sexta-feira, agosto 31, 2012

Morangos com Açúcar – que filme???


Se havia dúvidas sobre que título recente poderia concorrer ao rótulo de pior filme português alguma vez realizado eis que Hugo de Sousa nos faz o favor de as tirar com a sua nova longa-metragem (o título Morangos com Açúcar é acompanhado por uma curiosa designação: O Filme, como se ele próprio nem acreditasse nisso)... Um acontecimento que é, portanto, do ponto de vista histórico, quase revolucionário! 

Recuso, contudo, tomar este espetáculo de miséria humana como uma bad joke, uma brincadeira sobre a qual não podemos fazer mais nada senão soltar umas gargalhadas mais ou menos previsíveis. Tal como recuso aceitar que objetos insuportáveis como este em particular não sejam alvo de uma atenção pelos profissionais que estão destinados a pensar (e escrever sobre) qualquer tipo de cinema. Considero, aliás, vergonhoso que tenha lido (visto ou ouvido) apenas uma ou duas vozes sobre o que é e o que significa Morangos com Açúcar – O Filme, como se, por ser o objeto que é (a extensão de uma telenovela dedicada a pré-adolescentes e adolescentes), desmerecesse por isso qualquer reflexão. Pois então: nada de mais errado! Pensar a cultura é também pensar nos múltiplos vértices que a constituem – e, sim, mesmo aqueles que nos parecem atacá-la diretamente. A função de um crítico de cinema deve ser também essa: situar-nos, com um determinado objeto, num certo panorama e contexto social, político e estético. E não, como aconteceu com Morangos, pura e simplesmente ignorar a sua existência. 

Não será difícil prever que estamos perante o potencial maior fenómeno de bilheteiras (no que respeita a uma produção nacional) que conheceremos nos últimos tempos. Quando, há um ano, houve grandes regozijos porque Sangue do meu Sangue teria sido o filme português mais visto de 2011 esquecemo-nos de que estávamos a falar, praticamente, de... 21 mil espectadores. Apesar de reconhecer que é um número que não significa, a longo prazo, absolutamente nada, é impossível não pensarmos num público que reconhece, ainda, um monstro no que diz respeito ao cinema feito em Portugal. Um monstro sobre o qual tem medo, sobre o qual aponta o dedo tomando como argumentos (mais do que esgotados) o “péssimo” modo de financiamento do ICA, o suposto hermetismo das obras que estreiam todos os anos e, por conseguinte, o modo como impera a crença de que os filmes portugueses não se cansam de ser chatos, aborrecidos e – importa o mais importante – “parados”... 

Não se trata, agora, de defender ou lutar contra esse monstro – o “cinema português” –, mas de reconhecer a existência de uma porção do público (demasiado, demasiado grande) que se envergonha (!) da produção nacional pelos motivos apontados. Será fácil perguntarmos a alguém, sem relação com o cinema, se tem algum conhecimento sobre o cinema feito em Portugal. E não nos admirará se o nome de Manoel de Oliveira vier à baila (porque, enfim, é o “realizador mais velho do mundo”) e achar que o seu modo de fazer cinema se resume em ligar a câmara apoiada num tripé e ir passear para beber um café... 

Morangos com Açúcar – O Filme vem, então, contra esse modo “chato” de filmar, apresentando-se mesmo como o resultado de um dos mais populares produtos de ficção produzidos sob a chancela da TVI (como se, aliás, o facto de ser popular fosse confirmar a sua inegável qualidade). A verdade é que não há ninguém suficientemente ingénuo (acredito eu) que se empenhe em legitimar as suas qualidades, como também é certo que são mais os detratores cujo passatempo passa por desacreditar um filme que não viram nem tencionam ver – embora, enfim, seja essa a sua profissão (digo isto sem querer regressar ao tema dos jornalistas e críticos de cinema em Portugal). 

E, de facto, é na muito fácil "falar mal" quando falamos de um objeto que surge como o culminar de anos de banalidade. Mais fácil ainda me parece esquecê-lo, exatamente pela sua condição de "filme mau". No entanto, importa perceber o que significa vermos este autodenominado filme, que na verdade nos parece: 

1. Uma coleção de figuras mais ou menos conhecidas da série televisiva que surgem só para marcarem uma presença. “Ali está o Pipo! E ali o Zé Milho!” 

2. Uma galeria de trabalhos performativos absolutamente medíocres e superficiais. Sente-se, nalguns, uma espécie de tensão entre aquilo que são / podem ser e aquilo são obrigados a fazer. É, por exemplo, o caso da atriz Sara Matos (que interpreta o papel da protagonista). 

3. Uma reunião de arquétipos plásticos sem alma. São personagens vazias de contradições e de humanidade, que se circunscrevem ao trabalho de saltar, dançar e cantar e às funções de “amiga que precisa de tempo para a relação”, de “miúdo que tem um fraquinho pela instrutora”, de “mulher independente que é difícil com os homens”, de “guitarrista dedicado ao trabalho”... 

4. Uma sucessão de cenas sem qualquer sentido de progressão dramática. São poucas as cenas que parecem acrescentar algo ao primeiro arco narrativo. Em vez disso, preferem repetir momentos anteriores. 

5. Uma sequência de cenas que, sem qualquer entendimento de pudor, têm apenas uma função: servir de breves spots publicitários. Não, não estamos a falar de product placement, mas de algo de bárbaro: uma cena em que, apenas, vemos duas amigas a trocar o Cornetto da Olá que estão felizes a comer, ou outra cena em que um rapaz, para impressionar a rapariga que gosta, se pulveriza com determinação com o desodorizante Axe. Para além destes momentos, surgem personalidades transformadas elas mesmas em “marcas”. É o caso do cantor David Carreira, que surge pela primeira vez a ouvir, no seu automóvel, nada mais que o seu single de estreia, Esta Noite

6. Um filme que não dá lugar para a verdade sobre as emoções. Em vez disso, sustenta-se num inventário de lugares-comuns formais. Um exemplo: a protagonista que pensa na relação amorosa olhando, sofredora, para o pôr-do-sol no mar, acompanhada pelo exibicionismo de travellings em grua, que se aproximam do seu rosto. Serão estes, afinal, os elementos “cinematográficos” que faltam à produção televisiva (portanto: apressada) que “O Filme” prometia?? 

7. Um combinado de músicas populares com letras abominavelmente mal-escritas – o que não importaria muito se a letra ou o ritmo não quisessem ter sentido dramático (mas querem ter) e se o filme não fosse um compêndio de momentos musicais. 

8. Uma rejeição absoluta do realismo e da verosimilhança – não devida ao seu género (o musical), mas ao escapismo de feira que a montagem de videoclip quer concretizar (não nos admira os slow motion nos momentos mais intensos ou, pelo contrário, o fast motion quando se quer demonstrar a passagem do tempo). Para além do mais, os menos atentos aperceber-se-ão da péssima montagem de som que muitas vezes não está sincronizada com a imagem, fortalecendo a ideia de artifício (não intencionado). E, também, de um pensamento descuidado sobre a luz (de repente, num quarto escuro, sentimos a presença alarmante de um projetor que dá luz, como uma assistência divina, ao rosto do ator que fala). De facto, o trabalho sobre a transparência no cinema clássico de Hollywood parece aqui uma miragem. Por isso, este Morangos com Açúcar é, como se não bastasse, um trabalho com algumas incompetências técnicas.

9. Um esquecimento completo da memória do cinema, como se "O Filme" fosse o início de uma nova era para o cinema e se reduzisse a (querer) emular os telefilmes do Disney Channel. É bom relembrar que Morangos trabalha uma visão sobre a juventude que está longe (longe, longe, longe...) da necessidade de falar sobre a idade que se fazia sentir nos filmes de Nicholas Ray (como Os Filhos da Noite ou Fúria de Viver) ou, mais admiravelmente, de Elia Kazan (lembremo-nos de A Leste do Paraíso ou de Esplendor na Relva). 

Eis onde chegamos: uma corrida de adolescentes (ou de adultos a fazer de) estúpidos, sinal do deslumbramento de mensagens publicitárias corretamente incorretas (alguém falou na publicidade da Sumol? ou na das inúmeras operadoras de telemóveis?). Sinal, também, que os nossos governantes não estão minimamente interessados em refletir sobre o degredo, moral e artístico, que sufoca a televisão portuguesa (e que, por sua vez, ocupa, andando de bicos de pés, as salas de cinema). Em vez disso, as distrações estão hoje desviadas para um possível encerramento da RTP2 (!!!!). 

Morangos com Açúcar – O Filme representa isso: o total domínio da telenovela no registo dramático e estético nas produções televisivas portuguesas e, por outro lado, o absoluto esquecimento do governo em pensar o vírus que tem infestado aquilo a que chamamos de “serviço público”. Digam-me agora que não, não importa falar, nem ver, nem pensar os Morangos...

3 comentários:

  1. Não é por acaso que uma voz como a tua se destaca e se continuará a destacar do panorama da crítica em Portugal. É que o teu sentido de justiça - que provém de uma cultura eclética e aberta - escapa a qualquer tentação de sensacionalismo, que tanto diverte grande parte dos teus colegas profissionais. Os teus textos espelham uma necessidade de pensar os objectos - uns mais artísticos do que outros - longe de preconceitos; isto, claro, quando não os enfrentas. Só assim se pode pensar e reflectir com seriedade.
    Inevitavelmente, o teu texto critica o filme e a outra crítica. O que importa é que essa tua posição vira as nossas atenções para o filme. Seja ele melhor ou pior.

    Roberto Simões
    CINEROAD.net

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  2. O quinto ponto já é suficiente para me dar náuseas. Concordo com o Roberto Simões, esta é uma reflexão que se impõe. Cumprimentos

    http://onarradorsubjectivo.blogspot.pt/

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