Falar de cinema é difícil. Às vezes debato-me com um problema, que surge neste ou noutro dia e que me consome algum tempo de reflexão antes de escrever sobre algum filme que vejo: como falar e sobre o que falar desse filme? Ter uma experiência cinematográfica, boa ou menos boa, será sempre ter uma experiência única e irrepetível de vida, não importa quantas vezes a quisermos ter e a revisitarmos, de alguma forma. Como transpor, com palavras e totalidade, a poesia de Tarkovsky, a misteriosa revelação de um Werckmeister Harmonies ou de Uma Odisseia no Espaço, ou a desinteressante vivência de Os Condenados de Shawshank? A impossibilidade parece-me ser a resposta e, diante desta evidência, muitas são as vezes em que hesito escrever neste espaço, em partilhar o que em tempos me pode ter sabido a uma iguaria. Marcel Martin, autor do famoso A Linguagem Cinematográfica, defende que é necessário que haja uma distanciação entre o público e a obra executada para que o seu valor estético e ideológico fundamental seja, com mais certeza, captado (senão, pelo contrário, restar-nos-íamos à redutora alienação da realidade, vivendo, apenas e só, o cinema). E falar sobre os filmes, sobretudo aqueles que mais me tocaram e inspiraram, ajuda-me a manter essa distanciação, ajuda-me a recolher informações e a crescer enquanto cinéfilo com aspirações a qualquer coisa de maior. Somos todos filhos do cinema, o nosso pai mais novo. As suas características e linguagem absoluta fazem-me crescer. E, sobretudo, as suas possibilidades fazem-me acreditar que a sua criação constante é o futuro.
E isto para começar a falar de Chungking Express? Alonguei-me. O cinema de Kar-Wai é sem dúvida um cinema que adoro, este pedaço aqui é bom, é delicioso. Colorido, sobretudo cheio em pormenores, em riqueza visual, como seria, aliás, de esperar. As suas personagens navegam no caótico e melancólico mundo da desilusão e do desencontro do tempo, na sempre inevitável solidão. Mas é esta certeza a que o chinês chega sempre que faz, contraditória e precisamente, com que ele dê mais atenção, pelo menos nesta obra, à facção divertida, quer dizer, irónica da vida. É difícil esquecer a sua inacreditável obsessão pela California Dreamin’ que, depois desta fita, estará sempre associada ao nosso sonho de chegarmos à nossa Califórnia, de tomarmos o Chungking Express ou o comboio com direcção a 2046, ao nosso sonho de nos retirarmos deste mundo, ao nosso sonho de nos ultrapassarmos e realizarmos. É um sonho, que nem a magia de Kar-Wai consegue realizar.
Fala-me lá mais do Chungking, que tanto quero ver! ;D
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
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é o meu segundo kar-wai favorito
ResponderEliminarFoi o primeiro filme que vi do Kar Wai. É o meu preferido.
ResponderEliminarÉ sempre complicado, claro, mas justiça seja feita, há críticas que mudam o próprio Cinema. A "Carta sobre Rossellini" virou o Cinema do avesso, quase tanto como o filme que exaltava, que era o Viagem a Itália. A crítica do Godard ao "BItter Victory" do Nicholas Ray é poesia pura. É quando a crítica toma liberdades poéticas e foge ao esquemático "bom argumento, bons actores, boa realização/resumo da história e já está" e realmente seduz. Um plano originar uma ode, um filme, uma epopeia. Falta paixão, falta compromisso, falta qualquer coisa...
ResponderEliminarP.S. Ainda não vi esse Kar-Wai, mas gosto do realizador
Também adoro Kar Wai mas nunca vi este, grande pecado, pelo que vejo. Gostei muito da tua crítica, que magnífico e sintético texto - talvez até veja o filme hoje.
ResponderEliminarObrigado, João :) Concordo contigo, é uma obra bastante sensível.
ResponderEliminarRoberto: é um filme que se pode dividir em dois segmentos, em duas histórias de amor, de encontros entre duas pessoas. O tom com que se conta navega entre o pitoresco e a comicidade e a melancolia e a angústia. Como que indissociáveis. É um filme na Hong Kong moderna, cheia de luz e cor, de pormenores como disse. É mais um filme sobre o amor, sobre as desavenças do ser humano. É óbvio que vais adorar.
PS: quanto àquilo do texto podes esperar até Sábado de manhã, por favor? Peço-te imensa desculpa pela demora.
Diogo, qual é o teu primeiro? O meu preferido é Disponível para Amar. Mas reservo "2046" a uma redescoberta futura, porque gosto também deste.
Álvaro, entendo-te. Já viste muito do realizador?
João, sim. Disseste tudo. Tenho que procurar esses textos, deixaste-me curiosíssimo. É bem verdade. Quanto ao filme, penso então que gostarás: é Kar Wai do início ao fim.
Diogo, então eu nem pensava duas vezes ;) Depois não te esqueças de dizer o que achaste.
Abraços a todos
A Carta sobre Rossellini está aqui (tens mais textos do Rivette, no site): http://www.jacques-rivette.com/
ResponderEliminarAh ah, ainda não tinha descoberto o teu blog, Flávio! E acho engraçado que na mesma semana tu e o Samuel tenham abordado o mesmo autor, só que filmes diferentes.
ResponderEliminarBrilhante análise a um dos meus realizadores favoritos e a um dos meus filmes favoritos dele. Este CHUNGKING EXPRESS é fantástico. Wong Kar-Wai é exímio na sua realização e alia tão bem o drama e a melancolia e a depressão... É sublime.
E adorei a crítica. Estão seguidos a partir de agora no meu blogue! Abraço,
Jorge Rodrigues
P.S. - Não te sabia tão bom escritor. Esta peça está muito, muito boa!
Ena, muito obrigado, João e João!
ResponderEliminarJorge: fico, sinceramente, muito lisonjeado com as tuas palavras. Ainda bem que gostaste deste blog. Já conhecia e seguia o teu, o Dial P. Continua a cá vir e a comentar, hás-de sempre ser bem-vindo ;)