Mário Lopes, jornalista e crítico de música do Público / Ípsilon, escreve para “As Bandas Musicais”, rubrica mensal em que um convidado escreverá sobre uma das suas bandas musicais de eleição. Muito obrigado ao autor por esta colaboração no blogue.
Nestes tempos de demasiada mediocridade e formatação, nestes tempos em que tudo o que nos rodeia parece existir apenas enquanto valor comercial (ou publicitário, o que vai dar ao mesmo), é um bálsamo descobrir algo que nos agite e nos sobressalte com um pouco mais de mundo. A cronologia, claro, é neste estado de coisas um pormenor (se sempre o foi, agora mais ainda). Neste tempo em que coexistem todos os tempos, o maravilhamento pelo futuro pode irromper dos sítios mais inesperados, antiquíssimos de séculos ou velhos de décadas. Tudo isto para falar de uma banda-sonora? Precisamente.
Falemos do filme de um italiano que mal arranhava o inglês, Sergio Leone, musicado por outro italiano, Ennio Morricone, que até fala inglês mas que exige um tradutor de italiano em que cada entrevista. Falemos de “O Bom, o Mau e o Vilão”, capítulo final de uma trilogia (sequência de “Por um Punhado de Dólares” e “Por Mais Alguns Dólares”) que, apesar de mal amada pela crítica em 1966, o ano da sua estreia, chega aos nossos dias com o estatuto de clássico absoluto. Tem Clint Eastwood e no seu “Blondie” encontramos a América selvagem e misteriosa, esse país de integridade firmada pela lei das armas, perseguindo a ideia de viagem pioneira (para Oeste, claro, sempre para Oeste) que transformaria território virgem, a olhos descendentes de europeus, bem entendido, em nova civilização – em “Blondie” está, portanto, aquilo que Eastwood, o último clássico americano, seria depois dele enquanto actor e realizador.
“O Bom, o Mau e o Vilão” é um desses filmes que nos reconciliam com o mundo. Na cena inicial está já tudo. Aquela estação de caminhos de ferro deserta e empoeirada, com suor gotejando do ecrã e uma noção de tempo admirável na gestão da tensão: o mundo cá fora apaga-se e é ali que estamos totalmente, incondicionalmente. E há, claro, a música de Morricone: o “tremolo” das guitarras, as vozes masculinas em coro sufocante e as vozes femininas que chegam até nós como matéria etérea que, naquele contexto, soam quase a perversidade; a forma como uma ideia longínqua de country se transforma numa outra coisa, num onirismo sanguinolento; tudo isso se embrenha no filme. Mais: tudo isso faz o próprio filme de Leone.
Daquela estação de comboios inicial à magnífica cena final de duelo no cemitério, música e imagem são impossíveis de distinguir. É quase como se fosse uma perda de tempo ouvir a banda-sonora de Morricone sem as cenas filmadas por Leone – não é, como se sabe. Que essa sensação seja tão forte enquanto aquele western dito spaghetti se desenrola é como que prova definitiva da mestria revelada pela banda sonora. No caso de “O Bom, o Mau e o Vilão”, o raciocínio inverte-se. A banda sonora não é brilhante por sobreviver incólume separada do filme. É brilhante precisamente pelo contrário. Porque é ela também o filme e só nele vive plenamente.
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