domingo, junho 12, 2011

Por uma nova demanda espiritual


Pouco depois de ter apresentado no Festival de Cannes 'Hors Satan', o seu filme mais recente, o realizador francês fala-nos sobre 'Hadewijch', que acaba de estrear em Portugal.

Bruno Dumont é um cineasta que cultiva o silêncio. Evidentemente, esta característica não significa que, na economia das palavras, não acabe por reflectir a plenitude do pensamento que descreve a sua obra. Tomemos como exemplo Hadewijch, que nos mostra a palavra como ditadora da religião e da mentira em contraste com o silêncio, revelador da verdade e do mistério espiritual que parece rodear-nos.

Nascido em 1958 no Norte de França, Bruno Dumont realiza o seu primeiro filme apenas aos 39 anos. Sendo-lhe vedada a admissão a uma das mais conceituadas escolas de cinema francesas, foi professor de Filosofia enquanto filmava anúncios para o nicho da indústria pesada e da maquinaria. É curioso como, durante este período de descoberta de como absolutamente tudo se podia tornar interessante se filmado, Dumont tenta desenvolver as suas questões interiores não na filosofia mas na literatura, chegando a escrever, como um romance, La vie de Jésus. Só depois o transforma em filme, quando, ao tentar vender o projecto aos produtores, é impulsionado a realizá-lo (e fê-lo tão bem que foi contemplado com o Prémio Jean Vigo, em Cannes). "Como não conseguia passar pela porta, fui pela janela", diz-nos Dumont, sobre a sua passagem da filosofia para o cinema.

Em 1999, Dumont dirige L'Humanité (Grande Prémio, Melhor Actor e Melhor Actriz no Festival de Cannes) sob o signo da última cena da sua estreia cinematográfica, girando em torno de um polícia que sofre por não se poder expressar e, mais tarde, em 2003, Twentynine Palms, projecto que, ao contrário dos filmes precedentes, escreve em apenas duas semanas e filma na Califórnia. Profundamente violento, implacável e por vezes gráfico nas suas imagens, Bruno Dumont foi considerado pelo jornalista James Quandt como uma das principais figuras do movimento do Novo Cinema Extremista Francês. Porém, ainda que Dumont considere que a violência é inevitável ao comportamento humano, devendo este ser "transformado pela cultura, pela civilização", revela-nos: "Não posso ter essa perspectiva; encontro-me no meio do que fiz e não na extremidade de qualquer coisa." Da mesma forma, rejeita as ligações do seu cinema com os de outros autores, como o de Robert Bresson ou de Ingmar Bergman. "Olho para mim sem saber exactamente por onde e por quem já passei. Todos somos formas acumuladas de cinema e somos, humildemente, o seu movimento perpétuo."

Após ter lançado Flandres no grande ecrã em 2006 (Grande Prémio no Festival de Cannes), Bruno Dumont regressa ao cinema em 2009 com Hadewijch, filme sobre a decadência de uma jovem católica devota que, após ter sido expulsa do convento, responde pelo nome da mística Hadewijch do século XIII ("foi ela que, através dos seus poemas e das suas visões, me deu a ver a forma mística do amor puro", diz Dumont) e vê a sua relação com Deus posta à prova quando trava amizade com um radical islâmico que a convence a preparar um atentado terrorista. "Hadewijch é mais uma tentativa de fazer tábua rasa às instituições religiosas e políticas - mostrando a sua violência intrínseca e a alienação dessa superstição - para uma demanda espiritual nova e laica", explica-nos o cineasta, face ao surgimento do seu filme num tempo em que a França de Sarkozy proibiu a utilização de burcas. "A crença em Deus e as religiões são para mim arcaísmos que deveriam estar fora do alcance da política. Mas a política actual é em si uma outra forma desse arcaísmo autoritário que deve ser ultrapassado", admite.

Empenhado em "explorar o seu mistério", Hadewijch é um filme que lida de forma muito particular com a fé, que o autor descrente considera ser "uma forma alienada de desenvolvimento espiritual do homem, um anel totalitário que contém nos seus germes o poder destrutivo de uma acção terrorista, a sua manifestação extrema".

No final, apesar da perdição, contemplamos uma ténue noção de esperança: "Hadewijch é testada e mostra o caminho espiritual: a única forma nova de amor humano, longe de Deus." Hors Satan, o seu novo filme, ainda sem data de estreia entre nós, é o seguimento de Hadewijch: "Face a um novo mundo longe de Deus, o combate contra Satanás."

Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 11 de Junho de 2011.

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