêncio durante todo o filme, que lhe fale da sua vida, pedido a que ela responde fazendo as malas e indo-se embora. Relativamente à acção de cada acto (ou episódio), os fades a negro adquirem portanto o valor de sublinhar uma passagem temporal - como acontece entre o primeiro e o segundo acto, o primeiro a terminar com o convite de Petra para que Karin venha jantar com ela na noite seguinte e o segundo acto a iniciar-se nessa noite, com os últimos preparativos de Petra antes da chegada de Karin, ou entre o segundo e o terceiro acto, o segundo terminado com uma declaração de amor da parte de Petra e o terceiro iniciando-se ao mostrar-nos Karin a folhear uma revista deitada na cama de Petra, numa postura que desde logo nos serve de indício para a familiaridade que entretanto se formou entre as personagens e que depreendemos ter sido construída ao longo de um período de tempo certamente mais prolongado que aquele que separou o primeiro acto do segundo, suspeita que o fade agora acentua) -, cumprindo desta forma uma função que convencionalmente atribuímos a este mecanismo, ou de estabelecer uma mudança de mood, como acontece com aquele que separa o quarto do quinto acto, e que de certa forma anuncia a mudança de tom do discurso da protagonista, que revelara bastante hostilidade em relação às personagens que a visitaram no seu aniversário mas que surge no quinto acto completamente derrotada e disposta a fazer todos os compromissos para não levantar oposição à mãe - "Vou voltar a ser o que era, mãe" é a sua primeira fala neste acto, e desde logo nos prepara para a mudança que se deu em Petra, que agora irá inclusivamente ao ponto de se contradizer quanto ao que afirmara na presença da filha e de Sidonie quando confessa à mãe que não amava Karin, mas que, na verdade, "apenas a queria possuir" -, este último encontro entre as duas terminando com uma nota positiva, uma vez que Petra se despede da mãe dizendo-lhe que lhe irá telefonar, e que agora está mais tranquila. Mas sobre as dinâmicas estabelecidas entre as personagens do filme de Fassbinder não nos alongaremos ainda; para já, convém reter então a ideia de que a natureza do filme surge desde a sua concepção determinada pela linguagem teatral que herdou da peça que lhe deu origem, e que tal se verifica logo a nível estrutural, como acabamos de demonstrar, o fade representando um importante mecanismo na tradução para a gramática cinematográfica a mudança de actos no teatro. 

Diferente significado parece revestir, com efeito, os fades que fragmentam a narrativa de Lágrimas e Suspiros, uma vez que, embora também eles estabeleçam uma cisão temporal entre os acontecimentos do filme, revelando-se, no contexto da narração que Bergman emprega aqui - e que recorre à voz-off, quer de Agnes, a protagonista, quer de um narrador por identificar - um importante elemento no que toca à forma como o filme trabalha o passado. Ora, se em Lágrimas e Suspiros poderíamos falar de um tratamento do passado que age de acordo com os dois modos de narração que Percy Lubbock reconhecia ao romance, enquadrados numa teoria da narratividade que a encarava enquanto algo mimético - isto é, enquanto apresentação de um espectáculo, e que resultava naquilo que Bordwell sugere como showing: o pictorial, "which represents the action in the mirror of a character's consciousness" (Bordwell: 8), e que verificamos nos momentos em que a voz de Agnes nos lança para o passado - como no flashback, logo no começo do filme, que nos leva até à sua infância, as palavras delas acompanhando as imagens que nos mostram a sua mãe, ora caminhando pelo parque, ora rodeada de Agnes e suas irmãs, em planos que não reproduzem propriamente o ponto de vista de alguém presente nesses momentos, mas cuja inegável subjectividade nos remete de imediato para a ideia de que o acto de recordar (aqui levado a cabo por Agnes) é sempre algo de extremamente pessoal, a mãe dela surgindo assim sob uma espécie de filtro que confere às imagens a dimensão nostálgica que as palavras da protagonista, ao lembrá-la, contêm -, e um outro, presente, por exemplo, quando o narrador de identidade desconhecida nos transporta até ao passado para nos mostrar o episódio entre Maria e o doutor David por ocasião do adoecimento da criança de Anna, a criada, num momento que, embora se refira a uma memória de Maria, é mostrado sem que haja qualquer subjectividade na imagem, o episódio sendo perspectivado de uma forma que "neutrally presents the visible and audible facts of the case" (Lubbock, citado em Bordwell: 8), e correspondendo assim àquilo que Lubbock consierava como um modo de narração dramático. 

O tratamento do passado surge assim como primeiro elemento que distingue As Lágrimas Amargas de Petra von Kant do filme de Bergman. Em Petra, nunca se recorre ao flashback, e todas as lembranças chegam até nós através das palavras das personagens, num modo narrativo que, servindo de contraponto ao showing, surge enquadrado nas teorias diegéticas da narração (a diferença entre estas e as já mencionadas teorias miméticas reportando-se a Aristóteles) que considera o acto de narrar como consistindo "either literally or analogically of verbal activity" (Bordwell:3). Fassbinder ambienta então o seu filme dentro das convenções do drama, que aqui, tal como no palco de teatro, depende da interacção das personagens, da inter-subjectividade, para construir todo o universo da história, e principalmente no que toca aos eventos que antecedem o primeiro que o filme nos mostra. As personagens têm um passado, nas nós só contactamos com ele através das suas palavras, havendo pois uma concentração sobre a reacção e não propriamente sobre a acção, o filme apresentando as personagens enunciando os "psychological effects in search of their causes" (Bordwell:208) num modo de narração que poderíamos considerar análogo ao pictorial de Lubbock, uma vez que o facto de que tudo é relembrado e citado por alguém faz com que sesses acontecimentos sejam sempre enquadrados à luz da consciência da personagem que os relembra e do seu ponto de vista pessoal. 

A palavra em Fassbinder e Bergman: as duas dimensões do diálogo 

Relevante será, então, atentar na função que cada um dos filmes atribui ao diálogo, à palavra. Ainda na linha do que Bordwell diz sobre o "art cinema", podemos incluir ambos os filmes no realismo psicológico, principalmente se tivermos em conta que as personagens recorrem ao diálogo (que, muitas vezes, adquire fortes traços de monólogo) para uma "dissection of feeling" através da qual cada personagens procura "reveal the self to others and (...) to us" e que faz com que o movimento do plot seja suspendido por momentos em que as personagens evocam "stories, autobiographical events (especially from childhood), fantasies and dreams" com vista a "expressing and explaining their mental states", aquilo a que Bordwell chama de "inquiry into character" tornando-se "not only the prime thematic material but a central source of expectation, curiosity, suspense, and surprise" (Bordwell:208-209). A propósito deste ponto vêm-nos ao pensamento a cena inicial de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, e o diálogo entre a protagonista e Sidonie, em que elas evocam o passado de Petra com Frank, seu ex-marido, entre outros assuntos, assim se gerando ocasião para que a psicologia das personagens se nos revele - como no momento em que Sidonie pergunta a Petra se uma experiência em que o que vai acontecer pode ser previsto com alguma exactidão, como no caso do seu relacionamento com Frank, é uma experiência que valha a pena, ou o instante em que Petra afirma que "acreditava na bondade humana... mas o casamento desperta o que há de pior nas pessoas" -, através dos vários comentários que as duas vão tecendo a respeito dos tópicos das conversa e que simultaneamente lançam luz sobre as diferentes concepções de vida que tem cada uma, bem como nos dão pistas sobre as vivências que as terão levado a construí-las. 

A respeito deste valor da palavra enquanto reveladora da interioridade das personagens poderíamos evocar o artigo Pour un Cinèma Parlant, assinado por Maurice Scherer, e publicado na Le Temps Modernes a setembro de 1948, no qual o seu autor afirma que "pour affaiblir ou contrôler la puissance redoutable de la parole, in ne faut pas (...) en rendre la signification indifférente, mais trompeuse" (Scherer:6). Ora, em Petra, tal como no filme de Bergman, a palavra raramente adquire esta dimensão da mentira que lhe permite servir de contraponto à imagem, mas existe em Bergman a intenção de estabelecer um contraste entre o espaço - a mansão em que a acção decorre, com toda a sua austeridade e atmosfera de aparente sobriedade, sempre mergulhada num silêncio em que a única coisa que parece ganhar materialização é o passar do tempo, através do relógio, como constatamos no começo do filme - e os diálogos que as personagens mantêm entre si, e que chocam com esse equilíbro da arquitectura do espaço em que se inserem por nos revelarem gradualmente toda a "angst" acumulada por cada uma delas, e queas leva a explodirem em autênticos gestos de violência (mais psicológica do que propriamente física) a que o décor opõe uma sensação de tranquilidade que só o é aparentemente, como na cena de jantar entre Karin e Maria após a morte de Agnes, sobre a qual nos debruçaremos mais um pouco em seguida. Por outro lado, em Fassbinder podemos verificar um valor atribuído à palavra que faz com que ela não seja "à aucun moment simple moyen d'action sur les autres et vaut toujours par elle-même" (Scherer:6), havendo nos dois filmes, portanto, esta dupla função da palavra, que ora permite que acedamos ao interior das personagens (ocorrendo para isso uma suspensão do tempo e do movimento da história em que elas discorrem sobre as suas opiniões), ora funciona enquanto elemento motriz da história, desencadeando entre as personagens os conflitos que trazem para o exterior delas os sentimentos que nutrem umas em relação às outras. 

As mulheres em Bergman e Fassbinder: o conflito interiorizado.
As duplas Petra e Marlene / Agnes e Anna 

E é devido a esta segunda dimensão do diálogo que aos poucos se vão desenhando as relações entre as mulheres do filme de Fassbinder, relações de poder em que ele trabalha aquele que é um dos seus temas recorrentes, a "emotional exploitation within intimate relationships" (Watson, cap. 2:3), mostrando-nos as mulheres enquanto "victims who internalize their oppression rather than try to liberate themselves from it" (Watson: cap. 6:1), algo particularmente visível na dinâmica das relações que unem Petra à sua amante mais jovem, Karin, à sua assistente Marlene, e à sua mãe: apaixonada por Karin, Petra assume relativamente a ela uma postura de sujeição que a expõe aos maiores actos de crueldade de Karin sem que consiga opor-lhes verdadeira resistência (como na cena em que, deitada na cama de Petra, Karin lhe relata detalhadamente o encontro sexual que tivera com um homem na noite anterior), tornando-a assim uma figura tão amargurada quanto impotente; também no que diz respeito à relação de Petra com a sua assistente podemos falar de um sentimento de opressão reprimido (neste caso, por Marlene), que resulta num absoluto silêncio da sua parte (mantido durante todo o filme) e estrita obediência aos pedidos de Petra (que a transformam não numa assistente de design, mas, mais do que isso, numa autêntica criada), só quebrados na cena final, em que, ao fazer as malas para abandonar Petra, Marlene consegue com esse gesto libertar-se da opressão que voluntariamente suportara na convivência com Petra; e também a relação entre Petra e a sua mãe se traduz numa relação de poder e influência de contornos diabólicos, e que suscita da protagonista, aquando da visita da mãe por ocasião do seu aniversário, reacções bastante inflamadas, principalmente quando o assunto de conversa passa a ser a sua relação com Karin. O impacto desta relação para Petra (e da influência que a mãe exerce sobre ela) podemos ainda verificá-la no momento, perto do final do filme, em que Petra, deitada na cama, face às palavras da mãe sobre a sua fidelidade ao marido, já morto, e outros assuntos (sobre os quais não se priva de proferir os mais desinteressantes lugares-comuns), muda o seu discurso em relação a Karin e faz uma confissão dos seus supostos verdadeiros sentimentos relativamente a ela. 

No filme de Bergman está também muito presente esta sensação de repressão, que condiciona o comportamento de todas as personagens, repressão dos verdadeiros sentimentos e emoções que a doença (e eventual morte) de Agnes quebra, servindo de catalisador para que se formem entre as personagens novas dinâmicas à medida que começa a ser exposto aquilo que cada uma delas realmente pensa: a morte dela traz ao de cima o desprezo de Karin por Maria e torna o acordo entre elas, a longo prazo, completamente impossível, excepto no momento em que, no decorrer da discussão ao jantar, o diálogo entre as duas deixa de se ouvir para que esteja presente na banda sonora somente o som de um violoncelo, enquanto elas trocam carícias num momento de aparente reconciliação cuja força se deve grandemente a esta opção de repentinamente nos ser barrado o acesso às palavras delas, para que atentemos somente na imagem das duas, bastante próximas no plano, experimentando um momento de profunda intimidade. Esta opção não é ingénua, como é óbvio; e é interessante se tivermos em conta aquilo que dissemos anteriormente sobre a palavra em Bergman e aquilo que ele próprio escreveu sobre a imagem e como ela afecta a mente humana: "The written word is read and assimilated by a conscious act of the will in alliance with the intellect; little by little it affects the imagination and the emotions. The process is different with a motion picture. When we experience a film, we consciously prime ourselves for illusion. Putting aside will and intellect, we make way for it in our imagination. The sequence of pictures plays directly on our feelings" (Bergman: 17); além disso, este momento merece ainda a nossa atenção por aquilo que sugere sobre as personagens, uma vez que tudo ali contribui para uma atmosfera de abstracção (do universo do filme, do espaço, estando elas frente a uma parede completamente desprovida de caractertísticas que não a sua cor, o vermelho) e de suspensão (do tempo, do conflito entre as personagens) que nos servem de indício para o que se passará a seguir, quando, com o regresso à realidade do filme, surge novamente a distância entre as irmãs e a impossibilidade de as ultrapassarem, sublinhada por esse momento que serve, então, como um vislumbre de algo que é, na verdade, inatingível. 

Enquanto nos demoramos nas personagens, valerá a pena reservarmos umas palavras a Anna, a criada da família e que ocupa no filme uma posição bastante peculiar, uma vez que estabelece com Agnes uma relação de afecto e ternura (completamente ausentes das relações entre as irmãs) servindo quase como uma figura maternal para a moribunda. Anna é, como Marlene, uma personagem muito presente, mas as relações que cada uma estabelece com as restantes dos respectivos universos a que pertencem conferem-lhes posições bastante distintas: se Marlene está presente em todos os momentos-chave do filme, ora no plano, ora fora de campo (o som da sua máquina de escrever testemunhando-o), presença relativamente à qual as personagens manifestam algum incómodo, mas que Petra procura tranquilizar quando diz que entre ela e Marlene não há segredos (confissão que, contrariamente ao que seria de esperar, ao invés de reforçar os laços entre as duas personagens apenas acentua a insignificância da assistente para Petra, que lhe permite presenciar todos os momentos importantes da sua vida porque não espera dela, nem lhe concede o direito, de ter qualquer tipo de intervenção neles), Anna, por outro lado, vê o seu comportamento e intervenção na história inteiramente determinado pela sua profissão e condição social, as irmãs de Agnes não se privando de a dispensar nos momentos mais íntimos, e sobretudo após a morte de Agnes, que percebemos ser a única que, das três, tinha realmente consideração e apreço pela presença da constante Anna e pelo seu trabalho, muito diferindo a relação dela com Anna - por quem ela chama nos momentos de maior ou menor inquietação, atribuindo-lhe um papel que ultrapassa claramente as funções que ela deveria desempenhar enquanto criada, mas que traz ao de cima esses profundos laços de carinho e zelo existentes entre as duas - e a relação que Petra mantém com Marlene, que a protagonista sujeita a cada um dos seus caprichos e vontades. Marlene não só serve como assistente de Petra na sua carreira relacionada com a moda, como lhe traz o chá ou a ajuda a ajustar o vestido para o encontro com Karin -, momentos em que, em vez de vir ao de cima uma proximidade e cumplicidade de entre as personagens, somos remetidos, mais uma vez, para a postura servil que Marlene é forçada a adoptar quanto a Petra, e que confere às suas cenas a sós uma atmosfera destituída de verdadeiro calor humano - que Petra irá procurar em Karin, sem sucesso -, ao passo que, no filme de Bergman, esse calor humano - ausente das relações entre as irmãs - encontra-o Agnes somente na companhia de Anna, longe dos conflitos reprimidos e interiorizados que as irmãs carregam consigo. 

O vermelho em Lágrimas e Suspiros: a cor em Bergman e a cor em Fassbinder; o vestuário e a interioridade das personagens 

Referimos há pouco do vermelho da parede contra a qual surgem as personagens de Maria e Karin no momento de falsa reconciliação em Lágrimas e Suspiros. O vermelho, presente nas paredes, está também imbuído num aspecto formal do filme, também ele já mencionado, o fade: contrariamente a Petra, em que fades iam simplesmente a negro, os fades do filme de Bergman vão a vermelho, pormenor a propósito do qual não podemos deixar de reflectir um pouco sobre o trabalho da cor no filme. 

Ora, em Lágrimas e Suspiros existe um tratamento da psicologia das personagens que encontra ecos na cor e na luz, bem como outros aspectos da mise-en-scène de que falaremos ainda, nomeadamente o staging teatral, a profundidade de campo e a forma como ambos surgem nele e n'As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. Sobre a cor em Lágrimas e Suspiros podemos lembrar, além das paredes, a cena em que Karin se mutila sexualmente com um pedaço de vidro partido, e depois leva as mãos ensanguentadas ao rosto: o vermelho surge como a natureza sexual que Karin, tal como tudo o resto, reprime, e a que voluntariamente renuncia; surge como materialização das dimensões inalcançáveis de cada uma das protagonistas, que surgem em grande plano com um fundo vermelho sempre que o filme altera o seu foco narrativo entre cada uma delas, o vermelho das paredes funcionando assim como que um prolongamento delas próprias, mas que, curiosamente, estabelece um contraste com a cor dos vestidos que elas sucessivamente vestem ao longo do filme - o branco, o cinzento, o preto -, como se desse contraste pudéssemos depreender um simbolismo que remetesse para o quão aquela ambiência de opressão - que resulta, para todas, numa constante auto-anulação - desloca as personagens para longe delas próprias. Por outro lado, a gradação na cor dos vestidos - do branco para o preto, e, no final, para o branco novamente - não só serve de indicador das alterações que o filme e as personagens vão sofrendo a nível de mood, como adquirem um valor afectivo, por associação. Se o cinzento dos vestidos contém ecos da interioridade das personagens ao remeter para o aspecto difuso e indefinido das suas personalidades, para a sua falta de "clear-cut traits, motives and goals" que as leva a "act incosistently" enquanto elas "question themselves about their purposes" (Bordwell: 207) (o diálogo adquirindo assim uma função de terapia através da dissecação, como dissemos, do que sentem e pensam), o preto assume os valores que tradicionalmente associamos ao período de luto, nomeadamente de respeito pelo defunto (e sua memória) e manifestação exterior desse sentimento de perda experimentado pelas irmãs, ao passo que o branco, que vemos Karin, Maria e Anna vestir numa das cenas iniciais do filme e que nos impressiona pelo contraste que estabelece com as carpetes e paredes do quarto onde estão, remete para a ideia de tranquilidade e pureza - que cedo percebermos serem tudo menos o que caracteriza aquelas personagens -, remetendo também, à luz da última cena do filme - em que, através de um flashback, somos transportados ao último momento de genuína felicidade vivida por Agnes - para a ideia de felicidade perdida, existente num passado que as personagens podem evocar mas a que não conseguem regressar, servindo o momento inicial referido como um resquício dessa lembrança e da sensação que percebemos estar-lhe associada, a de harmonia e cumplicidade entre as irmãs, agora completamente desaparecida. 


Análogo ao plano que referimos, no começo do filme, em que Anna e as duas irmãs de Agnes aparecem vestidas de branco, há em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant um momento, no episódio do aniversário da protagonista, em que todas as personagens estão incluídas no plano (Petra, a sua filha, a mãe, Sidonie e Marlene), mas o enquadramento - pela própria posição da câmara, junto ao chão, com os sapatos da mãe em primeiro plano - as cores dos vestidos delas criam uma sensação de desarmonia, de desacordo entre as personagens, ao mesmo tempo que releva os traços característicos de cada uma (o vestuário servindo como um elemento da identidade delas), e estebelece-as como incompatíveis, pertencentes a universos diferentes. Em Petra, os conflitos que matizam as relações das personagens têm assim eco na forma como elas se vestem, ao contrário do que se passava no filme sueco, em que os vestidos que elas usavam da primeira vez que as vemos interagir geram em nós a ilusão de concordância entre elas. No filme de Fassbinder, a questão do vestuário tem ainda um outro peso, se tivermos em conta a profissão da protagonista - estilista - e o facto de que a sua roupa e perucas mudam de episódio para episódio, numa excentricidade que não é mais do que a sua forma de gerir as relações que mantém com cada uma das personagens, e que confere à personagem e a essas mesmas relações um tom de artificialidade, de engano e de mentira que aparentemente não estão presentes, como vimos antes, nas palavras que as personagens proferem, pelo facto de que servem para Petra como uma máscara a que recorre para lidar com a opressão, que ora experimenta face às outras (a mãe e Karin), ora a ela as sujeita (a filha e Marlene). Existem dois momentos em que Petra surge sem máscaras: no início, na presença unicamente de Marlene, e no final, na conversa com a mãe, antes da sua partida, mas estes momentos em que a personagem surge destituída de artifícios não a aproximam nunca das outras; antes servem para reforçar a distância entre ela e Marlene (perpétua espectadora dos seus truques) ou a sensação de derrota em que a cena da suposta reconciliação entre Petra e a sua mãe aparece mergulhada, e que encontra paralelismos na cena de reconciliação entre as duas irmãs do filme de Bergman na medida em que ambas sublinham a incapacidade de as personagens ultrapassarem os obstáculos que as separam - em Bergman, através da abstracção da realidade do filme, como vimos, e em Fassbinder através da "tension dans l'immobilité" (Scherer:5) que caracteriza os planos que acompanham este momento, e que nos levam a reconhecer como falsa a "confissão"de Petra quanto a Karin, bem como a sua promessa de telefonar à mãe. Sobre a questão do vestuário não podemos deixar de reparar no peso que também ele acaba por adquirir em Lágrimas e Suspiros: o vestuário não só força as personagens a conviverem aparentemente num mesmo universo, como as oprime ao obrigá-las a agir contra a sua verdadeira natureza (que as paredes evocam). E esta ideia surge sublinhada no momento em que Anna se despe e toma Agnes nos seus braços, uma cena em que escapa a essa opressão imposta pelo vestuário, e se desenha entre as duas um momento de proximidade genuína. 

A boundary-situation, o staging teatral e o grande plano 

Sobre o fade como herança da estrutura da peça original no filme de Fassbinder falámos já; contudo, a respeito desta herança não podemos deixar de mencionar um aspecto que, a nível formal, condiciona todo o ambiente do filme e que o transporta para o meio do teatro: o facto de que todo o filme é passado no apartamento de Petra, na divisão principal, onde a sua cama divide o espaço com o pequeno local de trabalho de Marlene, situado a um dos cantos. Esta restrição do espaço, bem como a compressão do tempo, são dois dos resultados do foco na boundary-situation, episódio que gera "the private individual's awareness of fundamental human issues" e que leva o espectador a tomar consciência "of meaningful as agains meaningless existence" (Bordwell:208). 

Ora, em Fassbinder o décor surge como um palco, e esta opção estilística encontra a sua origem na sua concepção de cinema enquanto espectáculo aglutinador dessas duas dimensões - a emoção, aliada à reflexão - que ele admirava no cinema de Sirk, Bordwell considerando que, no que diz respeito ao "art cinema" (e a Fassbinder), "its attempt to pronounce judgments upon modern life and la condition humaine depends upon its formal organization" (Bordwell:207), a boundary-situation (de que a referida concentração sobre um espaço, existente em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, é um aspecto característico) propiciando um "formal center within which conventions of psychological realism can take over" (Bordwell:208) e assim concretizar-se o projecto de Fassbinder para o cinema. Este espaço surge como um palco, dizíamos - e as personagens movimentam-se nele, de facto, como se estivessem num palco de teatro. A luz também trabalha esta ideia, bem como a forma como os actores representam os seus papéis; e tudo isto surge na linha dos enquadramentos-dentro-de-enquadramentos do cinema de Sirk, o "stylized acting, unconventional lighting, sound and camera work" (Watson, cap. 4:14) trabalhando então a criação de um distanciamento, à maneira de Sirk, para gerar no espectador uma reacção, uma reflexão sobre os temas que os filmes de Fassbinder abordam, verificando-se em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant uma artificialidade "which underscores its main melodramatic themes: the interdependence of sex and power, love and suffering, pleasure and pain" (Babuscio, citado em Watson, cap. 6:6). Assim, o conceito de décor como um palco surge associado ao foco na boundary-situation e ao papel que Fassbinder reconhecia ao cinema; por outro lado, há aqui uma relação, como em Lágrimas e Suspiros, entre o décor e a psicologia das personagens: da mesma forma que Karin e Maria surgem enquadradas, na cena do jantar, com fundos que apelam para a sexualidade de cada uma (Maria surgindo rodeadas por flores de cores variadas, ao passo que Karin aparece com um fundo completamente negro, em que árvores e plantas surgem em relevo, mas destituídas de vida), a reprodução de Midas e Dionísio de Nicolas Poussin na parede do apartamento de Petra, particularmente presente em dois momentos-chave do filme (a discussão com Karin que antecede a sua partida, e a discussão entre Petra e a filha, a mãe e Sidonie no seu aniversário, com as personagens a surgirem enquadradas no plano que tem como fundo a parede onde se encontra a reprodução) funciona como uma espécie de "play-within-a-play that choreographs the themes of perversion, joy and/in suffering, ambivalence, unstable identity and dissimulation" (Kirby, citada em Watson: cap. 6:20). 

Associados ao espaço surgem ainda os elementos da mise-en-scène que referimos anteriormente, nomeadamente o staging teatral e a profundidade de campo. Bergman, que apresenta o espaço sem qualquer vestígio da estilização presente no filme de Fassbinder, difere também de Fassbinder no tratamento do conteúdo. Enquanto que no filme alemão predomina o longo take, frequentemente em plano americano e com uma profundidade de campo que nos dá igual acesso às acções de cada uma das personagens "em cena" (como acontece no teatro), Bergman - para quem a "possibilidade de se aproximar do rosto humano é a originalidade primeira e a qualidade distintiva do cinema" (Bergman, citado em Deleuze:139) - enquadra as suas personagens em grandes planos, com muita pouca profunidade de campo. arrancando "a imagem às coordenadas espácio-temporais para fazer surgir o afecto puro enquanto exprimido" (Deleuze:136), num gesto em que o movimento "deixa de ser translação para devir expressão (Deleuze:135), o grande plano do rosto de uma personagem conferindo-nos acesso directo à sua interioridade, na medida em que, segundo Balazs, a abstracção de um objecto em grande plano das coordenadas espácio-temporais não o arranca ao todo de que faz parte, mas antes o eleva ao estado de Entidade, o grande plano do rosto de uma personagem faz com que estejamos já não ante uma personagem cobarde mas diante da cobardia ela mesma. 

Toda a mise-en-scène de Bergman consiste então nesta relação íntima entre o staging teatral, o décor como prolongamento das personagens e o grande plano como forma de lidar com estes dois elementos de forma a propiciar acesso directo ao interior das suas protagonistas - e havendo assim a tentativa de apresentar o filme como algo essencialmente vivo através do acesso sem obstáculos a esta interioridade -, ao passo que Fassbinder lida com o staging teatral através da estilização da representação dos actores e outros elementos da mise-en-scène (luz, movimentação de câmara ou composição de plano pouco convencional, a denunciarem uma narração auto-consciente), o espaço surgindo como um prolongamento das personagens - na medida em que, como no caso de Lágrimas e Suspiros, a "closeness of this interior space, reinforced by a virtual webbing of dark, roughly finished wooden framing, railings, and open shelving (...) are used to suggest Petra's emotional entrapment" (Watson, cap.6:5) - mas sempre sujeito a um tratamento que nos lembra que estamos perante um filme e não perante a vida, embora muito no filme constitua uma aproximação a ela (os tempos mortos nos diálogos, os protagonistas sem objectivos claros...), ambos os filmes revelando, portanto, duas facetas deste regresso à teatralidade a que a linguagem cinematográfica estava associada no seu surgimento, acompanhado de uma aproximação à vida, e aos ritmos que lhe são inerentes, características que predominam no "art cinema" descrito por Bordwell e que constituíram um momento único no percurso do cinema rumo à modernidade. 


Referências bibliográficas 
  1. WATSON, Wallace Steadman - Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art, University Of Carolina Press, 1996* 
  2. BORDWELL, David - Narration in the Fiction Film, The University of Wisconsin Press, 1985 
  3. BERGMAN, Ingmar - Four Screenplays of Ingmar Bergman, Simon and Schuster, 1960 
  4. COMPANY, Juan Miguel - Ingmar Bergman, Ediciones Cátedra S.A., 1999 
  5. DELEUZE, Gilles - A Imagem-Movimento: Cinema 1, Assírio & Alvim, 2004 
  6. SCHERER, Maurice - Le Temps Modernes, 1948 

quarta-feira, junho 06, 2012

Em Busca do Cinema Perdido (3)
O Sacrifício — do fluxo temporal à figura cinematográfica



A figura cinematográfica: Tarkovsky, o haiku e a necessidade de vida no plano 
Uma chuva de Outono no escuro
Não, não foi em minha casa,
Foi da casa do vizinho que veio o barulho do guarda-chuva.
Haiku japonês 
A cena que podemos ver em cima pertence a O Sacrifício, de Andrei Tarkovsky e nela conseguimos perceber várias marcas do estilo cinematográfico do realizador soviético: o plano-sequência (só o plano da casa a arder dura mais de 6 minutos), uma encenação que privilegia a profundidade de campo (sendo que há linhas de fuga acentuadas e deslocações das personagens no eixo da profundidade), ângulos de captação das imagens ligeiramente picados (isto permite colar as personagens à sua realidade e condição física) e o travelling lateral, perpendicular à profundidade do ecrã).

Outra característica que aqui vemos bem presente é a presença dos quatro elementos, que existem em todos os filmes do realizador. Este é um dos poucos planos que os unem e colocam em confronto: a terra por onde caminham, as poças de água que há entre ela, o ar (representado com o fumo), e o fogo, que destrói a casa, sublinhamos desde já que a presença destes elementos é um testemunho do tempo real.

No caso do som, tudo foi pós-produzido. Mas aquilo que nós vemos (fogo, movimentos de personagens) é um testemunho do tempo real, e traduzem aquilo que Chion chama da “ideia do ritmo eterno do plano ao serviço da figura cinematográfica”.

Nesta cena há a materialização de uma dupla presença: a dos elementos humanos (sujeitos a toda a mise-en-scène do realizador, que são previstos e encenados) e os elementos naturais que escapam ao seu domínio e controlo (como o fogo que arde a casa) e que, testemunhando o tempo real, traduzem também no plano o irromper da vida (com toda a imprevisibilidade que isso implica).

Vemos também a flauta japonesa e a forma como o protagonista está vestido como elementos que remetem ao fascínio de Tarkovsky pelo Oriente. Esse fascínio passava sobretudo pela poesia tradicional japonesa, o haiku.

O fascínio do Tarkovsky pelos haikus como este residia na ideia que os japoneses traduzem a sua relação com o mundo em apenas três versos. Vemos essa simplicidade com as suas polaroids ou a cena que acabamos de ver.

Para além disso, Tarkovsky vê o haiku como “observação em estado puro”, um tipo de poesia sem alusões simbólicas mas apenas com o essencial do que é visto e sentido pelo poeta. Não se pretende impor nenhuma ideia, mas apenas uma imagem, uma situação muito simples, que subsiste pela sua sensualidade.

Isto permite-nos fazer a ponte com a figura cinematográfica, um conceito do cinema desenvolvido pelo Tarkovsky a partir dos anos 70 e que ele expõe no texto que analisamos, publicado posteriormente no seu livro Esculpir o Tempo. No seu ponto de vista, a figura cinematográfica é o elemento principal do cinema. Tarkovsky defende que ela não é bem uma coisa que existe no tempo, mas que antes assenta numa dominante: o ritmo, que exprime o escoar do tempo no interior do plano. Ritmo esse que pode ser ritmo natural da chuva a cair como os slow motions. E, tal como o haiku, a figura cinematográfica exprime vida. Como? Apelando a essas sensações elementares de que nos fala o Michel Chion (que se referem a toque, a comer, com o dormir…) e que conservam nos filmes de Tarkovsky a força / frescura que tinham na infância – um tema que é, aliás, central na sua obra.

Na infância tudo é mais imediato, não há o mediador do intelecto entre nós e as sensações e Tarkovsky evoca esse estado de puro fruir dos elementos que constituem o mundo. Tarkovsky identificava a verdade através desta simplicidade destas sensações imediatas que estão presentes em todos os seus filmes: desde o sol a bater no poço de água em A Infância de Ivan, à chuva que cai subitamente n’O Espelho à vela em Nostalgia, que está constantemente a apagar-se. E a verdade no cinema alcança-se quando o espectador perceciona aquilo que vê como se tratasse da sua própria experiência.

Para Tarkovsky a figura cinematográfica caracteriza-se pela sua integridade e indivisibilidade. Segundo ele, a figura só pode ser concebida enquanto um todo. No seu texto sobre a figura cinematográfica, o realizador ilustra esta ideia com Ginevra de Benci, de Leonardo da Vinci, e que nos interessa por dois factores: a faculdade do artista examinar o interior do objeto mantendo-se de fora e a particularidade desta figura ser apreendida na sua dualidade antagonista, uma vez que, segundo o realizador, ela nos atrai e repele ao mesmo tempo. Para ele, a figura cinematográfica deve ter esse poder, de nos deixar nessa imprecisão. Para ele, a verdadeira arte é aquela que suscita naquele a contempla sentimentos contraditórios.

A força do impacto inicial que exerce sobre nós a imagem dessa Ginevra reside precisamente na impossibilidade de preferir uma impressão instantânea a uma outra, quer dizer, a impossibilidade de conseguir um equilíbrio em relação à figura que estamos a contemplar. Tal como haiku, abre-se a possibilidade de uma relação com o infinito.

Posto isto: para Tarkovsky a realidade no cinema existe através da perceção das sensações imediatas (que o espectador assimila como se tratasse da sua própria experiências) e da perceção da duração do plano, do fluxo temporal.

Em que é que isto se traduz? Segundo o realizador, a perceção do tempo no plano passa pela sensação de que aquilo que vemos no interior do plano não é meramente visual, e que a presença da verdade no plano é qualquer coisa que permite que saiamos dele de encontro à vida. Há entre o plano e a vida esta relação, que acabamos de ver materializada no excerto. E a vida irrompe no interior do plano através da presença do fogo, da forma como o fumo se propaga…, mas ao mesmo tempo o espectador como que abandona o plano em direção a ela (vida) ao encarar aquilo que viu quase como a sua experiência pessoal.

O tempo no cinema: entre a constatação e a sugestão 
O cinema é a única experiência em que o tempo é dado como percepção 
Jean-Louis Schefer
Para tentar perceber de que forma é vivido o tempo no cinema, poderíamos invocar o caso da literatura, que estabelece com ele uma relação bastante diferente, como veremos, mas que pode ainda assim ser um bom ponto de partida: na literatura, como o tempo é dado muitas vezes por meio da afirmação: dizem-nos que algo aconteceu no dia anterior, "há dois anos", que "demorou uma tarde" a suceder, e a simples constatação disso mesmo basta para que aceitemos a autenticidade desses acontecimentos (da sua duração, ou do tempo que separa a narração do momento que ela se propõe narrar).

No cinema, a questão é diferente. Basta lembrarmo-nos do caso de The Red Shoes, de Michael Powell, que nos apresenta, perto do seu início, uma elipse que consiste em colocar uma legenda, sem que na imagem haja qualquer corte, indicando que de um momento para o outro passaram quarenta e cinco minutos: como os rostos e as posições corporais das personagens se mantêm, e nada no décor em que estão inseridas sofre qualquer tipo de alteração, é-nos difícil aceitar que, na realidade do filme, se passaram de facto os quarenta e cinco minutos de que fala a legenda. Podemos, portanto, dizer que no cinema se verifica esta insuficiência da afirmação, e toda a relação com o tempo tem de ser, como tal, repensada, pois o que importa não é tanto a constatação de que algo aconteceu, e de que demorou x ou y horas, mas fazer com que o espectador sinta que um dado acontecimento teve essa duração: como é que, no cinema, sugerimos as palavras "amanhã", "ontem", "há umas horas"?

Deleuze, no seu "Imagem-Tempo", constrói uma comparação entre aquilo que ele considera ser a imagem-movimento e a imagem-tempo direta, baseando-se na forma como é sentida a passagem do tempo nestes dois momentos do cinema: a imagem movimento associada ao cinema clássico, e a imagem-tempo direta associada ao cinema moderno, e que teve em Resnais, Visconti ou Tarkovsky alguns dos seus primeiros exemplos. Ora, diz-nos ele que a imagem-movimento só pode dar do tempo uma representação indireta, inferindo-o o espectador do espaço, tornando-o decorrente da ação e fazendo-o depender do movimento, ao passo que a imagem-tempo direta, por outro lado, subverte esta relação entre o tempo e o movimento: o tempo não depende já do movimento, mas o contrário - e em vez de termos uma representação indireta do tempo dada pelo movimento, temos uma anulação da relação de submissão do tempo ao movimento que liberta o tempo de qualquer encadeamento e o apresenta como anterior a qualquer ação: o cinema rompe então com as amarras da representação indireta do tempo quando concretiza esta ideia de que o tempo, além de independente do movimento, o precede necessariamente.

Esta ideia de anterioridade, de precedência do tempo relativamente ao movimento é trabalhada por Deleuze na desconstrução da evidência de que tudo no cinema é presente, "necessariamente presente". Lembra-nos ele de que não há presente sem influência do passado nem ânsia de um futuro, e que, como tal, cada presente coexiste então com um passado a que sucedeu e um futuro que forçosamente antecipa: cabe ao cinema apreender esse passado e esse futuro que se entreveem, que coexistem, na imagem presente, passar ao interior do filme o que está antes e depois dele para sair dessa cadeia de presentes que, segundo Godard, só existe nos maus filmes. No caso da cena d'O Sacrifício, de Tarkovsky, perto do final do filme, em que o protagonista se prepara para pegar fogo à casa, podemos verificar a presença de um passado (o momento em que vemos as cadeiras e o lençol) de convivência com esses objetos, de um futuro (a terceira guerra mundial, que, para ser evitada, reclama o sacrifício da casa da personagem principal; ou um futuro, mais imediato, que será o do incêndio que consumirá a casa, e que se adivinha no momento em que o lençol começa a arder) e de um presente (o momento em que ele se aproxima do lençol com a caixa de fósforos).

Assim, a imagem-tempo direto põe em prática a ideia, exposta pelos apologistas do cinema direto, de incluir, de apresentar o antes e o depois na imagem cinematográfica, no plano. Os travellings presentes na citada cena d'O Sacrifício, ou os travellings de Resnais em O Último Ano em Marienbad traduzem não um movimento físico da câmara no espaço, mas uma deslocação no tempo: em Marienbad estamos constantemente no passado, enquanto percorremos os corredores atapetados do palácio; no filme de Tarkovsky, como referimos, são indissociáveis as ideias de passado, presente e futuro, e a sua coexistência no plano. Tudo isto lembra a noção proustiana segundo a qual o espaço que as pessoas - e as coisas - ocupam no tempo é incrivelmente maior, mais importante, do que aquele que efetivamente ocupam no espaço. Em Proust viu a a literatura o primeiro gesto, a primeira tentativa, de se fixar o tempo no papel; no cinema esse gesto teve o seu análogo em Tarkovsky, para quem captar a verdade de uma personagem, de uma paisagem, era traduzi-las naquilo através do qual o cinema toca de mais perto a realidade: o registo do tempo. A busca cinematográfica, para o realizador russo, é assim uma busca por essas naturezas-mortas em movimento (expresssão de Michel Chion no texto, "A Casa Onde Chove"), tal como o protagonista de Em Busca do Tempo Perdido de Proust caminhava entre as suas memórias, busca em que o passado e o futuro estão presentes no plano, e materializam a transição, em Tarkovsky, entre a imagem-movimento e a imagem-tempo direta. "O tempo num plano deve escoar-se independentemente e, se se pode dizer, da sua própria vontade", dizia o realizador, e Deleuze esclarecia que era só "nesta condição que o plano ultrapassa a imagem-movimento, e a montagem, e a representação indireta do tempo, para comunicar ambos numa imagem-tempo direta, um determinando a forma ou antes a força do tempo na imagem, o outro as relações de tempo ou de força na sucessão das imagens (Deleuze: "A Imagem-Tempo").

A montagem e o fluxo temporal do plano em Tarkovsky

Toda a arte precisa de montagem, pois toda ela necessita de um elemento estrutural e de ligação das diferentes partes num só. Porém, para Andrei Tarkovsky a especificidade constituinte da figura cinematográfica está no interior do plano e não na montagem como é comum se afirmar. Essa especificidade cria-se na rodagem apenas, não se constrói na montagem. O papel desta no cinema é de outra ordem: unir planos repletos de tempo.

Portanto, Tarkovsky liberta a montagem de um conjunto de funções que o chamado “cinema de montagem” lhe propôs, encarando esta como Mostragem, segundo o conceito de Robert Lapoujade.

Tarkovsky opõe-se ao “cinema de montagem” no sentido em que defende que a figura está precisamente na ausência de linguagem ou de símbolos, codificações essas que esse “cinema de montagem” impõe. Tarkovsky afirma que o talento de um realizador pode ser avaliado num só plano, na maneira em que ele cria o fluxo temporal dentro desse mesmo plano.

A montagem, portanto, é a variante ideal da colagem dos planos. De entre as infinitas possibilidades de estruturação do filme, é a que melhor conecta o fluxo temporal existente em cada plano. Assim o trabalho da montagem é de encontrar essa variante, como se o filme já estivesse montado e fosse o nosso trabalho descobrir essa variante ideal, como se o material falasse e dissesse como deve ser organizado.

Tarkovsky ilustra esta noção com o processo de montagem de O Espelho, onde havia várias possibilidades de montagem final e não se conseguia encontrar a ideal, como se o filme num todo não funcionasse, as cenas não se relacionavam. Gradualmente encontraram essa forma, o material ganhou vida e o filme nasceu. Para tal é preciso sentir o material de encontrar a melhor forma que as imagens se relacionam.

Este caso exemplifica a ideia de montagem como reveladora do sentido implícito do plano, sentido esse que vem da rodagem. O Espelho tem 200 planos, um filme da mesma duração teria normalmente 500. Portanto não é a dimensão dos planos que determina a duração mas sim o grau de tensão temporal que segue o seu curso em cada um.

Assim, a colagem não determina o ritmo, é no melhor dos casos um índice de estilo, se o realizador souber em cada plano criar um fluxo temporal correto. É o tempo do plano que determina a montagem, é o seu fluxo temporal que dita se pode ser conectado com o seguinte. Tarkovsky afirma mesmo que o tempo real não se encaixa com o tempo convencional da mesma forma que não se pode encaixar tubos de canalização com diâmetros diferentes devido à pressão de tempo em cada plano. Ou seja, a montagem é um meio de juntar planos tendo em conta a pressão de tempo de cada um. Isso determina o ritmo do filme.

A perceção do tempo dentro do plano torna o filme algo mais, para além das intenções do autor, vive a sua própria vida. Muta-se e transforma-se na sua relação com o espectador.

Por esta razão Tarkovsky opõe-se ao “cinema de montagem” que dá ao espectador adivinhas e símbolos para decifrar e impõe sobre este a sua atitude perante os acontecimentos. Aqui já não existe essa relação anteriormente descrita de mutação no contacto entre o filme e o espectador e o ritmo é uma mera sequência métrica de pedaços.

Por exemplo, na sequência de Logo Tcgoudskoie em Alexandre Nevski, Eisenstein procura transmitir o dinamismo interior do combate graças à sucessão de planos curtos (por vezes excessivamente curtos). No entanto isto cria uma sensação de artificialismo por que os planos estão desprovidos de autenticidade temporal: são estáticos e anémicos. É evidente uma contradição entre o interior do plano que não estava pensado temporalmente com as colagens mecânicas que não tiveram em conta esses planos.

Portanto, não havendo um cuidado de criação de fluxo temporal no plano, não são mecanismos de montagem que irão dar à sequência um fluir do tempo correto.

Esta procura do fluir do tempo é criada de forma orgânica e correspondente à sensação de vida do realizador. O ritmo do plano é como a palavra adequada na literatura, essa palavra obstrui o ritmo do texto da mesma forma que a má relação entre os planos.

Pressupondo que um realizador domina estas noções, ele poderá ou não criar um contacto com o espectador, daí a noção de “o meu público” para cada realizador. Ou seja, um autor tem de encontrar uma forma de montagem que é sua e única o que torna o contacto com o público específico. Se a montagem é preparada para um desenho rítmico específico, pode-se colar pedaços desiguais do ponto de vista temporal (o que conduziria supostamente a uma perda de ritmo). Ou seja, Tarkovsky diz que imaginando a tensão temporal de planos como um ribeiro, um rio ou uma queda de água, pode-se criar um desenho rítmico único que se transforma na perceção interna do autor.

Isto é provado pelo facto que autores como Bergman, Bresson ou Fellini criam desenhos rítmicos e estilos de montagem únicos, isto porque contradizem a regra do fluxo temporal, sem ao mesmo tempo ser “cinema de montagem”.

Aqui a montagem é então o poder de criar um desenho rítmico único, que se tornará uma forma de manifestação na perceção do tempo do autor, a essência da figura cinematográfica consiste nisso mesmo, em passar por uma observação a perceção da realidade do autor.

Entende-se esta noção de Tarkovsky da montagem não como uma perícia a dominar mas como uma forma de expressão pessoal. Para ele é saber o que se quer dizer através da poética do cinema, pois tudo o resto pode-se aprender, exceto refletir. Daí a impossibilidade de se aprender a ser artista ou de se assimilar regras de montagem: cada cineasta descobre-as por si com novas.

Por isso esta corrente de pensamento enquadra-se no equivalente do modernismo no cinema.

Fernando Pessoa, em O livro do Desassossego diz que "A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras, poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos". Este defendia que se entendermos a arte como um conjunto de regras a aprender podemos efetivamente chamar o grupo de indivíduos que as dominam de artistas, mas quando se passou a definir arte como expressão de sentimentos (o modernismo do início do séc. XX) então ninguém pode ser destacado como artista. Encontramos esta noção em Tarkovsky, sendo que ele não defende esta arte como um conjunto de regras de montagem, movendo o eixo para a expressão pessoal, e para toda a ambiguidade de definição de artista que demarca o modernismo, ele corrobora esta impossibilidade de Pessoa e constituiu um marco desta corrente artística no cinema.

Este eixo de expressão pessoal na montagem decorre de uma noção de fluxo temporal que o plano precisa. Esta correlação nos planos que constrói a autenticidade da obra.

Congelar o tempo no plano de Tarkovsky

Tarkovsky, tal como Proust, tentou eternizar o “tempo perdido”.

É esta eternização do tempo perdido a que Tarkovsky chamou de figura cinematográfica. A figura cinematográfica de Tarkovsky só existe no tempo. O seu elemento dominante é o “ritmo que o passar do tempo exprime no interior do plano”, ritmo com várias velocidades, a agitação microtemporal duma chuva com deslocações vastas e lentas expressas através da câmara.

Para Tarkovsky, contrariamente a Eisenstein onde tempo passa graças à montagem de cada plano separadamente, no qual o conteúdo interior dos planos não regista qualquer processo temporal, apresenta apenas colagens puramente mecânicas; o tempo passa no filme não graças às colagens, mas apesar delas, a montagem serve apenas para organizar a estrutura do filme, é apenas “uma forma de juntar os pedaços tendo em consideração a pressão do tempo que está presente em cada um deles”, o que o leva a definir esta figura cinematográfica como “escultura que usa o tempo como material”.

Assim, a “figura cinematográfica” não é assimilável a qualquer elemento de natureza técnica, plano, montagem, imagem – “um verdadeiro filme, com o tempo corretamente fixado na película, sai dos limites do plano e vive no tempo como o tempo vive em si, o artista vive a verdade através da figura da realidade.”

A dominante soberana da figura cinematográfica é o ritmo que exprime a passagem do tempo no interior do plano, assim sendo, quando Tarkovsky recorre à utilização de slow motion, quando em O Espelho acompanha aquele menino de costas que corre por entre os lençóis estendidos, a noção de tempo é elevada de forma a envolver o espectador na cena.

Sentimos que aquele momento foi congelado (eternizado). Ao filmar a cena em câmara lenta não se quer necessariamente sublinhar um determinado pensamento. Quer-se apenas exprimir o estado de alma (mood) daquela sequência sem recorrer ao acting dos atores, isto se a cena tiver interação de personagens. Quando os aspectos técnicos não se sobrepõem à naturalidade do que é filmado, então pode dizer-se que o propósito da sequência foi conseguido e de que o tempo existe em si.

A câmara exageradamente lenta de Lars Von Trier, não a 90 frames por segundo mas a 1000 frames por segundo, tenta aproximar-se de Tarkovsky, na medida em que também ele pretende expressar emoções que não são exteriorizáveis através do diálogo ou de determinados movimentos de câmara. Há diversos exemplos onde Trier cita Tarkovsky, por exemplo em Melancolia e Anticristo onde encontramos objectos a cair em slow-motion, objectos estes que vimos anteriormente em O Espelho, ou a casa a arder no campo que é interpretado como o fim do mundo em O Sacrifício e que pode ser comparado ao fim do mundo apresentado em Melancolia com os seus movimentos de planetas em câmara lenta ao som de música clássica – sequência esta também análoga à de Solaris de Tarkovsky.

Estas sequências fílmicas, tanto em Tarkovsky como em Trier, podem aproximar-se da pintura e cada plano pode funcionar como contemplação de um tempo distinto. Por exemplo, em Tarkovsky, a encenação em profundidade (cenários em profundidade destacados na composição da imagem por linhas de fuga acentuadas, deslocações das personagens no eixo da profundidade, comparações entre o primeiro plano e o plano de fundo) é uma constante, do primeiro ao seu último filme. Relembremos em Stalker, o plano dos três homens vistos de costas que caminham indefinidamente com um ponto de fuga algures no horizonte. Embora os temas sejam de outros contextos impossível não pensarmos em Turner com o seu sempre presente “ponto de fuga” em cada quadro, e viajando para o final do século XIX, com Casper Friedrich e os seus Stages of Life in The Passages of Time.

Em Trier, mais recentemente em Melancolia, cada plano dos dez minutos iniciais, atira-nos para quadros do Hiperrealismo ou mesmo de alguns Surrealistas, por exemplo, as Gares de Delvaux. Aqui há a presença de uma atmosfera mais fria, de um mood gelado, que suspende o tempo.

Trier provavelmente encontrou o tempo mas sabemos que Tarkovsky tem razão na sua busca infindável. Não será por acaso que ele escolhe como título de um dos seus livros, Esculpir o Tempo.

Trabalho de recensão escrita sobre os textos "De la figure cinematographique", de Andrei Tarkovsky (disponível aqui), e "Sur l'esthetique de Tarkovsky", de Michel Chion (disponível aqui), realizado por Flávio Gonçalves, Isabel Pestana, Rúben Gonçalves e Rui Esperança no âmbito da unidade curricular Estética no Cinema II, lecionada por José Bogalheiro, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

sábado, maio 28, 2011

A dúvida e a incerteza em Malick: uma observação

Com o mês de Terrence Malick n'O Sétimo Continente a chegar ao fim publico hoje uma reflexão pessoal sobre a sua obra, escrita por Rúben Gonçalves. Um muito obrigado por esta colaboração.
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Power dwells apart in its tranquility,
Remote, serene and inaccessible,
And this the naked countenance of earth
On which I gaze, even these primeval mountains,
Teach the adverting mind.

Percy Bysshe Shelley
Conheci Malick numa altura em que não fazia ideia do que era o cinema. Já se passaram anos desde que vi pela primeira vez “The New World”, e, embora me seja difícil descrever a impressão que o filme me suscitou logo depois dos créditos finais, tenho a certeza de a experimentar, renovada, sempre que o revejo. Não me preocupo muito em tentar precisar no que consiste essa impressão, mas o hábito – e a visualização de obras de semelhante calibre – mostrou-me aos poucos que é ela o meu único critério para avaliar um filme, ou o que dele em mim ecoa: esses momentos imediatamente a seguir à última imagem e ao último som, em que me sinto como que renascido, ridiculamente omnipotente e desperto – a grandeza deixa-me sempre assim. E, com a suspeita de me ter sido revelada uma qualquer verdade que, embora oculta até aí, de alguma forma sempre existiu em mim – como todas as verdades merecedoras do nosso esforço de as descobrirmos –, desligo a televisão (só o “Tree of Life” tive oportunidade de ver em grande ecrã) e despeço-me da vida, pois que é ela senão esses breves contactos com a beleza?

Ora, não se pode falar deste realizador sem se mencionar aquilo que parece ser o tema de onde partem todos os seus filmes, e sobre o qual cada um oferece novas perspectivas: a relação que o homem – o soldado solitário, o forasteiro a descobrir o que aparenta ser o paraíso perdido, o amante em fuga – estabelece com a natureza. As suas personagens são constantemente atormentadas por um desejo de evasão, uma necessidade de se refugiarem daquilo que provoca a manifestação das suas facetas malignas, a busca pela redenção através da familiarização com a natureza, com as origens, que coincide, por vezes, com a promessa de um novo começo. A catarse – ou a possibilidade dela – reside em Malick na paisagem, no confronto com os elementos que universalmente constituem todos os seres, as leis que tudo regem, confronto esse que resulta, não raramente, na negação das ilusões que as personagens vinham acalentando e consequente constatação de que a verdade é afinal aquilo de que eles procuravam fugir. Tal acontece em “Days Of Heaven”, em que o retiro da cidade, da civilização – embora não por completo, como vemos, por exemplo, em “Badlands” – não mitiga os impulsos homicidas do protagonista vivido por Richard Gere, envolvendo-o, em vez disso, numa intriga de mentiras que culmina em morte, aquilo que precisamente desencadeara a sua partida para o campo, ou em “The New World”, em que a condição como que virginal das terras onde chegam os marinheiros parece encerrar augúrios de felicidade e abundância, que a acção do homem, por si só, se apressa contudo em contrariar, a natureza surgindo assim como um estado primitivo – a mãe de todas as coisas – que a presença do homem invariavelmente perturba, ou, antes, que reflecte aquilo de que ela mesma se compõe, pois, admitindo, como em “The Thin Red Line”, a guerra como parte integrante dos fenómenos ocorridos na natureza, a aceitando-a como indispensável para manter a ordem estabelecida das coisas, onde a luta pela sobrevivência ocupa um dos primeiros lugares – senão mesmo o primeiro, juntamente com a conservação da espécie – e a morte surge como condição necessária para a vida, para a regeneração, rejeita-se a concepção de Rousseau segundo a qual a bondade, inerente à condição humana, é corrompida pela vida em sociedade. O homem aparece, então, como manifestação última, como voz, da natureza, e a sua busca pela recuperação dos laços que a ela o unem revela-lhe uma certeza apenas – a existência inegável do caos –, a aceitação dela revelando-se a maior aprendizagem que as personagens podem colher dessa busca.

A propósito de Malick utilizam-se muitas vezes os adjectivos “lírico” ou “poético”, e se tal se deve, sem dúvida, à forma particular com que ele filma a paisagem, tal descrição decorrerá também do recurso à metáfora como figura de estilo por excelência na construção do sentido. Lembremo-nos, por exemplo, do momento em que um dinossauro ataca outro, já caído, mas que não chega a matar, em “The Tree of Life”, e como esse gesto materializa a relação de poder e subordinação que o pai estabelece com os seus três filhos; ou os planos dos animais nas searas, em “Days Of Heaven”, como lembrança de que a recolha do trigo para garantir o alimento do homem representa igualmente a destruição de um habitat.

A metáfora está presente, de resto, nos muitos voice-overs que acompanham as suas obras, e que, nunca parecendo pleonásticos, acrescentam outras camadas àquilo que vemos, conferindo uma outra ambiência ao filme através do carácter quase sinfónico que reveste estes diálogos que as personagens, deslocadas do universo material, vão mantendo entre si, nestas momentâneas manifestações de consciência num plano dir-se-ia abstracto, o do pensamento.

E, claro, o amor. Poder-se-ia dizer que todas as histórias são histórias de amor, na medida em que testemunham essa entrega e esforço de perseverança que estão sempre implicadas na sua concepção, e em Malick não é diferente. Seria legítimo, porém, afirmar que é o amor aquilo que motiva as personagens nas suas acções? Provavelmente não será assim tão linear, mas, observando de perto, não é difícil perceber qual o lugar que tal sentimento ocupa na vida dos seus protagonistas – é o amor, afinal, que impele a personagem do Brad Pitt em “The Tree of Life” a submeter os filhos a uma educação tão rígida e intransigente, pois será isso que os conduzirá, a seu ver, ao caminho do bem (ele personificando, juntamente com a figura materna vivida por Jessica Chastain, essa dualidade entre a via da natureza e a via da graça que está na base da história); é o amor, também, que permite ao soldado interpretado por Ben Chaplin em “The Thin Red Line” enfrentar os pesadelos e os horrores da guerra, vivido sob a forma de uma correspondência que, antevendo um reencontro no futuro, torna suportável um presente de distância; e que é senão o amor que possibilita à Pocahontas do “The New World” enfrentar o desconhecido, pondo em causa a protecção que lhe garante a sua tribo, e alcançar depois a maturidade emocional com a experiência da maternidade? Em “Badlands”, no meio de toda a alienação em que as personagens principais gradualmente mergulham, parece, de igual forma, ser o amor que os une a sua única certeza.

Enfim, como se posiciona Malick em relação a tudo isto? Antes de tentar impor ideologias, questiona-se. Contempla. Sabe que o julgamento é inimigo de todo o retrato do ser humano que se queira fidedigno e, por isso, observa. Não pode fazer mais do que exteriorizar as suas dúvidas e, assim, tentar dissipá-las para si; quanto a nós, é através da sua dúvidas que nos permitimos duvidar, e esse será porventura o primeiro passo do caminho para o qual a sua filmografia nos aponta, um caminho em que a dúvida é condição indispensável e a ausência de certezas absolutas uma realidade inevitável – e não é esse, em suma, o caminho da vida?

Rúben Gonçalves