Toda a guerra, na sua essência e múltiplas formas, não obstante das suas consequências e motivações, é inútil – e Tarkovsky, cujo espírito se anuncia da primeira à última refulgente sequência fílmica de A Infância de Ivan, sabe-lo bem, e exalta, à constatação, um sinal de imperdoável irreversibilidade e de autêntica impossibilidade de expiação a tal atentado colectivo ao homem. A perfeição e genialidade da sua primeira obra-prima não reside, todavia, na forma como condena a desumanidade, mas no seu (quase contraditório) deslumbramento pela mesma, que acaba, em última instância, por se afigurar uma das facetas do frágil ser, em diálogo com uma floresta plácida e bela, a que se propõe captar.
O seu nome é Ivan: o precoce protagonista do início de toda uma carreira que se avizinharia, uma criança russa, órfã, que, solitário e perdido, vagueia por um universo assombrado pela Segunda Guerra Mundial, acompanhando a evolução da frente soviética face aos alemães nazi e a gradual, paulatina e previsível transformação das coisas naturais no seu puro estado. É, pois, pelo constante recurso à ambivalência de temática, símbolos e metáforas que o Leão de Ouro é planeado e produzido, na exemplar e comprovada defesa de um mundo contraditório e harmoniosamente caótico. A diferença entre a criança, com a sua incontaminada pureza, e o adulto, com a sua corrompida atitude, a diferença entre a guerra, estrondosa e humana, e a paz, tranquila e inerente à Natureza, a diferença entre o sonho, que serve de impalpável e desejável escape, e a realidade, horrível e crua, são realizadas de forma ininterrupta e estável, tocando nos restantes temas que justificariam a construção da nossa personagem. Motivado pelo desejo de vingança dos inofensivos, pela errónea vontade de ser activo numa guerra a fim de se sublevar perante aqueles que a originaram, é através dos olhos do invicto Ivan, que assistimos, impotentes, a uma atroz despersonalização, que levaria à desconstrução de si e à perda da original identidade. Desta maneira, vemos a mais directa maneira de criticar a violência, da mais ínfima à mais global, e a sua reeducação milenar: pela apresentação da candidez de alguém que não deveria, de forma alguma, patrocinar uma escusada batalha e pela poluição progressiva da mesma, através da preponderância do adulto (que, por este lado, tem já completamente esquecida a simplicidade de uma infância perdida). O filme é, pois, isso mesmo – um hino à infância, ostentada no imutável bosque, nas coisas simples e naturais, que contêm a verdade que o homem parece desconsiderar. Mais do que isso, nesse caso, a película não será mais que uma viagem, subtil e poderosa, às profundezas da floresta labiríntica do âmago da nossa existência, à transcendência e à metafísica do pensamento, do sonho e daquilo que é de mais universal e ignorado. E o poeta russo tudo isto protege e capta através de imagética metafórica e belíssima, viajando entre uma fantástica ultra-realidade e os devaneios de Ivan, que recorda tudo o que há de mais universal – a mãe e o seu amor, o poço da sua imaginação, os momentos em que se debatia por agarrar um mágico reflexo de luz, o sol que lhe batia nas brincadeiras com os jovens colegas, os animais tranquilos e organicamente calculáveis, a grandeza e comunicabilidade melodiosa das árvores, a doçura da fruta, e, acima de tudo e de todas as memórias e de todos os pensamentos e de todas as sensações…, a água, que aqui serve de símbolo supremo de sobrevivência, de clareza, de liberdade e de revelação última de uma vida cuja fragilidade é iminente e sucessivamente recapitulada.
A perpetuidade da figura de Ivan e da sua percepção discordante do real sintetiza a própria eternidade lírica do cinema do russo, que sublima a interacção do homem com a natureza e guarda em nós, para sempre, o que há de mais intemporal e perfeito no nosso terrífico mundo.
10/10
Este é o primeiro de muitos 10/10 que vais atribuir aos filmes do Tarkovsky ;)
ResponderEliminarSim, espero bem que não te atrevas a dar menos de dez a algum deles, caso contrário insulto-te ;)
ResponderEliminarAté vais saltar com esses dois, João :D
ResponderEliminarNeuroticon, espero mesmo que estejas certo! :P
ResponderEliminarÁlvaro, olha que eu sou exigente ;)
João, vê esses dois e volta para falares deles :)
Abraços
Flávio, Tarkovsky foi (é) o maior de todos por isso mesmo, porque todos os seus filmes são obras-primas, obras de arte. Podes ter a certeza que te vais render ao seu cinema :)
ResponderEliminarJá me ando a render, cada vez mais, acredita! :) E tendo a concordar, também cada vez mais, contigo, obviamente.
ResponderEliminarExcelente.
ResponderEliminarTambém tenho muita coisa para ver do Tarkovsky, vão-me aguçando o apetite.
Quanto à crítica, não convém menosprezar o desejo de vingança da morte dos pais, é capital para o desenvolvimento da personagem. Eu sei que referiste, só estou a reforçar.
Excelente crítica, Flávio, um texto introspectivo e que me faz pensar o filme de outras formas, me faz reparar nalguns detalhes sobre os quais não me terei talvez debruçado aquando da visualização, que é, como sabes, um dos principais motivos que me levam a ler opiniões sobre cinema, literatura, etc...
ResponderEliminarTens desenvolvido uma capacidade de análise formidável, e os teus textos são exactamente prova disso. Vê-se que pensas o cinema de uma forma aprofundada, que tentas perscrutar aquilo que está por trás de uma obra cinematográfica, que a desconstróis para a compreenderes melhor... e isso é tudo muito positivo, eu próprio procuro desenvolver uma perspectiva assim, em relação a tudo. Sou muito curioso, como toda a gente, e gosto de saber como as coisas se concretizam, de imaginar como foram pensadas, etc... emprega essa curiosidade de forma útil para ti, vai escrevendo os teus textos, publica-os, mas não te esqueças que tu queres fazer cinema... lembra-te que criares e desenvolveres essa faculdade é tão ou mais importante. Isto não te preciso de dizer aqui, mas penso que talvez surta mais efeito do que se to dissesse na privacidade de uma conversa casual. Porque tens demasiado potencial para te dedicares à crítica, somente. Um grande abraço e, mais uma vez, parabéns!