O mais provocatório derradeiro pedaço de arte da última década foi assinado por Abbas Kiarostami e manter-se-á invisível até o fim dos tempos. É uma arrebatadora experiência cinematográfica, sem precedentes e que se tem apenas uma vez na vida, que se lança a uma simples, ainda que bastante ousada proposta – a de captar, literalmente, a essência do espectador. Assim é que o iraniano filma cento e quinze mulheres numa sala de cinema, as quais, por sua vez, sentem a adaptação viva de um poema persa do século passado.
E eu, que acabo de ver o filme, que vi, ou, melhor me questionando, quantos terei visto? Abbas parece realizar dois filmes diferentes – o que todas aquelas mulheres vêem, e que nos chega pelo som, pela luz e pelas emoções transpostas no segundo filme, que, sinteticamente, se resume ao que vemos daquelas mulheres. Entre o eu-espectador e o ela-espectadora há, e não há, um imperceptível abismo que nos separa daquele filme – porque ela vê e sente Shirin, e eu vejo e sinto a pessoa que vê Shirin. E é tão desolador, tão cru e imprevisto ser-se atacado por esse tipo de voyeurismo divino, um que nos permite, vezes sem conta, observar cento e quinze lindas mulheres, que contam, com as suas caras, cento e quinze distintos e incorpóreos filmes. Aceder ao profundo da actriz-espectadora e contemplá-la em sublime esplendor, à mulher que Vê o filme e à mística libertação que permite com que ela o Veja, alienando-a (ou refugiando-a) de todo o mundo social que está fora daquele espaço, de todos os anéis, daquela roupa e, por fim, daquele véu. Resta-se o olhar. Aquilo, todos aqueles sorrisos, espasmos de medo e ansiedade, todos aqueles olhares, e todas aquelas lágrimas são pura vida, são existências, únicas, que ali, naquela sala de projecção, durante uma hora e meia, se juntaram em máxima potência, sem se aperceberem da quantidade de universos e sensibilidades que se aliaram. Quantos filmes dariam cada uma das suas vidas? Quantas alegrias, quantos triunfos, quantas desilusões, quantas angústias, quantas questões, quantos momentos? Quantas desventuras do coração, quantas revelações? Porque, ao mesmo tempo, é como se estivesse lá, sentado e ao lado delas, mas sabendo-me ao lado delas, para elas como mais um anónimo que se junta ao laço cósmico que o Cinema, suprema, humana e sorrateiramente, concebe entre todos os espectadores daquela indefinível coordenada espácio-temporal.
Shirin é um mistério, um espectro, uma revelação. Para quem ama o cinema, ou para quem ama a vida, Shirin é, para além disso, obrigatório.
Olá Flávio,
ResponderEliminarAdorei ler este texto, uma representação tão reveladora do que neste filme viste, quanto devedora à imaginação que alimenta os caminhos que após a sua visão traçaste. Este filme que tanto desejei ver, não fui capaz de sentir desejo de o ver. Sei que parece um paradoxo mas, tal como o cineasta iraniano, às vezes prefiro ficar-me pela analise do discurso de outros acerca do que viram. É uma experiência enriquecedora.
Obrigado por este post tão interessante!
Abraço!
Ainda não vi.
ResponderEliminarJá o tenho aqui há uns tempinhos mas ainda não arranjei "coragem" para o ver ;)
ResponderEliminaresse filme só esteve em exibição quando eu estava fora! As férias também me deixaram as criticas em atraso.
ResponderEliminarhttp://segundoestendal.blogs.sapo.pt/
Zé, muito obrigado pelo elogio :D Não é contraditório o que dizes mas, ainda assim, ver o filme é outra coisa, é vivê-lo. E aconselho-te fazeres isso, torna tudo muito mais real, íntimo.
ResponderEliminarRoberto, vais achar uma experiência assaz interessante.
Álvaro, não é preciso tanta coragem assim ;)
Diogo, já vi que sim. Não sei se ias gostar.
mas tu sabes la o meu gosto hahaha xD eu gosto muito de abbas
ResponderEliminarPor isso mesmo ;) Também eu, mas este é muito diferente (mesmo) que um Nema-ye Nazdik ou um Onde está a casa do amigo.
ResponderEliminareu estava fora mas não fiquei muito triste por saber que ia ao menos ver o canino e o filhote filhote que raio foste tu fazer, não passaram cá no porto --'
ResponderEliminarSaquei-o, que havia eu de fazer!
ResponderEliminarO Canino vale a pena? Tenho-o aqui.
yup ja vi, ainda tenho muitos filmes para comentar, coloquei aquelas quatro imagens para nao me armar em preguiçoso e ver-me obrigado a critica-los, ainda nem fiz a critica do filme que ganhou o mês de julho.
ResponderEliminarvoltando ao bela, vi o damnation já faz um tempo e algumas curtas, vai ser um dos meus próximos ciclos, estou a acabar o de cassavetes e iniciei o do solondz.
werchmeister harmonies é o mais desejado e vou rever o damnation seguramente
conseguistes arranjar o canino como? não arranjo seeds!
ResponderEliminarDiogo, achei-o no Pirate Bay. Do Tarr só vi um, e já valeu a pena. Esse, do harmonies, é o que mais anseio. Não sei p q te obrigas a criticar os filmes que vês.
ResponderEliminarQuanto a Cassavetes, verei muito em breve.
Porque não sei escrever, isto é um treino
ResponderEliminarFlávio, vê o Five Dedicated to Ozu dele e depois diz-me se não tenho razão em estar com receio em ver este ;) Mas vou ver sim.
ResponderEliminarÁlvaro, comecei a ler a sinopse mas parei. Ho capito. Já está a sacar ;)
ResponderEliminarVai estar no cinema, cá em Leiria, e não vou poder ver --'
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