quarta-feira, fevereiro 10, 2010

A Zona

É sabido que a dor da morte, nas suas múltiplas facetas, é universalmente sentida. Tal não significa, porém, que seja expressa da mesma forma — e a primeira longa-metragem de Sandro Aguilar comprova isso mesmo, reconhecendo, com um pessimismo e (sur)realismo exacerbados, o luto mecânico e subjectivo pelo qual o homem da contemporaneidade atravessa, bem como a sensação de vazio que lhe está inerente. E, nessa tarefa, o realizador português é, crua e simplesmente, admirável.

Entender, por completo, a gramática poética e a lógica tão realista quanto onírica do filme pode parecer, pelo menos inicialmente, uma tarefa difícil de se atingir. É, contudo, nesta espécie de desafio cognitivo, que grandemente nos envolvemos naquela estranha linguagem formal e entramos n’A Zona, ou a íntima área do nosso subconsciente, medos e desejos por excelência, onde verdadeiramente reside a invisível metafísica. Rejeitando grande parte dos tradicionais convencionalismos formais e de narrativa, a fita, altamente sensorial, navega num oceano recheado de fortes, duras e metálicas imagens e sons. E é isso que o torna, na sua essência, sublime — cada cena, do início até o final dos créditos, é crucial. Quando o Tudo chora o Nada, torna-se por demais substancial atentar, com minuciosa atenção, as personagens espiadas e com quem vagueamos, os simbolismos que presentes estão, sejam estes imagéticos e físicos ou não. No azul introspectivo e belíssimo de Paulo Ares que, em jeito de devaneio solipsista, mergulha quase a totalidade dos cenários, viajamos numa terra de ninguém, de quem está perdido, desde a nascença, na imensa dor do luto e do medo da morte, de quem quer gritar e soltar a própria fúria canina, animalesca e, sobretudo, livre. Porque é, efectivamente, por isso por que lutam as nossas personagens anónimas, sem se quererem entreolhar e tocar, alimentando um frio inesgotável — pela liberdade e pela vida que a Natureza lhes tentou propiciar antes de o homem se confinar a um mundo de sufocante artificialidade e anestesia, onde se impõem a tecnologia, a máquina hospitalar e, mais do que qualquer outra coisa, a intelectualização de tudo quanto é de transcendente e incompreensível à sociedade, no estado em que se encontra. E, entretanto, também se engrena, irreversivelmente, a impossibilidade de contrariar o maior devir de todos, o da passagem do tempo, representado pela lenta e rígida viagem do comboio. Aos nossos protagonistas, espectros errantes que se unem e desunem descontinuamente em planos pictóricos e instituições sociais, caberá a tarefa de sobreviver um dia mais e de não se consumirem em si, na embriaguez que quase dá término à película. Esta acaba, sim, com um conforto visual para o espectador petrificado — o recordar da Natureza, quente e verde, no seu estado duro e puro, que não poucas vezes ignoramos.

Encontramo-nos perante a zona, que acolhe e que liberta, uma verdadeira gema da sétima arte nacional que, sem qualquer sombra para incertezas, não deve ser passada ao lado, pela sua extraordinária sensibilidade e genialidade quase perfeitas.
9/10

9 comentários:

  1. Ainda não vi, guardo as melhores recomendações e aqui mais uma. Tenho que me pôr a descobrir o filme um dia destes.

    Cumps.
    Roberto Simões
    CINEROAD - A Estrada do Cinema

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  2. Também ainda não vi. Aliás, é dos poucos filmes portugueses dos últimos anos de que tenho muita vontade ver.

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  3. Recomendações é coisa que não falta. Infelizmente ainda não vi. falta-me descobrir muita coisa de cinema português.

    Abraço

    PS: Excelente texto como sempre.

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  4. A coisa que me chama de imediato à atenção é a fotografia do filme, agora com a tua crítica deixou-me ainda mais curioso.

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  5. Estamos completamente de acordo. Grande filme e grande estreia do Sandro Aguilar. Esperemos que continue assim ;)

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  6. Parabéns pelas resenhas, muito boas! Abs,
    www.umblogdecinema.blogspot.com

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  7. Roberto, com certeza vais gostar. É um filme poderoso, como poucos outros o conseguem ser...

    Victor, mal possas não o percas ;)

    Filipe, falta a ti e a mim! Mas a ver vamos se invisto mais no cinema português a partir de agora.

    Tiago, a fotografia é, efectivamente, dos pontos maiores da fita. A não perder.

    Álvaro, foi a tua opinião que mais ainda impulsionou a minha visualização por isso obrigado ;) A Zona é um filme muito bom, sim.

    Beto, bem-vindo ao blog! Obrigado pelas palavras ;)

    Abraços!

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  8. My One Thousand Movies, espero uma óptima recepção ;)

    Abraço

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