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domingo, abril 01, 2012

A cena de Gaspar Noé (2): Carlos Pereira


De forma a coincidir com o mês da estreia do aguardado Enter the Void – Viagem Alucinante, pedi a alguns colegas e bloggers cinéfilos que elegessem “a” cena do cinema de Gaspar Noé, ou noutros termos: a cena que mais admiram em toda a sua filmografia. Carlos Pereira, um dos realizadores do documentário Um Filme Português (2011) e estudante de cinema em Barcelona, respondeu ao desafio. Muito obrigado, Carlos, pela tua colaboração.

★★★★★

Gaspar Noé parece acreditar que a violência da vida se define em relação direta com a violência da mortalidade. Em “Enter the void”, tal como acontecia em “Irreversível”, o corpo é apenas um veículo da alma: meio de transporte sujo, desorientado, influenciável e condenado. Não é por acaso que o ponto de vista de “Enter the void” não é o de Oscar, o seu protagonista, mas o da sua alma. A câmara de Noé começa num absoluto ponto de vista subjetivo para, mais tarde, deambular enquanto energia numa cidade de Tóquio vista do céu. 

Como filmar a morte? Para Noé, a morte é sempre algo de inesperado, abrupto, que não oferece quaisquer hipóteses de redenção. Daí que a última imagem vista pelos olhos de Oscar após ser alvejado seja tão fascinante: a sua última visão da vida é um confronto com o seu próprio sangue, com a sua efémera materialidade. A viagem começa aí, com uma potência espiritual que se vai perdendo e encontrando no singular espaço das memórias afectivas. Sem coordenadas geográficas, o lugar da reminiscência transforma-se na única prova da irredutibilidade humana.

quinta-feira, março 22, 2012

Na rapidez está a luz

Quando, há dois anos e no Festival de Cannes, Gaspar Noé apresentou uma versão inacabada do seu Enter the Void – Viagem Alucinante, ainda sem créditos, o autor deparou-se com o protesto de que o filme era demasiado longo. Perante a reação generalizada, o realizador tomou uma decisão imprevista e simbólica: “se pusermos os créditos no filme”, terá dito, “vamos fazê-los da forma mais rápida e gráfica possível”. O resultado, da autoria do realizador alemão Thorsten Fleisch, está à vista.

Numa decisão semelhante mas ainda mais fervorosa e radical, Jean-Luc Godard, que dispensa apresentações, condensou, ao som de Costa Serena de Arvo Pärt, a totalidade das imagens do seu Filme Socialismo (em cima)… em 1 minuto e 14 segundos!

Enfim, falo dos dois filmes motivado por duas simples razões. A primeira: a miserável conceção de Estreia da Semana, programa proposto para ser lançado no canal privado Hollywood, que insulta qualquer profissional em cinema pelo simples facto de um dos apresentadores ter publicamente declarado que se iria apresentar e opinar sobre filmes… sem os ter visto! Para ler com mais profundidade sobre o assunto recomendo a leitura da entrevista aos apresentadores pelo Diário de Notícias e as reflexões escritas por João Lopes, Luís Mendonça e Nuno Reis.

A segunda razão: já que, como Luísa Barbosa, ex-apresentadora do 5 para a Meia-Noite (RTP2) e, no futuro, figura de Estreia da Semana (Hollywood), revela que “toda” a pesquisa dos colaboradores do novo programa se baseará essencialmente em trailers de novos filmes, convém aligeirar o seu (certamente já muito árduo) trabalho e deixar um magnífico teaser. Tem 34 segundos, é norte-americano e é… Cronenberg

Esta breve apresentação de Cosmópolis (estreia entre nós já a 31 de maio) saiu há poucos pares de horas e atira-nos logo com três nomes fundamentais: Pattison (sex symbol do Twilight que vai regressar como o multimilionário Eric Packer), Cronenberg (que retoma os temas essenciais da sua filmografia) e DeLillo (em cujo excecional romance homónimo se encontra baseado o filme). O teaser sintetiza, através da brevidade das suas imagens, o tema da fugacidade da vida que constitui o foco narrativo central e impressiona-nos com o seu sentido de perturbadora ambiguidade — num dado momento parece-nos ver um gigantesco animal nas ruas de Nova Iorque. Não, não é um dinossauro, mas… uma ratazana.


quarta-feira, março 21, 2012

A cena de Gaspar Noé (1): Bruno Leal




De forma a coincidir com o mês da estreia do aguardado Enter the Void – Viagem Alucinante, pedi a alguns colegas e bloggers cinéfilos que elegessem “a” cena do cinema de Gaspar Noé, ou noutros termos: a cena que mais admiram em toda a sua filmografia. Bruno Leal, autor do tumblr pós-filme, respondeu ao desafio. Muito obrigado, Bruno, pela tua colaboração.

★★★★★

Não é fácil aceitar que o sofrimento também pode ser belo… é difícil. 
É algo que só poderás compreender se mergulhares a fundo dentro de ti.
Rainer Werner Fassbinder

Vi-o em casa, num pequeno ecrã de televisão, quase uma década após a sua estreia, e ainda assim, teve em mim repercussões irretorquíveis. Não voltarei a vê-lo. Quero apenas guardar na memória uma das mais marcantes experiências que tive até hoje.

Ponderei durante algum tempo optar por uma cena de qualquer outro filme menos conhecido do realizador: Carne, Seul Contre Tous, We Fuck Alone (que aliás, parece todo uma única cena)… mas aparte dos seus êxtases, nenhum tinha “a” cena que pretendia, e foi inevitável a eleição da infame cena de violação a Alex (Monica Bellucci) em Irréversible, filme-choque causador de reacções polares, é amor ou ódio aqui, e ninguém lhe é indiferente.

Muitos conhecerão a cena sem terem visto o restante conteúdo do filme, outros tantos terão visto o filme por conhecerem a cena: “É a famosa cena”, dizem.

Porém, define ela todo o filme? Não, Irréversible é mais do que um grotesco acto de transgressão, mas é esta a cena que definiu o cinema de Gaspar Noé.

A audácia desta cena tem-se logo pela exposição, neutra, de um aspecto humano que a arte e o homem persistem em ocultar. Aqui dada sem moralismo, prefere-se uma violação como uma trágica experiência vivida, irreparável, irreversível como o tempo. Algo que é perceptível logo quando Alex entra no túnel: ninguém, nem mesmo o espectador, escapará à fatalidade daquele primeiro verdadeiro rasgo de proximidade que temos com esta personagem.

Quando entramos na sua pele, o flagelo procede-se e é-nos devolvida a confirmação do repúdio a um acto que muitos só terão visto ou experienciado nesse ecrã.

Naqueles onze eternos minutos, o espectador revê-se atormentado, tal como a protagonista. Ambos são violados ininterruptamente, dilacerados naquele único momento, como se tudo fosse real e não houvesse remanescente salvação. Pois, há aquela figura que emerge no fundo, que caminha, olha, pára, recua e desaparece.

Há aqui uma vertente humana (assentada em restantes cenas da película) que impede a gratuitidade da violência, elemento vital na obra do franco-argentino, ainda que se constate um sádico prazer na sua expressão radical, e se veja a beleza que o cineasta almeja no sofrimento. 

Não apenas um plano-sequência com exímios trabalhos de imagem e som mas antes, como Irréversible no seu todo, uma viagem inesquecível, para bem ou para mal, ao interior de cada um de nós. E isto é o cinema. Esta é “a” cena de Noé.

Entrevista a Gaspar Noé

As salas de cinema nacionais assistiram recentemente à estreia de Enter the Void - Viagem Alucinante, filme com o qual Gaspar Noé competiu em Cannes (numa versão com maior duração). No âmbito da sua última visita a Portugal feita para a promoção desta longa-metragem, o Nuno Galopim (Sound + Vision) e eu tivemos a oportunidade de falar com Noé, entrevista que serviu de base para um artigo escrito para o Diário de Notícias. Publico de seguida a entrevista integral ao realizador francês.


Numa entrevista disse que o Irreversível foi um “assalto ao banco”. Porquê?

Na verdade estava a preparar Enter The Void - Viagem Alucinante com uma equipa de produção alemã, antes de Irreversível. E de repente a pré-produção caiu por terra. Estava em Paris, nesse verão, à espera para fazer outra coisa qualquer. Encontrei o Vincent Cassel e a Monica Bellucci e propus-lhes um outro filme, e eles aceitaram. Mas era um filme erótico... Quando leram o argumento decidiram, no último momento, que não o queriam fazer, mas entretanto já tinha o dinheiro para fazer esse filme. Por isso propus que se fizesse o filme com a história contada ao contrário. Todos pensaram que era uma piada... Mas seis semanas depois estávamos em rodagem. Digo que foi um assalto ao banco porque, habitualmente, primeiro escrevemos o argumento, depois apresentamo-lo aos atores, depois levamos um ano até ter o financiamento. Mas neste caso havia dinheiro para fazer outro filme e fizemos o Irreversível. Creio que se o argumento estivesse escrito para o Irreversível acho que teria havido problemas, sobretudo com a cena da violação.


E este filme segue a ideia dos planos-sequência de Irreversível

Já que tinha Enter The Void em mente quando rodei Irreversível há muitas coisas que tentei aí que na verdade eram para este filme. Como a ideia dos planos sequência, a ligação entre todas as cenas de uma forma que se note bem... Em Irreversível usei também uma grua pela primeira vez.


A partir de quando é que começa a surgir a ideia para Enter the Void?

Comecei a pensar no filme por volta dos meus vinte e poucos anos. Gostava daquele filme, o Viagens Alucinantes, de Ken Russell... Também desde cedo gostava muito de 2001: Odisseia no Espaço. E como muitos jovens tinha experimentado o LSD, a marijuana, cogumelos... Achei que seria interessante fazer um filme que sugerisse o que está estar pedrado. Escrevi primeiro um argumento para uma curta-metragem e li vários livros depois. Um deles, O Livro Tibetano dos Mortos. Achei que seria interessante que, após 30 minutos, a personagem morresse e o seguíssemos depois na sua trip astral, no seu sonho post-mortem.


E essas imagens aproximam-se realmente das sensações de uma trip? Como se passa essas sensações para as imagens?

Quando se fuma algumas drogas há imagens bem mais complexas que as que vemos no filme. Quando se toma marijuana ou acid [LSD] há coisas mais fáceis de reproduzir. Quando se está sob o efeito de drogas há coisas difíceis de expressar... Por isso acho até que este filme está demasiado narrativo para ser realista. Aproximo-me mais que em outros filmes do que é estar sob um estado alterado de consciência, mas é um filme muito narrativo. Para retratar essas experiências teria de o conceber como um filme experimental. 


Porquê usar a câmara como o ponto de vista do protagonista?

Achei que seria uma boa ideia. Senão o filme teria uma perspetiva exterior. Se fosse visto de fora, como explicaria que aquilo era a sua experiência depois da morte? Se queria retratar essa visão, esse ponto de vista interior, teria de ser dessa forma. 


Como foi pensada a música em Enter the Void? Num dado momento ouvimos Bach em eletrónica…

No iTunes vou dando estrelas ao que vou ouvindo e acabo assim por ter dez horas de música de que gosto mesmo muito. Incluí assim Bach, aquela reinterpretação, pela Delia Derbyshire, dos inícios da música eletrónica... Já Thomas Bangalter [membro dos Daft Punk] fez muitos sons para o filme, mas estão misturados com muitos outros elementos, em várias camadas.


Tem sido citado como um dos maiores representantes de uma nova vaga, a do Novo Cinema Extremista Francês [expressão designada pelo programador e crítico de cinema James Quandt]. Revê-se nesse movimento?

Há essa coisa com os nomes... Não sei quem inventou essa expressão. Extremista? Mas se há violência na vida há violência no cinema... Porque na televisão vemos os corpos, mas não as pessoas a serem mortas, há certas imagens que se tornam chocantes. Como se tornaram chocantes as imagens em que se viu como Saddam Hussein foi morto. E há uma mistura de sexo e violência que talvez seja mais explícita em França que na América. E na América talvez sejam mais sádicos, veja-se filmes como o Hostel ou Saw, que não lidam com o sexo… Talvez alguns filmes sejam extremistas, mas não creio que seja um movimento.


Pode falar sobre o seu novo trabalho, o 7 Days in Havana [estreia em Portugal a 5 de julho de 2012]?

Propuseram-me fazer uma curta para entrar em 7 Days in Havana, que é feito por sete realizadores diferentes. Fui duas ou três vezes a Cuba e fiz um pequeno filme... sobre uma jovem rapariga lésbica.


Como é que vê a vitória de O Artista nos Óscares da Academia?

Gostei muito do filme e estou muito feliz por eles. Foi giro ver aquele tipo, que eu conheço, na televisão a roubar-lhes o Óscar... Porque foi para o país ‘errado’. Era um projeto arriscado, não era assim tão evidente que se tornasse num filme tão comercial. Talvez assim os canais de televisão e os financiadores tomem algumas opções mais arriscadas nos próximos tempos. Porque se viu que um projeto ousado pode afinal ser compensador.

sexta-feira, fevereiro 10, 2012

Uma estreia inesperada


E eis que nos chega às salas de cinema portuguesas… Enter the Void! Caso para dizer, invertendo o lema de Irreversível: afinal, le temps ne détruit pas tout... É um caso infelizmente denunciativo do problema de atraso de alguma distribuição de cinema — três (!) anos depois da sua primeira exibição no Festival de Cannes (edição de 2009, na qual marcou presença na competição oficial do certame), a mais recente longa-metragem do Gaspar Noé (autor dos importantes Irreversível, de 2002, ou Sozinho contra Todos, de 1998) tem exibição comercial marcada entre nós para o próximo 15 de março (acaso irónico: a data coincide com a estreia, na Grécia, do seu novo filme, 7 días en La Habana)Não me parece, contudo, que a estreia de Enter the Void – Viagem Alucinante (título português que já mereceu o cartaz que podemos ver em cima) suscite entre os interessados pela filmografia do cineasta francês (como eu) alguma novidade. De facto, desde o início do ano passado a loja inglesa Amazon disponibilizava a cópia do filme em versão DVD e Blu-Ray, possibilitando assim aos espetadores portugueses uma alternativa que pudesse contornar um aparente e estranho “esquecimento”. Perante este regresso súbito e também estranho (possibilitado pela distribuição da Lanterna de Pedra Filmes), só podemos esperar que ocorra a inteligente solução de editar o novo filme de Noé no mercado dito doméstico, ao mesmo tempo ou em tempo próximo à estreia em cinema.

domingo, agosto 14, 2011

Post(ers) [7]

Enter the Void (2009), de Gaspar Noé

sábado, janeiro 01, 2011

Enter the Void

Considero Gaspar Noé um grande cineasta; um visionário cujas convicções extremas sobre a vida se manifestam nas imagens, geralmente surpreendentes, que cria para os seus filmes. Comprovam-no a curta-metragem “Carne” que é seguida por “Sozinho contra Todos”, onde, a partir da implacabilidade da atitude lúcida do protagonista face às pessoas, a moral que as orientam e a sua própria existência, viu na revolta e na violência as únicas formas de estar no mundo, para além do suicídio; e a longa-metragem “Irreversível”, a sua obra-prima, sobre a qual questiona a origem da causa primeira da destruição que se sente no Presente. A áurea das suas histórias parece navegar entre o mais grave pessimismo e a crença absoluta no egocentrismo do homem (tanto que “viver é um acto egoísta”), que julga ser-lhe naturalmente intrínseco. Para isto retratar, Noé aposta em histórias com um arco de mudança “decadente”, quer dizer, com um destino a seguir sempre o pior desenvolvimento para as suas personagens, e em histórias que, com o objectivo de abalar o pathos do espectador, contenham as mais chocantes situações para os protagonistas. A sua estratégia, sem dúvida premeditada e crua, é geralmente culpabilizá-las do seu próprio fado (relembro a sua curta documental “Sida”).

Talvez seja por isso que o mais recente trabalho do realizador francês, “Enter the Void”, saiba plenamente a ele mesmo, porque lá estão todos os ingredientes que o caracterizam. Aqui, propõe-se a tratar dois temas centrais: as drogas e os seus efeitos, e a morte. Quanto ao primeiro, entramos em Tóquio e num psicadélico exercício cuja mestria na representação pode ser equiparada a Aronofsky, com o seu “Requiem”, ainda que de forma completamente distinta. Os efeitos especiais são incríveis, embora o deslumbramento se possa tornar, a quem não se predisponha a acompanhá-los de forma calma, cansativo. E entende-se perfeitamente o objectivo de aproveitar este tema central para as manias que a realização vem a mostrar. Quanto ao segundo, Noé trata de novo a morte e a reacção perante ela. A singularidade que este filme traz reside no facto de o protagonista viver na primeira metade e estar, omnisciente, presente na segunda, mas morto.

No entanto, ao contrário dos seus precedentes filmes, Noé perde-se e descuida-se na estrutura e no conteúdo do seu argumento. Começa por tratar a relação íntima de dois irmãos, desde a infância onde perdem os pais e fazem um pacto de sangue de que ficarão sempre juntos, até a maioridade onde voltam a ficar juntos e se separam por culpa dos destinos que ambos escolheram para as suas vidas. No entanto, tudo surge emaranhado numa teia de acontecimentos forçados, descredibilizando a própria personalidade de cada personagem e a relação que têm umas com as outras, sobretudo a principal, entre irmão e irmã. O realizador, como argumentista, parece obrigar-se de tal forma a mostrar uma relação de companheirismo e entendimento que o resultado final mostra-se desonesto e com lugares-comuns, ao contrário do que se viu com “Irreversível” e a relação do casal central, também com os seus altos e baixos. Da mesma maneira, Noé parece, a dada altura, não ganhar imaginação para seguir o filme em linha recta a partir do acontecimento primeiramente mostrado e forçar-se a inventar uma série de desinteressantes acontecimentos que, como um puzzle mal montado, surgem desconexos e apenas a encher o que podia ser preenchido com outro conteúdo. Por fim, trata a sexualidade como antes, mas de forma mais livre e, ao mesmo tempo, mais descabida, e introduz elementos de fantasia e misticismo que não lhe são característicos e que, portanto, surgem pouco credíveis.

Apesar destas deficiências, o filme revela-se como um verdadeiro fluxo de consciência e ilude o espectador com uma espécie de fluído plano sequência, de quase três horas, que sai e entra na mente do protagonista, mostrando as suas recordações (e aí uma evidente découpage, que se assemelha à primeira metade de “Sozinho contra Todos”, toma cargo do filme) e pensamentos. É por isso na realização que “Enter the Void” ascende a um nível de originalidade singular, ainda que de toda essa ambição resulte, nalguns momentos, uma concretização de pirotecnia visual desnecessária. A maneira como se desloca e os caminhos por onde a câmara filma são de uma mestria completamente arrebatadora, dando razão a Kubrick quando diz que “if it can be written or thought, it can be filmed”. E há um claro envolvimento – diria até quase imposto – do espectador com o protagonista, dado incontáveis momentos de pura subjectividade. Noé põe-nos, literalmente, a fumar, a ficarmos drogados, a lavarmos a cara e a olharmos para um espelho, a voar como um fantasma, a fazer sexo e a morrer. Há um estranho magnetismo que os círculos e as lâmpadas detêm sobre o olhar do espectador, tudo para que se explore toda a estranha beleza da luz, associada aqui à morte, à perda de noção de tempo e espaço e às drogas.

Diria, resumidamente, que “Enter the Void” é um inesquecível exercício de cinema, que mostra como um realizador tão maduro e firme ideologicamente consegue inovar-se a cada trabalho que realiza, ainda que, infelizmente, contenha deficiências na sua estrutura narrativa que impedem uma completa elevação deste aos melhores filmes do cineasta francês.

quarta-feira, junho 02, 2010

Sozinho contra Todos

O filme que precederia o genialíssimo Irreversível, realizado a partir de uma prequela de quarenta minutos (Carne), todo ele é um nada irredutível, uma grande obra que expira implacável e brutal força.

Sozinho contra todos, o protagonista, aterrorizante ex-carniceiro de cinquenta anos perdido numa França em ruínas e desemprego, com um ódio colossal a quem se lhe ponha à frente, preconiza a existência a que Nietzsche negou qualquer significado, onde se vive um tempo de forma escusado, onde a cada homem cabe a sua moral, onde a sociedade burguesa perde a sua legitimidade face à angústia, raiva, desejo de morte e de desejo animalesco do pobre, que cuida da sua vingança. Para Gaspar Noé, nada tem significado, nem o amor, nem o trabalho, nem o outro, nem a vida, que, aqui, é retratada como se o mundo fosse imundo, apenas e só, como se o homem, como é dito, se restasse numa básica linha contínua – “nascer contra a sua vontade; comer; enfiar a piça; dar vida; morrer”. E, para ele, que filma e monta em plena revolta, tendo apenas a preocupação de se afastar o mais possível do idílio e harmonia formais, tudo se resume nas tiras que faz explodir durante a longa-metragem, gritando, ao público, que VIVER É UM ACTO EGOÍSTA ainda que SOBREVIVER seja UMA QUESTÃO DE GENÉTICA. E assim é. Caberia, no mundo de Seul Contre Tous, à humanidade, limitada à sua designação (ou função?) de pecadora inata, e à sua condição de ser feita à base de carne e osso como qualquer outro animal, ter consciência da sua insignificância e rebelar-se face a tudo, a fim de exaltar a potência energética que dentro de si reside e alcançar o caos. É obviamente obrigatório ainda que o realizador francês queira decalcar a ideia de que estamos perante um filme – a imprevisível tira que surge ao espectador, vous avez trente secondes pour quitter la projection de ce film, é demonstradora disso mesmo, para além de reflectir sobre a violência, saiba-se desde já que aqui não gratuita, espalhada pelo mundo globalizado em que vivemos. 

Aliás, imprevisível é, sem sombra para dúvidas, a palavra que melhor define o estilo dilacerante da película, criando-se uma espécie de nova linguagem, sem regras, bem a condizer com o tom da narrativa que se vai contando. E, ainda que tudo seja único, há uma base que põe Noé em comum a todos os outros realizadores, tal como o seu protagonista, único mas, ao mesmo tempo, insignificante como todos os outros seres. Provavelmente, estarão ambos condenados à solidão, como todos nós.

sábado, outubro 24, 2009

:Grandes Momentos #1

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A iniciar esta nova rubrica, deixo-vos com a perfeita sequência do poderoso Irreversível - que, contrariando o cenário precedente, nos apresenta uma visão idílica do universo - a que, necessariamente, corresponde à sua génese. A cena surge, assim, como o argumento último (no duplo sentido do termo) da tese apresentada no filme - le temps detruit tout. Apesar de a incorporação estar, infelizmente, desactivada, aconselho-vos vivamente a verem o vídeo acima no Youtube.