Mostrar mensagens com a etiqueta Nicholas Ray. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Nicholas Ray. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, agosto 31, 2012

Morangos com Açúcar – que filme???


Se havia dúvidas sobre que título recente poderia concorrer ao rótulo de pior filme português alguma vez realizado eis que Hugo de Sousa nos faz o favor de as tirar com a sua nova longa-metragem (o título Morangos com Açúcar é acompanhado por uma curiosa designação: O Filme, como se ele próprio nem acreditasse nisso)... Um acontecimento que é, portanto, do ponto de vista histórico, quase revolucionário! 

Recuso, contudo, tomar este espetáculo de miséria humana como uma bad joke, uma brincadeira sobre a qual não podemos fazer mais nada senão soltar umas gargalhadas mais ou menos previsíveis. Tal como recuso aceitar que objetos insuportáveis como este em particular não sejam alvo de uma atenção pelos profissionais que estão destinados a pensar (e escrever sobre) qualquer tipo de cinema. Considero, aliás, vergonhoso que tenha lido (visto ou ouvido) apenas uma ou duas vozes sobre o que é e o que significa Morangos com Açúcar – O Filme, como se, por ser o objeto que é (a extensão de uma telenovela dedicada a pré-adolescentes e adolescentes), desmerecesse por isso qualquer reflexão. Pois então: nada de mais errado! Pensar a cultura é também pensar nos múltiplos vértices que a constituem – e, sim, mesmo aqueles que nos parecem atacá-la diretamente. A função de um crítico de cinema deve ser também essa: situar-nos, com um determinado objeto, num certo panorama e contexto social, político e estético. E não, como aconteceu com Morangos, pura e simplesmente ignorar a sua existência. 

Não será difícil prever que estamos perante o potencial maior fenómeno de bilheteiras (no que respeita a uma produção nacional) que conheceremos nos últimos tempos. Quando, há um ano, houve grandes regozijos porque Sangue do meu Sangue teria sido o filme português mais visto de 2011 esquecemo-nos de que estávamos a falar, praticamente, de... 21 mil espectadores. Apesar de reconhecer que é um número que não significa, a longo prazo, absolutamente nada, é impossível não pensarmos num público que reconhece, ainda, um monstro no que diz respeito ao cinema feito em Portugal. Um monstro sobre o qual tem medo, sobre o qual aponta o dedo tomando como argumentos (mais do que esgotados) o “péssimo” modo de financiamento do ICA, o suposto hermetismo das obras que estreiam todos os anos e, por conseguinte, o modo como impera a crença de que os filmes portugueses não se cansam de ser chatos, aborrecidos e – importa o mais importante – “parados”... 

Não se trata, agora, de defender ou lutar contra esse monstro – o “cinema português” –, mas de reconhecer a existência de uma porção do público (demasiado, demasiado grande) que se envergonha (!) da produção nacional pelos motivos apontados. Será fácil perguntarmos a alguém, sem relação com o cinema, se tem algum conhecimento sobre o cinema feito em Portugal. E não nos admirará se o nome de Manoel de Oliveira vier à baila (porque, enfim, é o “realizador mais velho do mundo”) e achar que o seu modo de fazer cinema se resume em ligar a câmara apoiada num tripé e ir passear para beber um café... 

Morangos com Açúcar – O Filme vem, então, contra esse modo “chato” de filmar, apresentando-se mesmo como o resultado de um dos mais populares produtos de ficção produzidos sob a chancela da TVI (como se, aliás, o facto de ser popular fosse confirmar a sua inegável qualidade). A verdade é que não há ninguém suficientemente ingénuo (acredito eu) que se empenhe em legitimar as suas qualidades, como também é certo que são mais os detratores cujo passatempo passa por desacreditar um filme que não viram nem tencionam ver – embora, enfim, seja essa a sua profissão (digo isto sem querer regressar ao tema dos jornalistas e críticos de cinema em Portugal). 

E, de facto, é na muito fácil "falar mal" quando falamos de um objeto que surge como o culminar de anos de banalidade. Mais fácil ainda me parece esquecê-lo, exatamente pela sua condição de "filme mau". No entanto, importa perceber o que significa vermos este autodenominado filme, que na verdade nos parece: 

1. Uma coleção de figuras mais ou menos conhecidas da série televisiva que surgem só para marcarem uma presença. “Ali está o Pipo! E ali o Zé Milho!” 

2. Uma galeria de trabalhos performativos absolutamente medíocres e superficiais. Sente-se, nalguns, uma espécie de tensão entre aquilo que são / podem ser e aquilo são obrigados a fazer. É, por exemplo, o caso da atriz Sara Matos (que interpreta o papel da protagonista). 

3. Uma reunião de arquétipos plásticos sem alma. São personagens vazias de contradições e de humanidade, que se circunscrevem ao trabalho de saltar, dançar e cantar e às funções de “amiga que precisa de tempo para a relação”, de “miúdo que tem um fraquinho pela instrutora”, de “mulher independente que é difícil com os homens”, de “guitarrista dedicado ao trabalho”... 

4. Uma sucessão de cenas sem qualquer sentido de progressão dramática. São poucas as cenas que parecem acrescentar algo ao primeiro arco narrativo. Em vez disso, preferem repetir momentos anteriores. 

5. Uma sequência de cenas que, sem qualquer entendimento de pudor, têm apenas uma função: servir de breves spots publicitários. Não, não estamos a falar de product placement, mas de algo de bárbaro: uma cena em que, apenas, vemos duas amigas a trocar o Cornetto da Olá que estão felizes a comer, ou outra cena em que um rapaz, para impressionar a rapariga que gosta, se pulveriza com determinação com o desodorizante Axe. Para além destes momentos, surgem personalidades transformadas elas mesmas em “marcas”. É o caso do cantor David Carreira, que surge pela primeira vez a ouvir, no seu automóvel, nada mais que o seu single de estreia, Esta Noite

6. Um filme que não dá lugar para a verdade sobre as emoções. Em vez disso, sustenta-se num inventário de lugares-comuns formais. Um exemplo: a protagonista que pensa na relação amorosa olhando, sofredora, para o pôr-do-sol no mar, acompanhada pelo exibicionismo de travellings em grua, que se aproximam do seu rosto. Serão estes, afinal, os elementos “cinematográficos” que faltam à produção televisiva (portanto: apressada) que “O Filme” prometia?? 

7. Um combinado de músicas populares com letras abominavelmente mal-escritas – o que não importaria muito se a letra ou o ritmo não quisessem ter sentido dramático (mas querem ter) e se o filme não fosse um compêndio de momentos musicais. 

8. Uma rejeição absoluta do realismo e da verosimilhança – não devida ao seu género (o musical), mas ao escapismo de feira que a montagem de videoclip quer concretizar (não nos admira os slow motion nos momentos mais intensos ou, pelo contrário, o fast motion quando se quer demonstrar a passagem do tempo). Para além do mais, os menos atentos aperceber-se-ão da péssima montagem de som que muitas vezes não está sincronizada com a imagem, fortalecendo a ideia de artifício (não intencionado). E, também, de um pensamento descuidado sobre a luz (de repente, num quarto escuro, sentimos a presença alarmante de um projetor que dá luz, como uma assistência divina, ao rosto do ator que fala). De facto, o trabalho sobre a transparência no cinema clássico de Hollywood parece aqui uma miragem. Por isso, este Morangos com Açúcar é, como se não bastasse, um trabalho com algumas incompetências técnicas.

9. Um esquecimento completo da memória do cinema, como se "O Filme" fosse o início de uma nova era para o cinema e se reduzisse a (querer) emular os telefilmes do Disney Channel. É bom relembrar que Morangos trabalha uma visão sobre a juventude que está longe (longe, longe, longe...) da necessidade de falar sobre a idade que se fazia sentir nos filmes de Nicholas Ray (como Os Filhos da Noite ou Fúria de Viver) ou, mais admiravelmente, de Elia Kazan (lembremo-nos de A Leste do Paraíso ou de Esplendor na Relva). 

Eis onde chegamos: uma corrida de adolescentes (ou de adultos a fazer de) estúpidos, sinal do deslumbramento de mensagens publicitárias corretamente incorretas (alguém falou na publicidade da Sumol? ou na das inúmeras operadoras de telemóveis?). Sinal, também, que os nossos governantes não estão minimamente interessados em refletir sobre o degredo, moral e artístico, que sufoca a televisão portuguesa (e que, por sua vez, ocupa, andando de bicos de pés, as salas de cinema). Em vez disso, as distrações estão hoje desviadas para um possível encerramento da RTP2 (!!!!). 

Morangos com Açúcar – O Filme representa isso: o total domínio da telenovela no registo dramático e estético nas produções televisivas portuguesas e, por outro lado, o absoluto esquecimento do governo em pensar o vírus que tem infestado aquilo a que chamamos de “serviço público”. Digam-me agora que não, não importa falar, nem ver, nem pensar os Morangos...

terça-feira, setembro 06, 2011

Queer cinema (6/30): O autor fatale que moveu Espanha

Hoje com 61 anos, o trabalho de Pedro Almodóvar é, provavelmente, o primeiro a surgir na memória do público quando queremos falar de cinema espanhol contemporâneo, depois ou antes de Carlos Saura. Com uma vasta lista de títulos que, no seu conjunto, ajudaram a edificar uma definitiva marca "de autor" apenas sua, podemos considerar a obra do realizador representativa de uma progressão cultural, mais que de um estilo. Efectivamente, Pedro Almodóvar, assumidamente homossexual, foi uma das figuras centrais da Movida Madrileña, ou simplesmente "La Movida", movimento artístico, ideológico e até mesmo social contra-cultura do fim dos anos 70 e princípio dos 80, caracterizado pelo seu carácter alternativo, que florescia após quatro décadas de ditadura.

Não nos admira por isso que "Pepi, Luci, Bom y otras chicas de montón" (1980), que segue uma série de curtas-metragens subversivas rodadas em Super 8 (entre as quais se inclui um nome sugestivo: Dos putas, o, Historia de amor que termina en boda), seja um bom exemplo daquilo que pretendia o cineasta com a sua obra estética e, de certa maneira, politicamente relevante. Esta tragicomédia introduz, de forma provocadora e quase alucinada, os tema da sexualidade e da transgressão que iriam atravessar praticamente toda a carreira de Almodóvar, confrontando-nos, de igual modo, com a imagem da femme fatale, que no seu cinema adquire um carácter feminista (com características de uma mulher forte, independente e que se obriga a lidar com os seus dramas interiores) e simbólico.

Como parece evidente, o cinema de autores como Rainer Werner Fassbinder, Luis Buñuel ou Federico Fellini e, sobre todos os outros, de Alfred Hitchcock tiveram um papel decisivo na criação da ambiência que agora apetece chamar "almodóvariana". E a juntar ao cinema temos, naturalmente, a aproximação à pop art (onde se destaca a figura de Andy Warhol, que o espanhol visivelmente idolatra através dos seus cenários preenchidos com cores vívidas, quentes - ou se quisermos "espanholas"). Há sem dúvida uma tentação, talvez excessiva, de correlacionar a narrativa dos seus trabalhos com a de uma simples telenovela. Ainda que a comparação não seja inconsequente, teremos que pôr à frente na desconstrução das histórias de Pedro Almodóvar os moldes do melodrama clássico (que permitem, por mais complexas que seja o desenvolvimento dramático, uma fácil identificação por parte do espectador), e que o autor adequa, de forma inédita (e daí a principal marca da sua obra), aos seus temas predilectos (vide Fala com Ela, de 2002).

Há igualmente uma paixão pelo absurdo, pela alienação e por um tratamento quase sentimentalista dos dramas vividos pelas suas personagens que tornam possível e, obviamente, visível o humor negro do cineasta. Para citar um exemplo, podemos denotar este gosto em  Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, extraordinária "comédia nervosa" que celebra perfeitamente o kitsch e o disparate.

Ainda que A Lei do Desejo (magnífico drama de 1986 que aborda, entre outros assuntos, dos afectos entre duas pessoas do mesmo sexo) seja uma boa representação daquilo que Almodóvar consegue fazer quanto ao tratamento da (homos)sexualidade, nunca é tarde para recordar aquela que considero ser a sua obra-prima: Má Educação, que em 2004 teve a sua estreia no Festival de Cannes. Debruçando-se principalmente, uma vez mais, sobre o problema da identidade (que o filme Tudo sobre a Minha Mãe faz um vislumbre), La Mala Educación (no seu original), destrói com a presença habitual da mulher para transfigurá-la no trágico corpo travestido de Gael García Bernal, e que surge, tal como Match Point é para Woody Allen, como um drama alienígena para um especialista em comédias.

Ainda que não seja declaradamente auto-biográfico, Má Educação (que demorou cerca de uma década a ser escrito) é porventura um dos trabalhos mais intimistas do realizador, que se quis "livrar" do filme antes que se tivesse tornado numa obsessão. Situado em épocas distintas (anos 60 e finais de 70 e 80), este verdadeiro labirinto atravessa uma verdadeira salpicada de "histórias por resolver" - traumas de infância,  segredos da Igreja, um amor por resolver e um misterioso crime (regressam ao pensamento as tramas de Hitchcock).

Má Educação confirma que o à-vontade em filmar o corpo masculino (inserido num imaginário queer resultante dos espectáculos underground de travestis) é o mesmo que Almodóvar tem quando filma as suas musas (antes Carmen Maura, depois Penélope Cruz, que se juntam no melodrama Volver - Voltar) e que se este consegue escrever com destreza sobre uma femme fatale também o pode sobre um enfant terrible.

Será, por fim, também interessante realçar a mágica omnipresença do cinema no seu trabalho (repare-se na cena singular, em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, onde a protagonista muda progressivamente os seus sentimentos ao mesmo tempo que dobra as falas de Joan Crawford em Johnny Guitar, de Nicholas Ray). Já em Má Educação, Almodóvar revela uma cinefilia capaz de se colar à realidade (e por isso o filme é brilhante), imagem que tenta reproduzir, de forma menos bem-sucedida, no posterior Abraços Desfeitos.

O filme encontra-se disponível aqui.

sábado, setembro 03, 2011

Uma história do cinema queer (2/6):
Já se falava... mas deixou de se ver

O cinema, na sua juventude, avançou além das fronteiras da “moralidade” (normativa) do seu tempo e chegou a abordar a homossexualidade com espaço para algum protagonismo (umas vezes de forma evidente, outras mais implícitas). Contudo, uma certa vaga conservadora, que nos Estados Unidos ganhou forma através da apresentação (e aplicação) do chamado Código Hayes nos anos 30, afastou várias temáticas e realidades do grande ecrã. Contemporânea do nascimento do cinema sonoro, esta nova ordem tentou silenciar quaisquer representações de homossexualidade no cinema. Porém, e como tantas vezes acontece quando a ordem para calar é impositiva e contrária à maneira de viver e sentir de muitos outros, houve quem procurasse caminhos alternativos. Onde? Nas entrelinhas...

Uma das muitas histórias quase invisíveis de representação de homossexualidade no grande ecrã entre os anos 30 e 70 chegou, em 1933, através do filme 'Rainha Cristina' [foto], de Rouben Mamoulian. O filme é ainda anterior à imposição do Código Hayes, mas não deixa de abafar o subtexto LGBT que cruza a narrativa. Não só ao não explorar o que parece ter sido o verdadeiro amor da monarca (de quem se fala) por uma condessa mas também ao transformar o episódio de aparente engano gerado pela forma como a rainha se veste, fazendo-se passar por homem e despertando a atenção de um espanhol, num instante de uma história de amor, afinal, heterossexual... Contudo, a androginia vestida pela aparência da personagem criada por Greta Garbo (a rainha), assim como o sentido de melancolia que a sua figura carrega geraram pontes de identificação para muitos homossexuais que então se sentaram em plateias para ver o filme.

Puramente ao nível do subtexto passam as sugestões de amor entre homens que William Wyler filma no remake de 1959 do clássico 'Ben Hur'. Procurando um motivo mais profundo para o desentendimento entre o protagonista (interpretado por Charlton Heston) e o velho amigo Messala (Stephen Boyd), Gore Vidal, que assina o argumento, pensou no episódio do reencontro entre ambos como sendo a reunião de antigos amantes. Um deles desejoso de retomar a relação (o romano), o outro (Ben Hur) seguindo um caminho diferente. Como recorda Vito Russo em 'Celluloid Closet', realizador e argumentista falaram a Stephen Boyd do subtexto que cruzava a cena... O actor gostou da ideia... Mas ficou combinado que ninguém revelaria esta subtileza implícita do argumento a Heston...

Outro caso célebre de “invisibilidade”, mas de subtexto passível de apontar para a eventual representação de personagens gay é o que podemos encontrar em 'A Corda' [foto], filme de 1948 de Alfred Hitchcock. Baseado na peça 'Rope' (de Patrick Hamilton), por sua vez inspirada no caso real que envolvia a dupla de assassinos Leopold e Loeb, de quem se especulou serem homossexuais, o filme poderia sugerir que Brandon e Phillip, personagens respectivamente interpretadas por John Dall e Farley Granger, o fossem também. Nada é explícito, as leituras podendo ser feitas nas entrelinhas e, ao que parece, referidas discretamente durante a rodagem. Porém, ao passo que Dall e Granger estavam a par do que havia de “invisível” nas suas personagens, Jimmy Stewart, que desempenhava outro papel de relevo no filme, passava a Leste da ideia... Hitchcock, porém, nunca terá comentado estes eventuais subentendidos em 'A Corda'.

Não passa também de um possível subentendido a identificação de Plato, a personagem vestida por Sal Mineo em 'Rebelde Sem Causa' [primeira foto], de Nicholas Ray (1959), como sendo um jovem homossexual. Atormentado, frágil, talvez procure na personagem de James Dean o pai que não teve. Mas a forma como este responde, repartindo atenções entre Plato e a jovem interpretada por Natalie Wood, sugere o que Vito Russo vê como uma “família”. Todavia, e como era o destino de muitas personagens homossexuais no cinema de então (até mesmo as “invisíveis”), Plato acaba alvejado.

Ainda ausente do ecrã, mas com presença marcante no argumento (e no próprio clímax da narrativa), a homossexualidade da personagem invisível de quem se fala em 'Bruscamente no Verão Passado' [foto] acrescenta aos retratos da época um condimento adicional: a diabolização de quem deseja alguém do mesmo sexo. Realizado em 1959 por Joseph L. Mankiewicz, partindo da peça homónima de Tennesee Williams, o filme apresenta-nos uma mulher (interpretada por Elisabeth Taylor) que vive atormentada depois de usada pelo primo, Sebastian, para atraír parceiros para si. Na verdade a narrativa passa algo ao largo das questões que poderia de facto lançar, ilustrando apenas o fim terrível que se abate sobre Sebastian, naquela que será uma das primeiras representações de gay bashing no grande ecrã.

domingo, agosto 07, 2011

O cinema foi a sua causa

Autor singular do clássico americano, Nicholas Ray que, se fosse vivo, comemoraria [hoje] o seu 100º aniversário, é hoje uma lenda dentro e fora de Hollywood. Este artigo foi publicado originalmente ontem no dia 6 de Agosto de 2011, no Diário de Notícias.
"No fim de cada visão de Johnny Guitar", escreveu no livro Os Filmes da Minha Vida o divulgador de cinema João Bénard da Costa, “só me apetece dizer aos projeccionistas: Keep the film spinning” (que é como quem diz: “deixa o filme continuar”). O poder do cinema de Nicholas Ray era este: o de deslumbrar e apaixonar o público pelo seu trabalho, que sem dúvida foi único no panorama do cinema clássico norte-americano. 

Nascido como Raymond Nicholas Kienzle na pequena cidade de Galesville (estado de Wisconsin), a sua forma de olhar e gravar o mundo deve-se, em larga medida, aos estudos realizados na universidade, onde estudou ao lado de um dos principais rostos da arquitectura orgânica: Francis Lloyd Wright. E, de facto, o sentido de espaço dramático é evidente em muitos dos filmes de Nicholas Ray. Após ter desenvolvido, nos film noir, as relações espaciais, é particularmente em Fúria de Viver que exibe uma nova estética sobre as linhas horizontais, utilizando pela primeira vez o formato CinemaScope (sistema que permitia uma filmagem e projecção com formato alargado). Além disso, o realizador geriu uma tensão dramática peculiar, dando ao espectador uma sensação de claustrofobia quando a acção decorria em interiores.

Um pouco mais tarde, Ray trabalhou em rádio e, em Nova Iorque, foi encenador e lançou, em 1946, Beggar’s Holiday, o seu único musical na Broadway. Apenas um ano depois o produtor e actor John Houseman convida-o a dirigir o seu primeiro filme, uma adaptação do livro Thieves Like Us. Lançado em 1948, Os Filhos da Noite marcaria a primeira fase do seu trabalho no cinema, no estúdio da RKO, que perdura até 1953. Filme sedutoramente original e noir sobre um casal em fuga, este foi, provavelmente, a única produção que criou como realmente desejava, apresentando o gosto do cineasta em filmar personagens outsiders (a sua própria vida pessoal foi conturbada, tendo-se divorciado quatro vezes). Os heróis deste e dos seus filmes seguintes caracterizar-se-iam, assim, por serem solitários (Vienna em Johnny Guitar), se encontrarem à margem da sociedade (Jesus em O Rei dos Reis), e por contestarem a sociedade normativa em que vivem para, mais tarde, se tentar reintegrar, o que explica a sua personalidade tão vulnerável quanto violenta (Jim em Fúria de Viver).

Após ter realizado vários film-noir, de O Crime Não Recompensa (1949) a Cega Paixão (1952), e de ter assinado os filmes de acção Inferno nas Alturas (1951, o seu primeiro a cores) e Idílio Selvagem (1952), inicia uma segunda, mais independente e frutífera fase da sua carreira com o emblemático Johnny Guitar (1954). Aqui, Nicholas Ray subverte a lógica tradicional do western, tanto pela sua estilização como por ter alterado o paradigma do género. Invulgar e político, Johnny Guitar, que nos mostra a rivalidade de duas mulheres, tornou-se um clássico assumidamente feminista. Como João Bénard da Costa explica no livro Os Filmes da Minha Vida, “foi a primeira vez num western que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; é um filme cheio de luz e de calor […], em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitectónica” e utilizada “em toda a sua potencialidade”. Curiosamente, a crítica de então apontou no filme um aparente “mau gosto.”

Como se verá no ano seguinte, em 1955, Fúria de Viver, interpretado por James Dean (que viria a morrer pouco depois) e Sal Mineo, também exacerba o uso metafórico e expressionista da cor por parte de Nicholas Ray. Pensado originalmente em preto e branco, a mudança para a cor fez que as personagens pudessem ser caracterizadas com aquilo que vestiam. A personagem de Sal Mineo calçava uma meia preta e uma vermelha (o que transmitia a sua confusão) e a de James Dean ficou conhecida pelo seu casaco escarlate. Fúria de Viver, que estreou um mês depois da morte do seu protagonista, tornou-se rapidamente num fenómeno cultural que modificaria invariavelmente o conceito de adolescente americano, apaixonando particularmente o público juvenil um pouco por todo o mundo (na antologia Poemas com Cinema, o crítico e poeta Pedro Mexia escreveria: Duas infâncias passaram / por mim: uma, no planetário, / com o espanto dos astros. / Outra, com Sal Mineo, / que no seu mundo ansioso / vislumbrou a eternidade.) 

Após uma terceira fase de filmes com tom épico (entre 1961 e 63), entre os quais se destacam O Rei dos Reis ou 55 Dias em Pequim, Ray acabaria por abandonar Hollywood, investindo em projectos independentes e experimentais na Europa e, depois, em Nova Iorque.

O seu último filme foi um documentário que co-realizou com Wim Wenders, Nick’s Movie – Um Acto de Amor. Durante a rodagem, viria a morrer, vítima de um cancro, no dia 16 de Junho de 1976. “Veio a ser um filme sobre a realização de filmes, a meio caminho entre todos os géneros”, afirmou Wenders, “e, em virtude do rápido desaparecimento das forças de Nick, um filme sobre ‘um homem que se quer reencontrar antes de morrer, reencontrar o respeito por si próprio’ como Nick diz no filme”.

No seu centenário, o público contemporâneo parece não ter perdido Nicholas Ray, muito menos o respeito pelo seu legado (o Festival de Veneza comemorará o aniversário e exibirá em exclusivo a versão restaurada de We Can’t Go Home Again). Afinal, foi o próprio Jean-Luc Godard que disse que “o cinema é Nicholas Ray” e, “se não tivesse existido” ele “tê-lo-ia inventado”.

Os Filhos da Noite (1949)
They Live by Night (no original) é a primeira longa-metragem do cineasta Nicholas Ray, e que se apresenta como uma mistura de film-noir com romance improvável. Acompanhando Bowie (Farley Granger), recluso envolvido numa série de assaltos, e Keechie (Cathy O’Donnel), Nicholas Ray filma, com atenção, as ilusões que movem o jovem casal em fuga, apesar de dar ao espectador a certeza de que o destino de ambos está condenado (à semelhança de Só Vivemos Uma Vez, de Fritz Lang, ou de Noivos Sangrentos, de Terrence Malick).

Johnny Guitar (1954)
Menosprezado pela crítica da altura, Nicholas Ray filma a chegada de Johnny Logan (Michael Curtiz) a uma casa de jogo detida por Vienna (Joan Crawford), uma mulher de forte temperamento e que se opõe às hostilidades da povoação e, sobretudo, à inveja de Emma. Barroco, sofisticado e trágico, impôs-se rapidamente como um clássico absoluto. Em Portugal, é também conhecido por ser o filme da vida do divulgador João Bénard da Costa, que afirmou ter o “mais belo diálogo da história do cinema”.

Fúria de Viver (1955)
No ano seguinte a Johnny Guitar, Nicholas Ray realizaria outra obra-prima: Rebel without a Cause, que eterniza a última participação de James Dean. Preenchido com um sentido de mise en scène absolutamente inovador (devido ao desejo de exploração da “novidade” do CinemaScope), o cineasta enquadra com originalidade a tensão familiar e do interior da sua personagem. É reconhecido como o paradigma das produções cinematográficas nos EUA para adolescentes (que, hoje em dia, proliferam com qualidade drasticamente menor).

O Rei dos Reis (1961)
Filme visual e narrativamente dotado de uma espectacularidade própria das produções épicas, King of Kings acompanha a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo (interpretado por Jeffrey Hunter). Narrado pelo realizador Orson Welles, este foi a primeira obra com grande orçamento a exibir uma representação da cara de Jesus (outros filmes, como Ben-Hur, preferiam filmar as mãos). Com grande fidelidade histórica (utilizando grandes meios de produção), Nicholas Ray termina o filme com uma imagem de grande impacto simbólico e dramático.

55 Dias em Pequim (1963)
Filme épico de Hollywood sobre a Revolta dos Boxers anti-ocidental ocorrido na China no princípio do século XX protagonizado por Charlon Heston (que representa um militar norte-americano), Nicholas Ray vê-se impelido a dirigir aqui uma típica super-produção (assinada por Samuel Bronston) com milhares de figurantes, tendo abandonado o estúdio por se ter sentido mal. O filme foi concluído por outros dois co-realizadores e Ray nunca mais foi convidado a realizar algo daquela envergadura em Hollywood.

quarta-feira, outubro 07, 2009

:Compreendendo os adolescentes

Muitas são as películas que se destinam ao público adolescente - afinal, que público, na sua grande maioria, é mais consumidor e ingénuo relativamente às imagens que se lhe são exibidas? Poucas são, contudo, aquelas que tentam, de uma forma mais ou menos directa, entrar na profundidade da sua mente, criticando o seu comportamento e a busca da identidade na violência, na sexualidade ou, simplesmente, no conformismo. Tarefa difícil mas certamente não irrealizável. Dessa forma, deixo-vos hoje com uma série de cinco inspiradoras películas que valem a pena ser visionadas pelo menos uma vez na vida, dada a sua qualidade artística ou a forma como marcaram a sociedade e o mundo da sétima arte pela temática (ou a forma como esta é abordada). Mysterious Skin (2007), Paranoid Park (2007), Ken Park (2002), The Dreamers (2003) e A Clockwork Orange (1971) são, para além dos que em baixo enuncio, filmes muito recomendáveis.

Sementes de Violência (1955)


Fúria de Viver (1955)


Kids - Miúdos (1995)


Elephant (2003)


Entre les Murs (2008)