O último filme de Xavier Dolan, apontado como um dos possíveis vencedores da competição do Lisbon & Estoril Film Festival, desaponta; não porque tivessem sido criadas expectativas à volta do trabalho do “petit génie de Cannes” (como foi referido por Melvil Poupaud na sessão a seguir ao filme), apenas porque se pressentia uma evolução relativamente aos seus filmes a este precedentes.
Laurence é um professor de liceu de trinta e cinco anos cujo
maior conflito é ter nascido no corpo de um homem sentindo-se mulher. Ao longo
do filme passam-se dez anos que acompanham o processo de transfiguração de
género por que Laurence atravessa.
Um dos pontos mais interessantes do filme é a fuga ao que
seria expectável do tratamento deste tipo de temáticas: as dores da transição,
os conflitos internos inerentes a esse processo, as dúvidas e incertezas que eventualmente
colocariam em causa essa transformação, …; aqui o que se mostra é a dificuldade
no processo de renovação da imagem daquele homem sempre do ponto de vista
exterior, ou seja, como é que as pessoas que observam esta mudança passam também por
uma caminhada transitiva tão forte como aquele que muda, neste caso a sua
namorada e a sua mãe. Ao mesmo tempo levanta-se um paradoxo: a narrativa tenta
fugir ao cliché, enquanto a gramática vai sempre convergir às soluções mais
básicas e expectáveis relativamente à construção da linguagem.
Isto não é, de todo, o que mais desaponta no filme, porque ao
observar a curta obra (sem relativizar este aspeto tendo em conta a idade do autor)
de Dolan, o que se retém das suas duas longas-metragens é um pastiche de referências diversas que são
aplicadas sem que para isso haja qualquer intenção gramatical que vá de
encontro ao tratamento narrativo da ação.
Neste Laurence Anyways isto agrava-se: para além da colagem
das referências imagéticas que é feita sem qualquer propósito (exemplo da cena
da festa em que há uma cópia descarada do estilo do videclip The Knife, Pass This
On), a tentativa de criação de uma estética própria é feita pelo recurso a
marcas do trabalho de câmara e montagem que se aproximam da histeria
protagonizada pelo trabalho de Cassavetes (a noção de histérico, trabalhada por
Deleuze relativamente à obra de Francis Bacon que se verifica no tratamento do
estilo feito pelo cineasta referido), que resultam num ritmo frenético e
desconectado de qualquer sentido cinematográfico. Dolan não é um auteur, é um cinéfilo que ainda anda à
deriva na procura da criação de um estilo singular, mas para isso tem de se
demarcar das suas referências e gostos.
O trabalho de inspiração sempre
aconteceu na história da criação artística, mas não é pela aplicação direta dessas
alusões que um estilo se concretiza.
Contudo, a análise paradoxal que é feita a este filme revela
potencialidades que se podem vir a concretizar: há algumas ideias de cinema, há
a construção formidável de personagens com uma profundidade relevante; falta o
trabalho, a aprendizagem e o pensamento; falta não fazer filmes que respondem
às vontades dum festival, mas sim àquilo que se quer tratar, e à criação duma
gramática sem preconceito, dotada de ingenuidade e franca.
Ressalvar o trabalho dos atores Melvil Poupaud e Suzanne
Clément que têm momentos absolutamente singulares e comoventes.
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