segunda-feira, agosto 08, 2011

A saga que veio do futuro

A poucos dias de estrear “Planeta dos Macacos: A Origem”, que reinventa a narrativa que lhe serviu de inspiração, recordamos uma das séries mais marcantes de sempre e que nos tornou um pouco mais humanos. Este texto (excluindo a opinião final sobre o novo filme) foi publicado originalmente no dia 6 de Agosto de 2011 na revista Notícias Sábado, que integra o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, com o título Os macacos, mais uma vez).
Uma nave espacial despenha-se num planeta onde os macacos falam e escravizam homens primitivos… A primeira reacção dos grandes estúdios de cinema dos anos 60, quando o produtor Arthur Jacobs apresentou esta premissa inicial, foi de pura incredulidade. Na altura rejeitado e ridicularizado, não deixa de ser irónico que, em retrospectiva, 'O Planeta dos Macacos' se tenha afirmado como uma das séries mais bem-sucedidas da ficção científica. Após o livro original, seis filmes, uma série de televisão e uma outra de animação e uma vasta oferta de merchandising, preparamo-nos para descobrir, no grande ecrã, 'Planeta dos Macacos: A Origem', a estrear na próxima quinta-feira, onde se propõe uma nova visão sobre a forma como a história começou.

Muito antes de o livro ter sido posto à venda, lançando a base narrativa para a série de filmes, podemos apontar a origem de 'O Planeta dos Macacos' no romance satírico 'As Viagens de Gulliver', do poeta e escritor irlandês Jonathan Swift. Lançado em 1726, o clássico inglês revela, no último episódio, o confronto entre o protagonista e uma espécie inteligente de cavalos, que não consegue entender por que o ser humano entra em guerra, conta mentiras ou tem prazer sexual. Entendido como primitivo, Gulliver é confundido como um desses humanos (a quem chamam de Yahoos) e é por isso enjaulado e rejeitado.

Mais tarde, já na segunda metade do século XX, o escritor francês Pierre Boulle publica, em 1963, 'La Planète des Singes', romance inserido no género da ficção-científica para dar forma a uma crítica social. O produtor Arthur Jacobs, que conheceu o livro antes da sua publicação original, viu-se defronte de uma forte possibilidade da sua adaptação ao cinema, crendo ser possível criar um filme visionário, intrigante e original do ponto de vista narrativo e estético. Contudo, Pierre Boulle, que viria então a ceder os direitos do romance, não acreditou na viabilidade do projecto, considerado a sua própria obra como uma das menores da sua carreira como escritor.

Foi, no entanto, por causa do entusiasmo e da perseverança de Arthur Jacobs que 'The Planet of the Apes' conseguiu, mais tarde, ver a luz do dia. Contactando o argumentista Rod Serling, conhecido pelo seu trabalho na série 'Twilight Zone', foram escritas cerca de 30 versões do filme. O principal problema que, na altura, os estúdios enfrentaram com a possibilidade de vir a concretizar o filme prendia-se, primeiro, com o orçamento (já que a sofisticação do mundo dos macacos implicaria grandes custos) e com o facto de terem receio que o público se risse perante o filme e a sua continuidade dramática. Jacobs ripostou surgindo com duas grandes forças: um actor reconhecido em Hollywood (o protagonista Charlton Heston) e um bom realizador (Franklin J. Schaffner, autor de 'Patton' e de 'Papillon').

Hollywood render-se-ia, eventualmente, aos símios, dando luz verde ao projecto, mas sob a condição de manter as personagens verosímeis. A aposta da produção, que contava com um orçamento de pouco mais de 4 milhões de euros, foi para a caracterização dos macacos, da responsabilidade de John Chambers. Arthur Jacobs chegou ainda a contactar Stanley Kubrick (enquanto filmava o lendário '2001: Odisseia no Espaço'), pedindo-lhe que Chambers viajasse a Inglaterra para estudar as rodagens (na sequência de abertura do filme). Kubrick, apesar de interessado, nega o pedido, temendo um conflito de interesses. Será interessante verificar que em 1969, após ambos os filmes terem sido lançados no ano anterior, a Academia de Cinema norte-americana reconheceu o notável esforço de Chambers, galardoando-o com um Óscar honorífico. A caracterização dos macacos, que curiosamente diferenciava consoante a sua função social e afinidade com o ser humano (os chimpanzés tinham expressões faciais mais humanas, ao contrário dos gorilas, que tinham um aspecto mais duro), chega a ter um efeito de tal forma realista que foi difícil o público reconhecer a actriz Kim Hunter (conhecida pela interpretação em 'Um Eléctrico Chamado Desejo').

Sob a tutela da Twentieth Century-Fox, a história de 'O Homem que Veio do Futuro' prendia-se com a vinda acidental de três astronautas para o futuro (particularmente para o ano 3978) e a um planeta que se lhes parecia com a Terra. Mais tarde, descobrem que várias espécies desenvolvidas de macacos habitam o planeta e que vêem o ser humano (então primitivo) como inferior, encarcerando-o e estudando-o.

Era raro que uma personagem representada por uma figura tão preponderante como Charlton Heston se afastasse tanto das restantes representadas pelo actor (como 'Ben-Hur' e como Moisés n''Os Dez Mandamentos'), facto que espantou o público, que o viu vestir o papel do astronauta Taylor, vulnerável a ataques e torturado pelos símios. O herói representado por Heston não deixa de ter um destino irónico: começamos por segui-lo na sua viagem pelo espaço, onde confessa para si mesmo (e ao espectador) a sua desilusão com o ser humano e, após ter sido capturado pelos macacos, passamos a reconhecê-lo com uma dimensão completamente distinta, onde Taylor se vê na missão de defender a humanidade.

É por isso pertinente considerar o carácter claramente político de 'O Planeta dos Macacos', que também levanta questões sobre a escravatura, o confronto entre civilizações e os direitos dos animais. Neste primeiro episódio, conhecemos a organização social dos símios (orangotangos são políticos, os chimpanzés são intelectuais e cientistas e os gorilas são operários e militares) e, tal como o astronauta reformula a máxima owerliana (presente no romance 'A Quinta dos Animais'), “alguns macacos parecem ser mais iguais do que outros”. Esta divisão alegórica faz-nos relembrar o contexto socio-político então vivido na América. Os Estados Unidos atravessavam, para além dos assassinatos de Martin Luther King e de Robert Kennedy, graves problemas que ganhavam forma nas manifestações pelos direitos da comunidade negra (como o violento protesto contra o racismo ocorrido em Watts, na Califórnia, em 1965), que muito aplaudiu sobretudo o terceiro capítulo da série cinematográfica, onde se exalta o poder da revolução e da subversão face à norma. Mais directamente, o segundo filme assinala de certa forma a Guerra do Vietname e as manifestações pacifistas levadas a cabo pela juventude que reclamava liberdade e paz. A última imagem de 'O Homem Que Veio do Futuro' (a Estátua da Liberdade em ruínas), filme que viria a ser reconhecido como tendo um dos melhores finais e mais poderosos de sempre, ousa tocar num dos maiores medos do cidadão do final dos anos 60. Evocando o clima de Guerra Fria e de terror nuclear entre os EUA e a URSS, a cena final e mais pessimista do filme destrói por completo um ícone ocidental e a ilusão de sonho americano.

Apesar de ser um comentário sério sobre o contexto em que a série é lançada, um dos objectivos da saga era entreter, e foi isso que conseguiu fazer, movendo o imaginário de todo o tipo de público, desde as crianças até os mais velhos e levando ao cinema inúmeras famílias. Bem recebido pela crítica de então, exaltaram-se os temas retratados e a atmosfera criada no primeiro filme, auxiliada pela inovadora banda musical (nomeada para um Óscar), assinada por Jerry Goldsmith, que seguia algumas tendências da música experimental da época. Mais tarde, em 2001, 'O Homem Que Veio do Futuro' viria a ser reconhecido como “cultural, histórica e esteticamente significativo” pelo Registo Nacional de Filmes dos EUA.

Apesar de nunca repetirem o sucesso de bilheteira provocado pelo primeiro episódio (que teve um retorno financeiro de quase 23 milhões de euros), seguiram-se, sempre frente a um apertado orçamento, as sequelas 'O Segredo do Planeta dos Macacos' (1970), realizado por Ted Post e que marca a última participação de Charlton Heston; 'Fuga do Planeta dos Macacos' (1971), de Don Taylor; 'A Conquista do Planeta dos Macacos' (1972) e 'Batalha do Planeta dos Macacos' (1973), ambos dirigidos por J. Lee Thompson e mais virados para a acção e para a violência.

Apesar de ter sido anunciado o fim para as histórias dos macacos, os anos 70 conheceram a existência de duas séries para televisão. A CBS lançou em 1974 e em horário nobre 'Planet of the Apes', que apenas durou 14 episódios (o último nem foi exibido) por causa da concorrência que enfrentava noutros canais e das consequentes baixas audiências. No ano seguinte, 'Return to the Planet of the Apes' foi exibida pela Fox e mostrou ser uma série de animação dirigida às crianças, sendo um pouco mais fiel ao imaginário moderno do livro de Pierre Boulle. Durou, à semelhança da série anterior, 13 episódios.

Passaram-se 20 anos preenchidos de bandas desenhadas e o 'Planeta dos Macacos' parecia condenado ao esquecimento até que o realizador Tim Burton ('Eduardo Mãos de Tesoura') decidiu refazer o primeiro filme original, em 2001. 'Planeta dos Macacos' é tido até hoje como o maior sucesso comercial da saga, rendendo cerca de 251 milhões de euros.

Apesar do sucesso, a Fox decidiu não lançar sequelas, mas fazer um “reboot” à série, isto é, reiniciá-la com uma nova história original. 'Planeta dos Macacos: A Origem', a estrear no próximo dia 11 de Agosto nas salas de cinema portuguesas, é realizado por Rupert Wyatt, com um elenco que conta com nomes como James Franco, Freida Pinto, Tom Felton ou Andy Serkis, e conduz a história de como ocorreu a ascensão daquilo que chamam macaco “sapiens” e que se revolta contra o ser humano. Pela primeira vez, será utilizada a captação digital de movimentos para criar os macacos (técnica utilizada, por exemplo, em 'Avatar', de James Cameron).

Apesar de ainda darem que falar, ainda é incerto o futuro destes macacos e de toda uma série mítica que já se apresenta como um verdadeiro fenómeno cultural. Parece ser preciso avaliar o impacto deste novo filme para, por fim, conseguirmos prever o seu destino.

Os filmes da saga

O Homem Que Veio do Futuro (1968)
Neste primeiro episódio, Franklin J. Schaffner cria um autêntico quadro de choque de civilizações, evoluções e ideologias, tornando-o num clássico absoluto do cinema. Aludindo indirectamente ao clima conturbado vivido num mundo dividido em dois, o espectador é confrontado, sobretudo no final, com as suas possíveis acções lesivas do ser humano sobre si próprio.

O Segredo do Planeta dos Macacos (1970)
A continuação do primeiro filme segue um astronauta que tenta investigar o que aconteceu ao protagonista. Lidando com uma espécie evoluída de seres humanos afectados pela radiactividade (e que veneram religiosamente uma bomba atómica), Ted Post imagina o fim do mundo numa atmosfera de guerra, terminando o capítulo de forma absolutamente apocalíptica.

Fuga do Planeta dos Macacos (1971)
Quatro meses após aquele era o final, o estúdio, motivado pelo sucesso comercial, ordenou uma continuação que parecia impossível. Aqui, três macacos viajam para o passado e para uma Nova Iorque dos anos 70. Pela primeira vez, o herói passa a ser o símio, contra o homem antagonista. Levando uma narrativa mais divertida, o fim vislumbra possibilidade de continuidade.

A Conquista do Planeta dos Macacos (1972)
O penúltimo filme leva-nos 20 anos depois do capítulo anterior, debruçando-se na história de como César, o filho do casal que veio do futuro, se revolta contra a escravatura atroz dos macacos e organiza um protesto implacável. Altamente violento e sangrento, passamos a conhecer a ascensão do símio e de como o homem passou a ser subjugado ao macaco.

Batalha do Planeta dos Macacos (1973)
O episódio final da série original segue a linha que o realizador J. Lee Thompson definiu, mais voltada para a acção. Filmando mais um combate entre o homem e o macaco (no início do século XXI), mostra também César a descobrir o seu passado e, como consequência, o futuro da sua espécie (visto no segundo filme), terminando com uma imagem ambígua e profética.

O Planeta dos Macacos (2001)
Dirigido pelo mítico cineasta Tim Burton, que colabora com Danny Elfman na música, este é um remake que conta com as interpretações de Mark Wahlberg, Tim Roth e Helena Bonham Carter e que se aproxima do final derrotista idealizado originalmente pelo escritor Pierre Boulle, mas que levantou grande polémica entre o público, que o considerou muito confuso.

O novo filme

Embora o “reboot” anunciado para a série cinematográfica se adivinhasse desastroso, “Planeta dos Macacos: A Origem” é uma reinvenção extraordinariamente interessante de toda a sua narrativa. Seguramente o melhor filme da saga depois do primeiro (que já podemos estabelecer como um clássico), este é um cartão-de-visita para um novo universo. Dotado de graves falhas que denunciam o irrealismo que move esta obra e a ausência de exploração de personagens como a interpretada por James Franco, Rupert Wyatt consegue, ainda assim, manter o foco na evolução do primata-protagonista (sem uma realização notável), reavivando os temas sociopolíticos dos primeiros episódios nos anos 70 e citando algumas das melhores falas. Mais que um filme envolto pela macacada, é um filme que dá um cenário de revolução assustador e demasiado próximo de nós. O final pede por mais e, agora, só nos resta esperar, porque parece que a série retomou um caminho novo e seguramente melhor.

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