Dividindo a crítica portuguesa na altura da estreia, “Sapatos Pretos”, de João Canijo explora a sexualidade e a maldade humana no interior do Alentejo de forma violenta e hiper-realista. Este artigo foi publicado originalmente no dia 12 de Julho de 2011 no Diário de Notícias.
O realizador português João Canijo, que este ano completa 54 anos de idade, parece nunca ter sido conhecido por fazer filmes “agradáveis” e o drama Sapatos Pretos apresenta-se como um irrefutável caso disso mesmo.
Depois de ter estudado História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, rendeu-se à sua paixão pelo cinema no início dos anos 80, tendo sido assistente de realização de Wim Wenders (O Estado das Coisas), Jaime Silva (Fim de Estação), ou Paulo Rocha (O Desejado), e ter trabalhado em televisão e teatro.
A actriz Rita Blanco foi uma presença constante nas suas primeiras obras: após ter realizado, em 1984, a curta-metragem A Meio Amor, estreou-se nas longas em 1989, com Três Menos Eu, e em 1991, com o thriller Filha da Mãe. Participou também em Tarde Demais (2000, [ler crítica]), que Canijo co-escreveu com José Nascimento. Mais recentemente, Canijo colaborou com a sua “musa” nos filmes-tragédia Ganhar a Vida (2001), onde protagoniza uma emigrante em França que perde o filho num tiroteio, Noite Escura (2004), que lida com a prostituição e o tráfico humano, e o futuro Sangue do meu Sangue, a estrear no próximo dia 6 de Outubro em Portugal, depois da sua passagem nos festivais de cinema em Espanha, na Coreia do Sul, no Canadá e no Brasil.
Por ser pródigo em dirigir dramas sociais vividos pelos portugueses (quer passados no interior rural ou na urbe), raras deverão ser as actrizes que não quereriam uma oportunidade para trabalhar com João Canijo. Consciente da exposição que acarretaria a representação do papel, Ana Bustorff aceitou protagonizar a memorável protagonista da produção luso-francesa Sapatos Pretos, lançado originalmente no dia 10 de Abril de 1998. Bustorff (que conseguiu, com este filme, o Globo de Ouro para melhor actriz) encarna a femme fatale Dalila, uma mulher que vive e trabalha com o ourives Marcolino (Vítor Norte), o seu sádico marido. Determinada a levar a sua existência de acordo com a sua vontade, começa a vestir-se de forma mais provocante, a traí-lo com um homem chamado Pompeu (João Reis), a inventar um cancro na mama de modo a poder fazer uma operação plástica e a conjecturar uma forma de assassinar o marido.
Baseado num caso real, esta história tem Reguengos (Sines) como pano de fundo. Numa entrevista dada ao DN em 1998, João Canijo admitiu que escolheu por ser “um local anónimo, como a Rinchoa ou um subúrbio da Amadora e assim não perdi tempo e energia a caracterizar o local. Assim, pude centrar o filme nas personagens e na história”.
Filme que partiu as opiniões da crítica portuguesa em dois, a obra foi considerada tanto como um “grande filme português” (Mário Jorge Torres, Público) como um “film noir pimba” e uma “paródia chineleira e eufórica da velhinha Lana Turner [no filme O Destino Bate à Porta (1941)]” (Nuno Henrique Luz, DN). De facto, o realizador filmou Sapatos Pretos, o seu universo “pimba”, sexual e violento com uma visão absolutamente crua, anti-televisiva, hiper-realista e amadora. Como o próprio Canijo assume ao DN, “aquela mulher, numa cidade de província de Portugal, fosse ela qual fosse, seria sempre pimba. Assim como o amante. E como eu não queria fazer um retracto igual à realidade, mas sim mais excessivo, mais forçosamente pimba seria por natureza”.
Conhecido por ter uma cena de violação brutalmente perversa, Sapatos Pretos acaba por transmitir uma visão do casamento pessimista: “um casamento é a relação com o maior potencial de violência que pode existir em qualquer relação humana”, admitiu o realizador. Assim sendo, nada é “bonito” neste filme. “Principalmente, as aldeias e as vilas são horríveis. O filme não tem ilusão alguma em relação ao Portugal real”, declarou Canijo. “O Portugal real é assim”.
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