domingo, agosto 07, 2011

O cinema foi a sua causa

Autor singular do clássico americano, Nicholas Ray que, se fosse vivo, comemoraria [hoje] o seu 100º aniversário, é hoje uma lenda dentro e fora de Hollywood. Este artigo foi publicado originalmente ontem no dia 6 de Agosto de 2011, no Diário de Notícias.
"No fim de cada visão de Johnny Guitar", escreveu no livro Os Filmes da Minha Vida o divulgador de cinema João Bénard da Costa, “só me apetece dizer aos projeccionistas: Keep the film spinning” (que é como quem diz: “deixa o filme continuar”). O poder do cinema de Nicholas Ray era este: o de deslumbrar e apaixonar o público pelo seu trabalho, que sem dúvida foi único no panorama do cinema clássico norte-americano. 

Nascido como Raymond Nicholas Kienzle na pequena cidade de Galesville (estado de Wisconsin), a sua forma de olhar e gravar o mundo deve-se, em larga medida, aos estudos realizados na universidade, onde estudou ao lado de um dos principais rostos da arquitectura orgânica: Francis Lloyd Wright. E, de facto, o sentido de espaço dramático é evidente em muitos dos filmes de Nicholas Ray. Após ter desenvolvido, nos film noir, as relações espaciais, é particularmente em Fúria de Viver que exibe uma nova estética sobre as linhas horizontais, utilizando pela primeira vez o formato CinemaScope (sistema que permitia uma filmagem e projecção com formato alargado). Além disso, o realizador geriu uma tensão dramática peculiar, dando ao espectador uma sensação de claustrofobia quando a acção decorria em interiores.

Um pouco mais tarde, Ray trabalhou em rádio e, em Nova Iorque, foi encenador e lançou, em 1946, Beggar’s Holiday, o seu único musical na Broadway. Apenas um ano depois o produtor e actor John Houseman convida-o a dirigir o seu primeiro filme, uma adaptação do livro Thieves Like Us. Lançado em 1948, Os Filhos da Noite marcaria a primeira fase do seu trabalho no cinema, no estúdio da RKO, que perdura até 1953. Filme sedutoramente original e noir sobre um casal em fuga, este foi, provavelmente, a única produção que criou como realmente desejava, apresentando o gosto do cineasta em filmar personagens outsiders (a sua própria vida pessoal foi conturbada, tendo-se divorciado quatro vezes). Os heróis deste e dos seus filmes seguintes caracterizar-se-iam, assim, por serem solitários (Vienna em Johnny Guitar), se encontrarem à margem da sociedade (Jesus em O Rei dos Reis), e por contestarem a sociedade normativa em que vivem para, mais tarde, se tentar reintegrar, o que explica a sua personalidade tão vulnerável quanto violenta (Jim em Fúria de Viver).

Após ter realizado vários film-noir, de O Crime Não Recompensa (1949) a Cega Paixão (1952), e de ter assinado os filmes de acção Inferno nas Alturas (1951, o seu primeiro a cores) e Idílio Selvagem (1952), inicia uma segunda, mais independente e frutífera fase da sua carreira com o emblemático Johnny Guitar (1954). Aqui, Nicholas Ray subverte a lógica tradicional do western, tanto pela sua estilização como por ter alterado o paradigma do género. Invulgar e político, Johnny Guitar, que nos mostra a rivalidade de duas mulheres, tornou-se um clássico assumidamente feminista. Como João Bénard da Costa explica no livro Os Filmes da Minha Vida, “foi a primeira vez num western que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; é um filme cheio de luz e de calor […], em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitectónica” e utilizada “em toda a sua potencialidade”. Curiosamente, a crítica de então apontou no filme um aparente “mau gosto.”

Como se verá no ano seguinte, em 1955, Fúria de Viver, interpretado por James Dean (que viria a morrer pouco depois) e Sal Mineo, também exacerba o uso metafórico e expressionista da cor por parte de Nicholas Ray. Pensado originalmente em preto e branco, a mudança para a cor fez que as personagens pudessem ser caracterizadas com aquilo que vestiam. A personagem de Sal Mineo calçava uma meia preta e uma vermelha (o que transmitia a sua confusão) e a de James Dean ficou conhecida pelo seu casaco escarlate. Fúria de Viver, que estreou um mês depois da morte do seu protagonista, tornou-se rapidamente num fenómeno cultural que modificaria invariavelmente o conceito de adolescente americano, apaixonando particularmente o público juvenil um pouco por todo o mundo (na antologia Poemas com Cinema, o crítico e poeta Pedro Mexia escreveria: Duas infâncias passaram / por mim: uma, no planetário, / com o espanto dos astros. / Outra, com Sal Mineo, / que no seu mundo ansioso / vislumbrou a eternidade.) 

Após uma terceira fase de filmes com tom épico (entre 1961 e 63), entre os quais se destacam O Rei dos Reis ou 55 Dias em Pequim, Ray acabaria por abandonar Hollywood, investindo em projectos independentes e experimentais na Europa e, depois, em Nova Iorque.

O seu último filme foi um documentário que co-realizou com Wim Wenders, Nick’s Movie – Um Acto de Amor. Durante a rodagem, viria a morrer, vítima de um cancro, no dia 16 de Junho de 1976. “Veio a ser um filme sobre a realização de filmes, a meio caminho entre todos os géneros”, afirmou Wenders, “e, em virtude do rápido desaparecimento das forças de Nick, um filme sobre ‘um homem que se quer reencontrar antes de morrer, reencontrar o respeito por si próprio’ como Nick diz no filme”.

No seu centenário, o público contemporâneo parece não ter perdido Nicholas Ray, muito menos o respeito pelo seu legado (o Festival de Veneza comemorará o aniversário e exibirá em exclusivo a versão restaurada de We Can’t Go Home Again). Afinal, foi o próprio Jean-Luc Godard que disse que “o cinema é Nicholas Ray” e, “se não tivesse existido” ele “tê-lo-ia inventado”.

Os Filhos da Noite (1949)
They Live by Night (no original) é a primeira longa-metragem do cineasta Nicholas Ray, e que se apresenta como uma mistura de film-noir com romance improvável. Acompanhando Bowie (Farley Granger), recluso envolvido numa série de assaltos, e Keechie (Cathy O’Donnel), Nicholas Ray filma, com atenção, as ilusões que movem o jovem casal em fuga, apesar de dar ao espectador a certeza de que o destino de ambos está condenado (à semelhança de Só Vivemos Uma Vez, de Fritz Lang, ou de Noivos Sangrentos, de Terrence Malick).

Johnny Guitar (1954)
Menosprezado pela crítica da altura, Nicholas Ray filma a chegada de Johnny Logan (Michael Curtiz) a uma casa de jogo detida por Vienna (Joan Crawford), uma mulher de forte temperamento e que se opõe às hostilidades da povoação e, sobretudo, à inveja de Emma. Barroco, sofisticado e trágico, impôs-se rapidamente como um clássico absoluto. Em Portugal, é também conhecido por ser o filme da vida do divulgador João Bénard da Costa, que afirmou ter o “mais belo diálogo da história do cinema”.

Fúria de Viver (1955)
No ano seguinte a Johnny Guitar, Nicholas Ray realizaria outra obra-prima: Rebel without a Cause, que eterniza a última participação de James Dean. Preenchido com um sentido de mise en scène absolutamente inovador (devido ao desejo de exploração da “novidade” do CinemaScope), o cineasta enquadra com originalidade a tensão familiar e do interior da sua personagem. É reconhecido como o paradigma das produções cinematográficas nos EUA para adolescentes (que, hoje em dia, proliferam com qualidade drasticamente menor).

O Rei dos Reis (1961)
Filme visual e narrativamente dotado de uma espectacularidade própria das produções épicas, King of Kings acompanha a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo (interpretado por Jeffrey Hunter). Narrado pelo realizador Orson Welles, este foi a primeira obra com grande orçamento a exibir uma representação da cara de Jesus (outros filmes, como Ben-Hur, preferiam filmar as mãos). Com grande fidelidade histórica (utilizando grandes meios de produção), Nicholas Ray termina o filme com uma imagem de grande impacto simbólico e dramático.

55 Dias em Pequim (1963)
Filme épico de Hollywood sobre a Revolta dos Boxers anti-ocidental ocorrido na China no princípio do século XX protagonizado por Charlon Heston (que representa um militar norte-americano), Nicholas Ray vê-se impelido a dirigir aqui uma típica super-produção (assinada por Samuel Bronston) com milhares de figurantes, tendo abandonado o estúdio por se ter sentido mal. O filme foi concluído por outros dois co-realizadores e Ray nunca mais foi convidado a realizar algo daquela envergadura em Hollywood.

1 comentário:

  1. Bela prosa com um reparo apenas. Não se deu o merecido destaque a um dos mais (o mais?) extraordinários e pessoais filmes de Ray: o assombroso e obsessivo In A Lonely Place.

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