Começo já por afirmar que tenho a plena consciência de que não vou conseguir discorrer acerca de todos os aspectos do filme numa só publicação, mas a vontade de escrever e divulgar esta obra que encontrei quase ao acaso é tanta que não me deixa esperar e tomar o devido tempo para que consiga fazê-lo eficazmente.
Kynodontas (Canino em português) estreou esta semana em Portugal apenas no cinema Medeia King em Lisboa. Ao deparar-me com alguns comentários dedicados ao filme, com os variados resumos que são apresentados, com a marca de água de Cannes no cartaz (desculpem o cliché, mas pesquisar os filmes que marcaram presença em Cannes quase sempre assegura uma sessão de cinema feliz), com os diversos trailers e com a surpresa de se tratar de uma produção grega, percebi que seria um bom filme a ver, ainda que sem expectativas exacerbadas. Foi então que dediquei uns curtos mas tão requintados 92 minutos a ver esta obra.
Kynodontas conta-nos com as imagens o ambiente familiar e social de uma família (a pedra basilar a partir da qual sociedade moderna se construiu, fundamentou e apoiou) grega cujo quotidiano e concepções de regularidade estão completamente deslocados da realidade comum a todas as sociedades do universo na sua forma mais básica.
Um casal e os seus três filhos: seres alienados e privados de um dos principais elementos definidores da personalidade humana – o nome -, sendo assim chamados de ‘pai’, ‘mãe’, ‘filho’, e as filhas, ‘a mais nova’ e ‘a mais velha’, que, à excepção do pai, que assegura a condição financeira crucial à permanência no estado de inércia em que os restantes membros familiares se desenvolvem através de um emprego, não são autorizados, pela criação de mitos relativamente ao mundo no exterior num jogo e manipular de ideias criado e levado a cabo ao longo de toda a educação dos filhos, a ultrapassar as barreiras físicas e psicológicas criadas pela alta vedação que circunda todo o terreno pertencente à propriedade onde vivem.
Assim a família vai vivendo, dia após dia, uma realidade completamente díspar à comum: não têm acesso ao mundo físico exterior, como já referido, e, para além disso, todos os meios de cortar com essa barreira espacial, como televisão, rádio ou mesmo internet, foram afastados daquele lar. Os filhos vivem apenas com os conhecimentos que lhes foram adquiridos pelos pais que, zelando por uma certeza de bondade quase utópica, criam formas de repelir qualquer elemento que ameace essa concepção – quando confrontada com a palavra ‘zombie’ por um dos filhos a mãe responde que zombies são uma espécie de flor -, e tantos outros exemplos destes estratagemas educativos.
O filme estabelece uma ligação muito forte entre os ideais desta (dis)funcional família e a sagrada família do Jardim do Éden que se manteve pura e limpa até ao momento do conhecimento do mundo, e são inúmeras as referências que nos levam a estabelecer esta comparação: o jardim filmado, circundante à casa, surge como uma metáfora para a libertação do espaço ‘casa’ que se define como principal meio físico de clausura, e onde as maravilhas acontecem, as crianças brincam e se exercitam e aprendem a conhecer apenas o apetecível dentro daquele lugar.
Os criadores de todo este ambiente – os pais - parecem perceber quais as melhores formas de levar a cabo toda a seu processo de experimentação educacional com os filhos mas parecem esquecer-se de que o Homem é um ser essencialmente social e, ainda mais do que isso, intelectual, e que de uma forma ou de outra estes dois elementos se relacionariam e posteriormente revelariam as verdadeiras potencialidades humanas – para o bem ou para o mal. A consequência disto revela-se na capacidade que os filhos vão ganhando de perceber as suas curiosidades e compreender as mais-valias – porque sim, na sociedade actual, ao contrário do demonstrado na fase mais precoce e utópica do filme, há pessoas que encontram mais-valias na maldade – da mentira, chantagem e manipulação entre os membros da família.
Contudo, nem só da presença destes cinco elementos vive esta narrativa: procurando enaltecer e preservar as potencialidades sexuais do filho homem, o pai sente-se obrigado a introduzir uma outra personalidade – de forma esporádica - no seio desta comunidade, neste caso uma mulher que se oferecia em troco de dinheiro (mas não podendo, uma vez que tudo naquela família procura zelar pelo conceito de bondade e paz, ser conotada esta acção de forma negativa como acontece com a prostituição básica). Este personagem, de nome Christina, vai revelar-se como a ferrugem que corrompe a poderosa estrutura de ferro que protege aquelas crianças das vicissitudes do mundo exterior.
Do ponto de vista formal, este filme apresenta um tipo de voyeurismo não tão óbvio como o de filmes como Janela Indiscreta ou mesmo Disturbia, mas de forma algo semelhante ao de Afterschool, não só pela maneira de como são captados os planos de acção como também pela interpretação do movimento de câmara, opções estéticas e até introdução do elemento ‘vídeo’ dentro do próprio filme – o que de si revela o forte elemento voyeur já referenciado: o espectador é mais do que isso e, por estar tão distante daquela realidade vivenciada pelos personagens filmados, sente a lacuna e a barreira inteligível que não permite o contacto com as experiências que ocorrem em frente aos seus olhos.
Vale muito a pena ver por tudo: pelo cinema formal de excelente qualidade e de uma beleza e percepção estética atordoantes, pela narrativa de uma complexidade filosófica fantástica que levanta muitas questões, dá respostas a algumas e ainda tem a ousadia de tentar quebrar com alguns ideais sociais, pelos actores, irrepreensíveis e incontornáveis, que incorporam o personagem de uma forma estonteante e especial, como os de Idioterne ou mesmo Antichrist (e agora a ligação às exigências de Lars Von Trier aos seus actores), onde se vislumbram cenas de sexo explícito, mutilação e agressão aparentemente não simuladas (o que também acontece em Canino), e pela ode ao mundo do Homem, à sua condição na sociedade e à relevância desta na preservação racional da espécie.
Em jeito de conclusão é muito bom perceber também que o cinema, a arte e a cultura são superiores a quaisquer tipos de condicionalismos económicos, e que obras destas continuam a ser produzidas mesmo em períodos de condições adversas: da Grécia, um dos países mais fragilizados com a actual crise económica global, surge esta obra-prima do cinema contemporâneo.
Kynodontas conta-nos com as imagens o ambiente familiar e social de uma família (a pedra basilar a partir da qual sociedade moderna se construiu, fundamentou e apoiou) grega cujo quotidiano e concepções de regularidade estão completamente deslocados da realidade comum a todas as sociedades do universo na sua forma mais básica.
Um casal e os seus três filhos: seres alienados e privados de um dos principais elementos definidores da personalidade humana – o nome -, sendo assim chamados de ‘pai’, ‘mãe’, ‘filho’, e as filhas, ‘a mais nova’ e ‘a mais velha’, que, à excepção do pai, que assegura a condição financeira crucial à permanência no estado de inércia em que os restantes membros familiares se desenvolvem através de um emprego, não são autorizados, pela criação de mitos relativamente ao mundo no exterior num jogo e manipular de ideias criado e levado a cabo ao longo de toda a educação dos filhos, a ultrapassar as barreiras físicas e psicológicas criadas pela alta vedação que circunda todo o terreno pertencente à propriedade onde vivem.
Assim a família vai vivendo, dia após dia, uma realidade completamente díspar à comum: não têm acesso ao mundo físico exterior, como já referido, e, para além disso, todos os meios de cortar com essa barreira espacial, como televisão, rádio ou mesmo internet, foram afastados daquele lar. Os filhos vivem apenas com os conhecimentos que lhes foram adquiridos pelos pais que, zelando por uma certeza de bondade quase utópica, criam formas de repelir qualquer elemento que ameace essa concepção – quando confrontada com a palavra ‘zombie’ por um dos filhos a mãe responde que zombies são uma espécie de flor -, e tantos outros exemplos destes estratagemas educativos.
O filme estabelece uma ligação muito forte entre os ideais desta (dis)funcional família e a sagrada família do Jardim do Éden que se manteve pura e limpa até ao momento do conhecimento do mundo, e são inúmeras as referências que nos levam a estabelecer esta comparação: o jardim filmado, circundante à casa, surge como uma metáfora para a libertação do espaço ‘casa’ que se define como principal meio físico de clausura, e onde as maravilhas acontecem, as crianças brincam e se exercitam e aprendem a conhecer apenas o apetecível dentro daquele lugar.
Os criadores de todo este ambiente – os pais - parecem perceber quais as melhores formas de levar a cabo toda a seu processo de experimentação educacional com os filhos mas parecem esquecer-se de que o Homem é um ser essencialmente social e, ainda mais do que isso, intelectual, e que de uma forma ou de outra estes dois elementos se relacionariam e posteriormente revelariam as verdadeiras potencialidades humanas – para o bem ou para o mal. A consequência disto revela-se na capacidade que os filhos vão ganhando de perceber as suas curiosidades e compreender as mais-valias – porque sim, na sociedade actual, ao contrário do demonstrado na fase mais precoce e utópica do filme, há pessoas que encontram mais-valias na maldade – da mentira, chantagem e manipulação entre os membros da família.
Contudo, nem só da presença destes cinco elementos vive esta narrativa: procurando enaltecer e preservar as potencialidades sexuais do filho homem, o pai sente-se obrigado a introduzir uma outra personalidade – de forma esporádica - no seio desta comunidade, neste caso uma mulher que se oferecia em troco de dinheiro (mas não podendo, uma vez que tudo naquela família procura zelar pelo conceito de bondade e paz, ser conotada esta acção de forma negativa como acontece com a prostituição básica). Este personagem, de nome Christina, vai revelar-se como a ferrugem que corrompe a poderosa estrutura de ferro que protege aquelas crianças das vicissitudes do mundo exterior.
Do ponto de vista formal, este filme apresenta um tipo de voyeurismo não tão óbvio como o de filmes como Janela Indiscreta ou mesmo Disturbia, mas de forma algo semelhante ao de Afterschool, não só pela maneira de como são captados os planos de acção como também pela interpretação do movimento de câmara, opções estéticas e até introdução do elemento ‘vídeo’ dentro do próprio filme – o que de si revela o forte elemento voyeur já referenciado: o espectador é mais do que isso e, por estar tão distante daquela realidade vivenciada pelos personagens filmados, sente a lacuna e a barreira inteligível que não permite o contacto com as experiências que ocorrem em frente aos seus olhos.
Vale muito a pena ver por tudo: pelo cinema formal de excelente qualidade e de uma beleza e percepção estética atordoantes, pela narrativa de uma complexidade filosófica fantástica que levanta muitas questões, dá respostas a algumas e ainda tem a ousadia de tentar quebrar com alguns ideais sociais, pelos actores, irrepreensíveis e incontornáveis, que incorporam o personagem de uma forma estonteante e especial, como os de Idioterne ou mesmo Antichrist (e agora a ligação às exigências de Lars Von Trier aos seus actores), onde se vislumbram cenas de sexo explícito, mutilação e agressão aparentemente não simuladas (o que também acontece em Canino), e pela ode ao mundo do Homem, à sua condição na sociedade e à relevância desta na preservação racional da espécie.
Em jeito de conclusão é muito bom perceber também que o cinema, a arte e a cultura são superiores a quaisquer tipos de condicionalismos económicos, e que obras destas continuam a ser produzidas mesmo em períodos de condições adversas: da Grécia, um dos países mais fragilizados com a actual crise económica global, surge esta obra-prima do cinema contemporâneo.
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