segunda-feira, abril 19, 2010

71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso

Que Haneke filmava, com notável cuidado, as origens da(s) violência(s) contemporânea(s) já nós sabíamos, e esta peça, que literalmente coaduna setenta e um fragmentos de uma cronologia do acaso, com as habituais transições com que nos habituou nos precedentes O Sétimo Continente e Benny’s Video, fecha, numa penumbra de sombrio mistério e indomável absurdo, a trilogia do nosso quotidiano. O espectador torna-se, aqui, agente dupla e contraditoriamente passivo (porque assiste, de longe, às contrariedades e injustiças do mundo moderno) e activo (porque nos sentimos, de uma estranha forma, culpados pela acção decorrida e por nada fazermos para a inverter, talvez por nos sentirmos tão familiarizados com ela). Assistir a este filme necessário, que seria reactivado, noutros moldes, por futuros trabalhos do cineasta austríaco, é o mesmo que assistir à nossa intranquila existência, rodeada de uma frieza e incomunicabilidade social nas grandes cidades. É este vazio, é esta solidão, é esta constante falta de amor, patrocinados pelo mediatismo da televisão (o ódio mais amado na filmografia do autor) e pelo fingimento dos actores sociais que se movem em busca da solidariedade, que fazem atingir, de uma forma bem elephantiana (ou seja, sem dar objectivas explicações), o clímax final, horrível e irreversivelmente explosivo e diabólico. E é, segundos depois, após a notícia no telejornal da noite de um homicídio injustificado (será mesmo?) e em massa, que Michael Jackson, do outro lado do planeta, após declarações sobre as suspeitas de abusos sexuais, nos sorri docilmente para a câmara, terminando com o septuagésimo primeiro segmento da nossa experiência de vida. Ou de morte.
8/10

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