Autor de uma obra inconfundível e um dos maiores nomes do cinema francês, Jacques Tati é recordado numa série de edições em DVD que apresentam as suas quatro primeiras longas-metragens
Não foi pelo cinema que primeiro se quis projectar ao público. Na verdade, o realizador, nascido como Jacques Tatischeff, perto de Paris, no dia 9 de Outubro de 1908, altura em que o cinema começava a estabelecer-se como uma nova ferramenta de entretenimento, apaixonou-se na adolescência pelo râguebi, praticando ainda ténis e boxe. Depois dos jogos, passava a sua energia para os balneários, que transformava em palcos para os seus espectáculos pantomímicos. Em meados dos anos 30, convencido do seu talento, o francês abandonou o desporto e seguiu carreira como mimo, acabando por ter sucesso pelas suas caricaturas às estrelas desportivas. O trabalho com o corpo, que caracteriza a vida profissional do cineasta, foi pela primeira vez registado em curtas-metragens como Oscar, champion de tennis, em 1932, ou Cuida do teu ganho esquerdo, em 1936 (filme que integra a nova edição em DVD de O Meu Tio).
Após ter prestado serviço militar na Segunda Guerra Mundial, Jacques Tati regressa em 1945 ao cinema, aparecendo em papéis secundários de dois filmes de Claude Autant-Lara (Sylvie et le Fantôme, em 1945, e Le Diable au Corps, em 46). Apenas depois decide aventurar-se na criação de um filme, em 1947, quando escreve, realiza e protagoniza a curta-metragem de 13 minutos A Escola dos Carteiros, uma homenagem às célebres figuras do cinema norte-americano Buster Keaton e Charlie Chaplin.
Satisfeito pelo sucesso com o público, Jacques Tati sente-se impelido a refazer o filme, transformando--o na sua primeira longa-metragem: Há Festa na Aldeia, que já apresenta o estilo da obra do cineasta e lhe valeu o prémio para melhor realizador no Festival de Veneza, em 1949. Apesar de o pai ter ficado desiludido por Tati não seguir o negócio profissional da família ligado ao restauro e emolduramento de quadros antigos (primeiro ofício em que trabalhou), podemos considerar o seu cinema como um alargamento desta actividade. O enquadramento expressivo e “arquitectado” dos seus filmes demonstra um tacto invulgar e uma composição visual inédita, que viria a tornar-se objecto de estudo no campo da teoria cinematográfica. Para além disso, passam a servir o laço temático que une todo o trabalho satírico do realizador francês: a frieza da tecnologia e a insensibilidade moderna. Dotado de uma narrativa praticamente ausente, aposta-se numa descrição das acções baseada na criação de contextos (o dia de festa; as férias do protagonista; a chegada do tio…) e, sobretudo, baseada no corpo e na sua movimentação, à semelhança da pantomima ou dos filmes mudos dos anos 20. Tati traça, além disto, uma espécie de microcosmos, isto é, de cenários, como a aldeia no seu primeiro filme, onde se deslocam as personagens. Aqui, o realizador preferiu dirigir actores não profissionais, extraindo deles diálogos mínimos, não raras vezes sobrepostos com outros sons que os interrompem, como se fizessem parte do ruído de fundo ou não tivessem qualquer significado para aquilo que Tati se propõe mostrar. Muito pelo contrário, o interesse pela utilização do som não é, contudo, negligenciado nas comédias do realizador. Em harmonia com a música que, curiosamente, contradiz muitas vezes o tom daquilo que é mostrado, o som amplifica o relevo dos detalhes manifestos nas imagens (sirvamo-nos, a título de exemplo, do som da porta do hotel que se impõe sobre tudo o resto em As Férias do Sr. Hulot).
Esta foi a sua segunda longa-metragem, que voltou a escrever, realizar e protagonizar em 1953. Bastaram-lhe quatro anos para que pudesse apresentar aquela que viria a tornar-se a sua figura mais icónica e que interpretaria até o fim da carreira em cinema. Chamou-lhe Sr. Hulot, o homem altíssimo e estouvado que levava sempre consigo o cachimbo que o caracterizava. Apesar do público reconhecer a partir desse filme Sr. Hulot como sinónimo de Jacques Tati, o cineasta (que, ao contrário da personagem, era perfeccionista e obcecado por concretizar as suas imagens idealizadas) não se mostrou satisfeito com a identificação efectuada, como comprovam os dois filmes seguintes que realiza, onde se mistura com as outras personagem sem se destacar.
Em 1958, o Sr. Hulot surge em O Meu Tio, terceira longa-metragem que vale a Tati o Prémio do Júri no Festival de Cannes e o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Quase uma década depois, o cineasta volta com a sua personagem no seu projecto mais ambicioso: Playtime – Vida Moderna (1967). Esta obra-prima viria, no entanto, a destruir-lhe a carreira no cinema. A megalomania e estilo incompreensíveis para o grande público resultaram num fracasso de bilheteira e que o obrigou a pagar dívidas até a sua morte. Apesar das dificuldades financeiras, Jacques Tati cria ainda Trafic em 1971 e Parade em 74, que, contrariamente ao que desejava, nunca chega a estrear nas salas de cinema.
Jacques Tati morreu no dia 5 de Novembro de 1982, vítima de embolia pulmonar, quando, ainda que sentindo ter perdido a sua liberdade como artista, preparava o seu último filme, Confusion.
Redescobrir a magia de um ícone
Jacques Tati deixou por filmar O Mágico, um argumento comovente que o cineasta escreveu em forma de mensagem para a sua filha adolescente e que o realizador Sylvain Chomet (criador de Belleville Rendez-Vous) adaptou para o grande ecrã em 2010. Nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Animação, Chomet homenageia toda a obra do francês, traçando a vida de um mágico de palco que anseia por trabalhar e proporcionar a Alice, uma rapariga que conhece na Escócia e que passa a acompanhá-lo, a melhor vida possível.
Há Festa na Aldeia (1949)
Nomeado para o Leão de Ouro, vencedor do prémio para Melhor Realizador no Festival de Veneza e recordado hoje como um dos primeiros filmes a cores (embora tenha sido, na altura do lançamento, mostrada uma versão a preto e branco), a estreia do cineasta nas longas-metragens situa-nos, como diz o título, numa aldeia francesa em dia de festa. Tati interpreta François, um simples carteiro que decide, depois de se ter embebedado e de ter sido troçado pelos habitantes que viram um deslumbrante filme sobre os correios eficientes dos EUA, entregar a correspondência da maneira mais rápida possível. Esta comédia, com gags que viriam a ser reproduzidos nos filmes procedentes, é já caracterizadora das ambições no estilo e nos temas do cinema deste autor.
As Férias do Sr. Hulot (1953)
A comédia que Tati realizou em 1953 serviu de estreia para a personagem que viria a interpretar toda a sua vida no cinema: o Sr. Hulot. Ouvimos, pela primeira vez, o seu nome quando, em altura de férias de Verão, faz o check-in no Hôtel de la Plage junto ao mar da Bretanha. Jacques Tati filma o seu alter-ego sem fazer grandes planos e denunciando a sua grande estatura. À semelhança do que faz com os outros, neste filme transforma a sua inaptidão social num meio para ridicularizar não o Sr. Hulot mas as pessoas “normais” que o rodeiam, com todas as suas respectivas manias e formas de comportamento. Divertido, episódico e com pouquíssimos diálogos, o realizador começa já a acentuar o poder do som no espectador, como é o caso da porta do hotel quando abre e fecha.
O Meu Tio (1958)
Esta terceira longa-metragem de Jacques Tati evidencia a sua clara intenção de mostrar a urgência de uma visão menos séria e tecnocrática da sociedade. O jovem Gérard, sobrinho do Sr. Hulot, protagoniza o pensamento idílico e infantil que contrasta com a casa futurista em que vive e que serve de principal cenário do filme. Este é um filme de contrastes: em paralelo com a obra posterior, vive tanto dos detalhes e da riqueza criada do universo mecanizado (no qual habitam os pais da criança), como também da completa inaptidão simples e ingénua característica da personagem de Tati. Este filme impressionante foi vencedor do Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes em 1958 e do Óscar da Academia para Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte.
Playtime - Vida Moderna (1967)
A obra-prima de Jacques Tati, que lhe comprometeu a carreira como autor por não ter recebido a devida atenção do grande público, é um ambicioso quadro animado de uma sociedade perdida na tecnologia, na alienação, no anonimato e na perda de valores que o cineasta considera serem essenciais nas relações humanas e que no filme estão ausentes. Não é dado ao Sr. Hulot mais destaque que a quaisquer outras personagens presentes numa Paris futurista. Assustadoramente actual (talvez ainda mais agora que na altura da estreia) e crítico da imposição norte-americana na cultura ocidental (o título em inglês não é nenhum acaso), a composição estética singular de Playtime é resultante da concepção arquitectónica genial de todo o universo moderno imaginado pelo realizador.
Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 4de Junho de 2011.
um mestre.
ResponderEliminarO Falcão Maltês
Playtime - Vida Moderna (1967)é o meu filme favorito. Objecto de ironia, consegue transmitir um futuro próximo a que estamos cabalmente destinados. Jacques Tati é um realizador a (re)descobrir urgentemente.
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