quarta-feira, março 21, 2012

A cena de Gaspar Noé (1): Bruno Leal




De forma a coincidir com o mês da estreia do aguardado Enter the Void – Viagem Alucinante, pedi a alguns colegas e bloggers cinéfilos que elegessem “a” cena do cinema de Gaspar Noé, ou noutros termos: a cena que mais admiram em toda a sua filmografia. Bruno Leal, autor do tumblr pós-filme, respondeu ao desafio. Muito obrigado, Bruno, pela tua colaboração.

★★★★★

Não é fácil aceitar que o sofrimento também pode ser belo… é difícil. 
É algo que só poderás compreender se mergulhares a fundo dentro de ti.
Rainer Werner Fassbinder

Vi-o em casa, num pequeno ecrã de televisão, quase uma década após a sua estreia, e ainda assim, teve em mim repercussões irretorquíveis. Não voltarei a vê-lo. Quero apenas guardar na memória uma das mais marcantes experiências que tive até hoje.

Ponderei durante algum tempo optar por uma cena de qualquer outro filme menos conhecido do realizador: Carne, Seul Contre Tous, We Fuck Alone (que aliás, parece todo uma única cena)… mas aparte dos seus êxtases, nenhum tinha “a” cena que pretendia, e foi inevitável a eleição da infame cena de violação a Alex (Monica Bellucci) em Irréversible, filme-choque causador de reacções polares, é amor ou ódio aqui, e ninguém lhe é indiferente.

Muitos conhecerão a cena sem terem visto o restante conteúdo do filme, outros tantos terão visto o filme por conhecerem a cena: “É a famosa cena”, dizem.

Porém, define ela todo o filme? Não, Irréversible é mais do que um grotesco acto de transgressão, mas é esta a cena que definiu o cinema de Gaspar Noé.

A audácia desta cena tem-se logo pela exposição, neutra, de um aspecto humano que a arte e o homem persistem em ocultar. Aqui dada sem moralismo, prefere-se uma violação como uma trágica experiência vivida, irreparável, irreversível como o tempo. Algo que é perceptível logo quando Alex entra no túnel: ninguém, nem mesmo o espectador, escapará à fatalidade daquele primeiro verdadeiro rasgo de proximidade que temos com esta personagem.

Quando entramos na sua pele, o flagelo procede-se e é-nos devolvida a confirmação do repúdio a um acto que muitos só terão visto ou experienciado nesse ecrã.

Naqueles onze eternos minutos, o espectador revê-se atormentado, tal como a protagonista. Ambos são violados ininterruptamente, dilacerados naquele único momento, como se tudo fosse real e não houvesse remanescente salvação. Pois, há aquela figura que emerge no fundo, que caminha, olha, pára, recua e desaparece.

Há aqui uma vertente humana (assentada em restantes cenas da película) que impede a gratuitidade da violência, elemento vital na obra do franco-argentino, ainda que se constate um sádico prazer na sua expressão radical, e se veja a beleza que o cineasta almeja no sofrimento. 

Não apenas um plano-sequência com exímios trabalhos de imagem e som mas antes, como Irréversible no seu todo, uma viagem inesquecível, para bem ou para mal, ao interior de cada um de nós. E isto é o cinema. Esta é “a” cena de Noé.

1 comentário:

  1. Até hoje, também só vi IRREVERSÍVEL uma vez (e não nutro particular vontade de o rever em breve) em grande parte por esta cena... muito bem escolhida e melhor analisada.

    Cumps cinéfilos.

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