Este filme, atento em documentar o que, dos anos 40 à flutuação decorrida até a inauguração do Cristo Rei almadense nos fins dos 50, se procedeu numa capital e num Portugal submersos na ideia da ilusão salazarista, é uma imperdível oportunidade para, antes de qualquer rememorar do passado histórico, nos conhecermos enquanto actuais cidadãos deste país. Parecerá abusivo considerá-lo, a quem rejeitar toda e qualquer presença da figura mítica do Estado Novo na nossa contemporaneidade, mas nunca um relato, que pretende, aparentemente, contrastar as ideias de fantasia e histeria social colectiva / realidade dura e implacável (mas que consegue fundi-las de uma forma implícita e interessante), demonstrou tanto o quotidiano vivido pela gente que somos, os costumes de um povo perdido em ilusões, numa desequilibrada Fantasia Lusitana. De facto, se consideramos a ideia de propaganda nos longos anos do regime ditatorial do Estado Novo (que, influenciado pelo arquétipo nazi, foi utilizada para, cerrada e invisivelmente, fechar as portas de Portugal ao resto do mundo), a ideia da movimentação dogmática que patrocina a religião, a ideia da ignorância analfabeta que se abastecia pela população, a ideia da neutralidade política face à guerra, a ideia da existência de uma espécie de sétimo continente que isolasse os portugueses na sua feliz e cantável insipiência de uma Europa devastada pela Segunda Grande Guerra, enfim, se considerarmos tudo isto e nos remetermos para esta actualidade, onde predomina a ditadura da comunicação social face à pequenez do consciente luso, ao contínuo apego à religião, ao desinteresse pelos assuntos estrangeiros, concluímos, pois, que não estamos tão longe da era da Fantasia, perspectivada esta, aqui, de uma forma sempre negativa, sempre desagradável pela suposta agnosia que esta advoga (o que não é, claro está, totalmente verdade). Para além de toda a comicidade envolvente (que seria legítima caso não fosse tratado algo de tão trágico quanto é a existência desta sociedade estupidificada), é de realçar o papel que os escritos dos refugiados ilustres estrangeiros da guerra, situados em Portugal, tiveram para a (des)construção desta película, precisamente de Alfred Döblin, Erika Mann e Antoine de Saint-Exupéry, que relatavam uma constante angústia, uma chocante incompreensão face à felicidade estampada nos divertidos portugueses, um sufoco horrível pelo calor, pelo brilho cego da capital, pela dança, pela música, pela paz em tempos de batalha, pela falsidade que lhes era inerente mas que nunca seria percepcionada pelo povo. Mais do que o ver, será, pois, crucial pensar este atípico e curioso documentário.
Constato, em parêntesis porque presenciei, no cinema Nun’Alvares um momento especial relativamente a esta peça, o óbvio – como as reflexões, externas e feitas a posteriori de uma atenta visualização, verbalizadas e expostas ao público e ao realizador, por parte de interessados, conseguem ultrapassar, na maior das facilidades, a capacidade de resposta pela mente criadora da obra (João Canijo, saiba-se), como se esta se limitasse ao redutor papel da técnica, como se esta se restringisse a uma ignorante intransigência pelas ponderações do público admirado e comedido. Surge uma questão que se eleva a não poucos filmes, não importa quando e onde foram estes realizados – uma obra, que se quer de arte, cria-se pela mão autora ou pelos olhos de quem a analisa?
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