No cinema, tal como na arquitetura, existe uma tendência contemporânea de sermos guiados por um minimalismo que ganha, por exemplo, expressão evidente na filmografia de Robert Bresson. Quase como em reação a esta filosofia, Xavier Dolan aterrou no mundo das imagens ditando, através do seu universo, algo de muito simples: que mais... é sempre mais.
E este é um lema que os seus filmes exibem em toda a sua extravagância. Até agora são “apenas” três as longas-metragens – número que se torna tanto mais impressionante quando pensamos na idade do realizador: “apenas” 23 anos. Ao mesmo tempo, Xavier Dolan, nascido no Quebeque (Canadá), é um daqueles casos de rapaz-prodígio proclamado e acarinhado por um festival de cinema – neste caso o de Cannes, onde começou por apresentar o seu primeiro filme que fez com 19 anos, J’ai tué ma mère (2009).
Ainda que este drama autobiográfico, que nos trilha os labirintos da sua relação disfuncional com a mãe, não tenha estreado entre nós, a receptividade tida por Os Amores Imaginários (2011) comprovava então o poder da Internet na nova geração de cinéfilos e que Dolan se tinha tornado num dos cineastas de culto em Portugal.
Por tudo isto Laurence Anyways, filme intimista com duração de épico (quase três horas), seja esperado com tanta ansiedade no Estoril & Lisbon Film Festival, onde se [estreou ontem] na secção competitiva (sala 1 do cinema Monumental às 21h45). Depois de ter sido projetado na edição deste ano do Festival de Cannes (o facto de ter sido programado na secção paralela Un Certain Regard e não na competição oficial gerou alguma discórdia mediática), Xavier Dolan foi recebido pelos franceses entusiasticamente: a revista de cinema Cahiers du Cinéma dedicou-lhe um especial destaque carregado de elogios e Cannes acarinhou o filme com dois prémios: a Queer Palm (atribuída a filmes de temática homossexual, bissexual ou transgénero) e o prémio para melhor atriz, Suzanne Clément, que surge aqui como autêntico furacão de emoções.
Quem nos deixa absolutamente rendidos é, também, o seu protagonista que empresta o seu nome ao título, interpretado por Melvil Poupaud (que estará presente hoje nas sessões). Ao calçar os saltos altos de Laurence, Poupaud dá-nos a transfiguração de alguém que se apercebe que durante a sua vida viveu uma mentira devastadora: que era homem para os outros ainda que se sentisse sempre mulher. O drama, contudo, não é previsível (o foco poderia estar previsivelmente nos traumas desta transformação): traz-nos, pelo contrário, a relação de um casal apaixonado que se sente obrigado a gerir a implacabilidade destas mudanças.
O que se torna, isso sim, previsível é como Dolan trata formalmente o seu primeiro “Titanic”. A ambição, desde logo assumida, de construir um melodrama barroco e hiperestilizado torna-o tão comovente como superficial, tão interessante como inconsequente. Apesar de notarmos que já está a emergir uma voz só sua, o seu cinema continua a querer chamar muitos outros cinemas: Gus Van Sant, Cassavetes ou, desta vez mais assumidamente, Douglas Sirk (há folhas de outono que preenchem um plano enormemente aberto, como acontece em Escrito no Vento, de 1956; há camisolas a cair do céu...).
A energia é assim visceral (histriónica, tal como todas as suas personagens) e o resultado esquizofrénico, ainda que longe de ser maçador. No entanto, não conseguimos deixar de sentir que acabamos de assistir a um teledisco com duração de “longa”, tal é a enorme seleção musical de um apurado sabor pop (convocam-se os Fever Ray, Depeche Mode, Duran Duran...) ou as referências visuais (cita-se, por exemplo, o teledisco de Fade to Grey, dos Visage). Mas o cinema de Dolan precisa de mais silêncios, um pouco de mais calma, de aprender a saber quando se deve calar.
Este texto foi publicado no Diário de Notícias (papel e e-paper) a 11 de novembro de 2012.
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