Dia mais infame e justiceiro nunca vi, rumoreja o rapaz, para si mesmo ou, hipótese que nos parecerá mais certeira, para o mundo. Encontramo-nos num belo e outonal dia de escola, que não se poderia assemelhar mais a todos os outros, mas que, por motivos cuja razão ainda nos é transcendente, terminará de uma forma particularmente diferente.
Van Sant consolidou, com esta película aplaudida e premiada por Cannes com a cobiçada Palma de Ouro e o prémio de melhor realizador, o seu estilo de filmagem único e memorável. Apesar de serem enormes as comparações que podemos estabelecer com a curta-metragem homónima de Alan Clarke em 1989 (cuja aconselhável visualização pode ser feita nas opções especiais do DVD), existem alguns elementos próprios de Gus, dos quais passo a nomear quatro. O primeiro, que é o mais saliente, é, claramente, a sua capacidade excepcional de encontrar beleza, estudar e “espiar” as suas personagens pelas costas, como se não as conhecesse, como se os nossos olhos estivessem realmente naquele estabelecimento público e assumissem a visão de um aluno que deambulava, vagarosa mas intensamente, pelos seus incontáveis corredores. Mas que mais poderá sugerir esta decisão de vermos, por detrás, estes humanos que nos são sempre desconhecidos? Talvez nos sirva de uma metáfora visual, que aponta o dedo para a terrível conformidade, indisciplina e revolta de que vivem os alunos (ainda que pensem estar em plena personalidade, se quisermos usar o termo específico da filosofia que Kant nos deixou), ou para a sua desconsideração dos olhares que lhes são alheios (os nossos, portanto) ou, ainda, para a sua procura infinita da sua verdadeira e escondida identidade (referência possível a René Magritte?). A segunda “marca de autor” que é amplamente visível é o gosto pelos longos takes que tem o cineasta, assim como a preocupação de não contar a história com um tempo linear, percorrendo assim, de forma um tanto surreal, a escola com uma poética e impressionista steadycam que nos permite ter uma visão integral do mundo onde as formigas vivem, sem notarem a nossa presença. Em terceiro lugar temos, também característico do estilo van santiano, a filmagem notória do realizador em 180º, cujo possível significado alegórico já foi, por mim, pressuposto na crítica que escrevi de “Milk”. E, por último, mas certamente não menos curioso, é a forma como o realizador decide fazer dos actores elementos estruturais do processo criativo de como é avançada a obra, pela improvisação de falas e acções, através de um subtexto previamente fornecido.
O realizador dá, então, um significado diferente ao termo “narrativa” e, ainda assim, consegue, ao debruçar-se sobre temas tão banais como a sexualidade, o bullying, o preconceito, as minorias sociais e as desordens alimentares na juventude, construir um universo onde o absurdo é engrandecido para que, ao vermos as coisas num plano externo e superficial, nos apercebamos da incoerência própria da nossa sociedade. E, apesar deste inegável realismo de que é característica a fita, podemos encontrar indícios simbólicos e trágicos ao longo da “história” que nos é contada — nos planos do céu em fast forward, no uso dos sons da natureza como eufemismo directo da realidade, ou das próprias Für Elise e “Moonlight” Sonata de Beethoven (ligação directa a “Laranja Mecânica”, de Kubrick, realizador preferido de Van Sant?). O som e a fotografia, são, portanto, dois factores cinematográficos enaltecidos para a modelação do universo “elephantiano”. Ao vaguearmos atrás daqueles humanos sentimos que tudo parece difundir-se no ar em redor deles — os sons nítidos e típicos de um ambiente escolar (risos, conversas e afins) sofrem uma metamorfose quase alienígena e convertem-se em ruídos imperceptíveis à nossa inteligência, tal como conseguimos ver que, progressivamente, o mundo físico começa a perder cor e a sofrer um grandioso desfoque à medida que as personagens se iam perdendo nos seus pensamentos. Destaca-se, dessa forma, o magnífico esforço tido pelo cinematógrafo Harris Savides (que surgiu já em filmes como o meticuloso “Gerry”, de que falarei em breve, “Last Days” e “Milk”). Brevemente poderemos ver o seu trabalho no mais recente de Woody Allen (“Whatever Works”) e no de Sofia Coppola (“Somewhere”).
Na segunda metade do pequeno filme entramos na mais sufocante e brutal fase — a do massacre. A cada disparo que ouvimos dentro daqueles sombrios corredores, somos atingidos com a terrível apreensão da singularidade de uma só vida, algo que constante e diariamente é desvalorizado pela sua infinda banalização feita pela comunicação social, pelos videojogos, pela literatura, música ou, como não podia também deixar de ser, pelo próprio cinema. Em jeito de breve referência, o massacre ocorrido recentemente numa escola secundária na Alemanha gerou um grande debate relacionado com a adolescência e o respectivo papel da escola. Ainda assim, onde se homenageavam as vítimas chegavam-se a ver escritas questões simples como “warum?”. Porquê? Por que desceu alguém tão baixo ao ponto de, a sangue frio e aleatoriamente, retirar as vidas que pulsavam em distintos anónimos? Elephant, simplesmente, pretende manter-se na sua suposta ignorância e não responder, pelo menos de forma directa, a esta questão, nem a qualquer de outro tipo que interroguem, por exemplo, as motivações do massacre de Columbine em 1999. Contudo, várias são as cenas em que podemos lançar especulações que expliquem os comportamentos dos dois assassinos: lembremo-nos, por exemplo, de uma cena belíssima onde Alex se encontra na cantina escolar, de cabeça escondida e mãos postas na nuca, rodeado por centenas de alunos a almoçar, apavorado pela imensidão daquele som abafador que nos é progressivamente aumentado, sugerindo-nos, talvez, o completo delírio mental por que passava a personagem ou, possibilidade merecedora de reflexão pessoal, a sua completa lucidez…
Por outro lado, o filme não é niilista e não se limita a oferecer um morticínio gratuito — muito pelo contrário. Escondido na aparente barbaridade e crueza com que os assassinatos nos são sequencialmente exibidos está uma sensibilidade única que só Van Sant e poucos demais conseguiriam atingir. Mais explícita está ela quando começamos a estudar as emoções dos personagens nestes casos limite: enfrentando o medo, quebram-se as fronteiras invisíveis que nos separam, e a máscara das aparências que nos esconde é retirada. Sobe-se, verdadeiramente, à condição de humano. E a questão orgânica é inevitável: será que é necessário chegar-se a este ponto para que mudemos de mentalidades, acções, e políticas? É por trazer ao sol tantas questões que o final da película é quase perfeito. Quem ditará o seu verdadeiro fim: o último tiro? Ou a mudança social que, embora possível, não se fez até o momento?
“Elephant” é uma sublime e inesquecível obra-prima dos tempos modernos, e que é, mais do que uma chamada de atenção para o estado preocupante da nossa educação, um refulgente e melancólico ensaio sobre a vida e a morte, sobre a violência e sobre a puberdade, espelhada tão magnificamente numa escola de qualquer género, de que a sociedade contemporânea insiste em não sair.
Artigo actualizado dia 18/04/2010
Será difícil, creio sinceramente, ler melhor crítica ao filme ao longo de toda a iniciativa. Excelente crítica, parabéns. Muito bem escrita, estruturada e com os tópicos sempre muito bem definidos e claros. Foi uma leitura extremamente prazerosa.
ResponderEliminarAinda não critiquei ELEPHANT no CINEROAD, está para breve, embora já o tivesse visto 2 vezes na íntegra e uma parcialmente.
Cumps.
Filipe Assis
CINEROAD – A Estrada do Cinema
Já sabes, mas estou com o Roberto nos elogios tecidos à tua clareza escríta. Estás de parabéns :)
ResponderEliminarRoberto e Jackson,
ResponderEliminarMuito obrigado pelos elogios! É bom saber que há tão boa receptividade daquilo que escrevo. Roberto, esperamos a tua crítica ao Elephant ;)
Obrigado de novo, abraços!
Ainda não tive oportunidade de ver o filme, mas também fará parte da iniciativa no Split Screen.
ResponderEliminarExcelente crítica, como aliás os colegas já referiram! ;)
Bom texto, Flávio!
ResponderEliminarSó duas coisinhas:
"estivessem realmente naquele estabelecimento público e assumissem a visão de um aluno que preambulava, vagarosa mas intensamente, pelos seus incontáveis corredores."
Acho que aqui querias dizer "deambulava", não...? É que preambular significa prefaciar. Não me parece que fique com muito sentido o uso do verbo prefaciar, na frase, mas se estou enganado, peço desculpa.
"O realizador dá, então, um significado diferente ao termo “narrativa” e, ainda assim, consegue, ao debruçar-se sob temas tão banais como a sexualidade,"
A expressão é debruçar SOBRE.
Aparte disso, nada a dizer, a não ser sublinhar os comentários anteriores!
Abraços e boas férias! :p
Tiago, fico então à espera do texto (já reparei que no teu blog andam a fazer-se críticas por ordem cronológica, o que me parece bastante bem!). Obrigado ;)
ResponderEliminarRúben, muito obrigado pelas correcções! E, também, pelo elogio e a leitura atenta :P
Abraços!