Serei sempre um apreciador do diminuto. Em tudo, mas talvez principalmente no cinema, ocupa o aparentemente insignificante, o quase imperceptível, o lugar onde se manifesta a glória, a nobreza que torna sublimes todos os caminhos, e elevados todos os movimentos indiscerníveis que a eles nos conduzem.
Há, assim, um momento em "Quatro Noites com Anna" que, por si só, o teria eternizado na minha memória, momento esse que, pode dizer-se, me conquistou decisivamente: evoco a cena em que, após o enterro da avó, a personagem central se senta na penumbra da sua casa a tocar acordeão. Este instante, mais que qualquer outro, é ilustrativo do profundo abandono a que o protagonista está votado, não apenas pelas circunstâncias em que se desenrola a sua existência, mas pela sua própria personalidade. Retraído, socialmente desajustado, com evidentes dificuldades em explicitar as suas motivações, por tudo isto inevitavelmente incompreendido pelas poucas sombras com que o cruza o seu quotidiano ou o ofício de cremador, não encontra outra - mais genuína? - forma de honrar a defunta que tocar um instrumento que descobriu entre os pertences dela.
Privado, após a morte da única pessoa com quem, como percebemos mais tarde, porventura tenha conseguido estabelecer uma relação palpável, de todo o calor humano, desvenda uma maneira de se aproximar de uma vizinha que gosta de observar sorrateiramente da janela da sua casa - Anna, uma enfermeira cuja violação ele presenciara anos antes e pela qual foi, injustamente, declarado culpado.
Com ela - mas sem que se esta se dê conta - passará quatro noites, cada uma testemunhando o sentimento benévolo, altruísta, que o faz regressar sucessivamente ao quarto dela, mas que sabe impossível de concretizar. Não é de espantar que, enquanto amante, ele se resigne à única possibilidade de viver esse amor: comovente é, contudo, a forma como o faz, através de simples gestos como o costurar um botão de uma camisa, ou o lavar a loiça que uma festa de aniversário esqueceu pela divisão onde Anna dorme.
A melancolia, essa mesma que parece acompanhar as neves que cobrem a paisagem do pequeno vilarejo onde se desenvolve a acção, e que assenta bem em toda a obra que se debruce sobre os mistérios da condição humana, parece, mais que Anna ou o seu trágico enamorado, ser a verdadeira personagem principal, marcando presença em todas as situações, todos os silêncios e todos os locais, inclusivamente compassando os movimentos de câmara que os materializam em filme. Como o instante final, que nos faz antever, como uma angustiante confirmação, o que está reservado àquele que acompanhámos até ali.
Não me lembro, confesso, do nome da personagem de que vos tenho falado, nem fiz ainda o esforço de o procurar. Isto talvez porque as grandes personagens não têm nome. Têm, somente, vida.
Belo texto. Não vi ainda o filme. Se não tivesses resolvido ficar sonolento na nossa maratona de filmes podia muito bem ter visto este contigo! Anyways, concordo particularmente com o último e inspirado parágrafo.
ResponderEliminarVê lá se nos voltas a escrever mais vezes :p
Sem dúvida um grande filme.
ResponderEliminarNão conheço, mas a crítica foi muito aliciante.
ResponderEliminarmas tu tens guizos para ver maddin, tens!?
ResponderEliminarpensava que não gostavas pensava mesmo!
Hello Flávio.
ResponderEliminarOlha, estou a pensar fazer um podcast sobre cinema. Interessado em fazer parte?
É um filme imperdível. Gostei crítica.
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