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terça-feira, setembro 06, 2011

Queer cinema (6/30): O autor fatale que moveu Espanha

Hoje com 61 anos, o trabalho de Pedro Almodóvar é, provavelmente, o primeiro a surgir na memória do público quando queremos falar de cinema espanhol contemporâneo, depois ou antes de Carlos Saura. Com uma vasta lista de títulos que, no seu conjunto, ajudaram a edificar uma definitiva marca "de autor" apenas sua, podemos considerar a obra do realizador representativa de uma progressão cultural, mais que de um estilo. Efectivamente, Pedro Almodóvar, assumidamente homossexual, foi uma das figuras centrais da Movida Madrileña, ou simplesmente "La Movida", movimento artístico, ideológico e até mesmo social contra-cultura do fim dos anos 70 e princípio dos 80, caracterizado pelo seu carácter alternativo, que florescia após quatro décadas de ditadura.

Não nos admira por isso que "Pepi, Luci, Bom y otras chicas de montón" (1980), que segue uma série de curtas-metragens subversivas rodadas em Super 8 (entre as quais se inclui um nome sugestivo: Dos putas, o, Historia de amor que termina en boda), seja um bom exemplo daquilo que pretendia o cineasta com a sua obra estética e, de certa maneira, politicamente relevante. Esta tragicomédia introduz, de forma provocadora e quase alucinada, os tema da sexualidade e da transgressão que iriam atravessar praticamente toda a carreira de Almodóvar, confrontando-nos, de igual modo, com a imagem da femme fatale, que no seu cinema adquire um carácter feminista (com características de uma mulher forte, independente e que se obriga a lidar com os seus dramas interiores) e simbólico.

Como parece evidente, o cinema de autores como Rainer Werner Fassbinder, Luis Buñuel ou Federico Fellini e, sobre todos os outros, de Alfred Hitchcock tiveram um papel decisivo na criação da ambiência que agora apetece chamar "almodóvariana". E a juntar ao cinema temos, naturalmente, a aproximação à pop art (onde se destaca a figura de Andy Warhol, que o espanhol visivelmente idolatra através dos seus cenários preenchidos com cores vívidas, quentes - ou se quisermos "espanholas"). Há sem dúvida uma tentação, talvez excessiva, de correlacionar a narrativa dos seus trabalhos com a de uma simples telenovela. Ainda que a comparação não seja inconsequente, teremos que pôr à frente na desconstrução das histórias de Pedro Almodóvar os moldes do melodrama clássico (que permitem, por mais complexas que seja o desenvolvimento dramático, uma fácil identificação por parte do espectador), e que o autor adequa, de forma inédita (e daí a principal marca da sua obra), aos seus temas predilectos (vide Fala com Ela, de 2002).

Há igualmente uma paixão pelo absurdo, pela alienação e por um tratamento quase sentimentalista dos dramas vividos pelas suas personagens que tornam possível e, obviamente, visível o humor negro do cineasta. Para citar um exemplo, podemos denotar este gosto em  Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, extraordinária "comédia nervosa" que celebra perfeitamente o kitsch e o disparate.

Ainda que A Lei do Desejo (magnífico drama de 1986 que aborda, entre outros assuntos, dos afectos entre duas pessoas do mesmo sexo) seja uma boa representação daquilo que Almodóvar consegue fazer quanto ao tratamento da (homos)sexualidade, nunca é tarde para recordar aquela que considero ser a sua obra-prima: Má Educação, que em 2004 teve a sua estreia no Festival de Cannes. Debruçando-se principalmente, uma vez mais, sobre o problema da identidade (que o filme Tudo sobre a Minha Mãe faz um vislumbre), La Mala Educación (no seu original), destrói com a presença habitual da mulher para transfigurá-la no trágico corpo travestido de Gael García Bernal, e que surge, tal como Match Point é para Woody Allen, como um drama alienígena para um especialista em comédias.

Ainda que não seja declaradamente auto-biográfico, Má Educação (que demorou cerca de uma década a ser escrito) é porventura um dos trabalhos mais intimistas do realizador, que se quis "livrar" do filme antes que se tivesse tornado numa obsessão. Situado em épocas distintas (anos 60 e finais de 70 e 80), este verdadeiro labirinto atravessa uma verdadeira salpicada de "histórias por resolver" - traumas de infância,  segredos da Igreja, um amor por resolver e um misterioso crime (regressam ao pensamento as tramas de Hitchcock).

Má Educação confirma que o à-vontade em filmar o corpo masculino (inserido num imaginário queer resultante dos espectáculos underground de travestis) é o mesmo que Almodóvar tem quando filma as suas musas (antes Carmen Maura, depois Penélope Cruz, que se juntam no melodrama Volver - Voltar) e que se este consegue escrever com destreza sobre uma femme fatale também o pode sobre um enfant terrible.

Será, por fim, também interessante realçar a mágica omnipresença do cinema no seu trabalho (repare-se na cena singular, em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, onde a protagonista muda progressivamente os seus sentimentos ao mesmo tempo que dobra as falas de Joan Crawford em Johnny Guitar, de Nicholas Ray). Já em Má Educação, Almodóvar revela uma cinefilia capaz de se colar à realidade (e por isso o filme é brilhante), imagem que tenta reproduzir, de forma menos bem-sucedida, no posterior Abraços Desfeitos.

O filme encontra-se disponível aqui.

quarta-feira, agosto 10, 2011

Lisboa, palco de cinema ao ar livre

Do dia 13 de Agosto a 11 de Setembro, às 22 horas, vários locais em Lisboa projectarão vários filmes portugueses e estrangeiros. Em parceria com museus, comunidades e instituições como o Instituto do Cinema e Audiovisual ou a Cinemateca Portuguesa, a Direcção Municipal da Cultura e a EGEAC (da Câmara Municipal de Lisboa) organizam aquilo que chamam “Fitas na Rua”. A entrada é livre.

“Houve um tempo em que o cinema era exibido em grandes salas, com grandes telas para plateias repletas. Nesse tempo, em Portugal, havia cinema ambulante pelas aldeias. Em qualquer contexto o cinema era festa, acontecimento social e espaço de encontro”, lemos no programa “Lisboa na Rua”. O Fitas na Rua apresenta-se assim como um “tributo a esses tempos e aos seus heróis: os realizadores, os actores, os projeccionistas, as salas de cinema.”

Pretendendo divulgar “o cinema como acto colectivo”, o Fitas na Rua trará para as ruas “cinema europeu, Hollywood, Bollywood e muito cinema português. Ficções, cinema mudo, documentários, animações e curtas-metragens”.

Entre a selecção, podemos destacar "O Tigre e o Dragão", de Ang Lee; "Aquele Querido Mês de Agosto", de Miguel Gomes; "Os Respigadores e a Respigadora", de Agnès Varda; "Felizes Juntos", de Wong Kar-Wai; "Playtime - Vida Moderna", de Jacques Tati; "Mercúrio", de Sandro Aguilar", ou "Roma", de Federico Fellini.

A lista integral pode ser consultada aqui, onde a notícia foi originalmente publicada ontem.

sábado, junho 18, 2011

Um ano da morte de José Saramago


No dia em que se comemora um ano da morte do Prémio Nobel Português José Saramago e a Cinemateca prepara uma homenagem ao lado da FNAC e da SIC, chegam boas notícias: Clarabóia, romance inédito escrito pelo escritor em 1953 (e depois caído no esquecimento quando entregue à presente editora), será publicado entre Outubro e Novembro deste ano pela Caminho. Debruçando-se sobre a vivência dos habitantes de um prédio (cujo último andar é iluminado por uma clarabóia), "nota-se que já tem ali algumas coisas que o José Saramago viria a desenvolver mais tarde... e tem até um personagem que, de alguma maneira, é o Saramago debatendo-se com os seus próprios problemas e, nomeadamente, com um problema que ele nunca resolveu, que é o optimismo e o pessimismo: se a humanidade é recuperável ou não", diz Zeferino Coelho à Lusa. Em 2012, será também publicado as primeiras 20 páginas do novo romance que Saramago preparava sobre o comércio de armas: Alabardas, Alabardas! Espingardas, Espingardas!, que cita um verso de Gil Vicente. Depois da 23ª edição de Viagem a Portugal, será publicada a correspondência completa entre o escritor e os seus leitores; Palavras para José Saramago (que reúne textos publicados após a sua morte); e o infantil O Silêncio da Água (retiro dAs Pequenas Memórias). Ainda falta decidir o que fazer com "contos inéditos" e "peças de teatro incompletas".

Quanto ao cinema, e numa breve recordação a um post antigo, lembro qual era o cinema predilecto do escritor:

O Sal da Terra (1954)
Helbert Biberman
"vi em Paris no final dos anos 70 e que me comoveu até às lágrimas: a história da greve dos mineiros chicanos e das suas corajosas mulheres abalou-me até ao mais profundo do espírito."


Blade Runner (1982)
Ridley Scott
"visto também em Paris num pequeno cinema do Quartier Latin pouco tempo depois da sua estreia mundial e que, nessa altura, não parecia prometer um grande futuro"


Amarcord (1973)
Federico Fellini
"desse, ninguém teve nunca dúvidas, estava ali uma obra-prima absoluta, para mim talvez o melhor dos filmes do mestre italiano."



A Regra do Jogo (1939)
Jean Renoir
"(...) que me deslumbrou pela montagem impecável, pela direcção de actores, pelo ritmo, pela finura, pelo “tempo”, enfim"



Pat & Patachon
"um filme que me acode à memória como se viesse da primeira noite da história dos contos à lareira, “Pat & Patachon” moleiros, aqueles sublimes (não exagero) actores dinamarquese que me fizeram rir (tinha então seis ou sete anos) como nenhum outro. Nem Chaplin, nem Buster Keaton, nem Harold Lloyd, nem Laurel e Hardy. Quem não viu Pat & Patachon não pode saber o que perdeu…"

O Peregrino (1923)
Charles Chaplin
"O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse."

Volver - Voltar (2006)
Pedro Almodóvar
"(...)creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da “movida” madrilena, a perguntar à sua pequena alma (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis): “Que faço eu aqui?” A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi “Volver” enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: “Tocaste a beleza absoluta”. Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu."

quarta-feira, janeiro 27, 2010


Quando o cinema se desconstrói numa lógica ilógica, a que se junta o facto de ser, igualmente, revolucionária, ambiciosa e livre, e, depois, se une como arte em estado bruto, então origina-se e põe-se-nos defronte a uma das obras mais preciosas de sempre: 8 ½.

Perante todo o convencionalismo e rigidez normativos na sétima arte e respectivas leis da perspectiva, narrativa e coesão, muitos e necessários foram aqueles que impuseram no público novas visões, algumas delas provocatórias como foi o caso do dadaísmo de Duchamp, ou da introdução da Nouvelle Vague francesa no mundo. Neste contexto, Fellini apresenta o seu filme mascarado no seu protagonista, também ele um cineasta, denunciando a necessidade de fuga da padronização exuberante do cinema. Três anos depois da apresentação da película italiana, Bergman também se demarcava com o excelente e inesquecível Persona, perfeito exemplo do que acabamos de falar. Porém, o italiano pode considerar-se um caso à parte. Com belíssimas interpretações, fotografia e banda sonora que fazem juz à sua qualidade narrativa, “8 ½” não é, simplesmente, do ponto de vista formal, algo de subversivo. É, sim, o confluir de todo um surrealismo próprio do realizador e, como óbvio acaba por ser, da sua vida. É, talvez, por isso que Guido nos parece tão verdadeiro e tão vivo — é nele, afinal, que habita o resultado de uma profunda introspecção realizada por Fellini. Sensível como um auto-retrato de Mattia Moreni, é ele que move o espírito do seu criador e se apresenta ao espectador mais deliciado.

Nele, vemos aquilo com que este enfrenta diariamente, fruto da sua personalidade: a abulia, o cansaço e o desencanto máximo da realidade; a consequente tentativa de fuga desta por via do cinema, meio conciliador da sua redenção com uma vida que lhe parece insuficiente e, ao mesmo tempo, sufocante. É também pelo facto de estar atrás de uma objectiva que Guido Fellini, unido como se de Pessoa e Campos tratasse, recorda, uma vez mais, os desejos e medos recônditos de uma infância distante, inocente e mágica, fundindo-os e confundindo-os numa realidade monótona e disfuncional (representada, neste caso, por um casamento mal sucedido ou por uma luta constante por uma saúde plena).

A nostalgia doente do realizador (qual deles?), que servirá, também e por exemplo, para reavivar uma consciente crítica à sociedade católica italiana, alia-se à interminável busca pela liberdade e pela consolidação de uma identidade que talvez nunca chegou a ser formada na totalidade. Pela busca de uma ultra-realidade, misteriosa e mágica, sem tempo para tempo, onde o impossível se torna possível, onde a vida se demonstra interminável e pura. Perspectiva-se, então, o referido pelas metáforas visuais, pelas burlescas personagens com que tudo parece suceder, e pelas reflexões feitas pelo diálogo ou pela acção, das mais pequenas às mais dançantes circunstâncias. Nesta autêntica obra-prima, a realidade é, simplesmente, o túnel onírico que medeia a inexistência da metafísica e o mistério imaginário da vida. Caberá a nós, aqui e agora, decidir se o queremos atravessar.

9/10
+Críticas da iniciativa "Janeiro & Federico Fellini" ao mesmo filme: 

domingo, janeiro 17, 2010

:A Estrada



Durante os noventa minutos decorrentes de uma das múltiplas jornadas na estrada da vida, não só acompanhamos a fábula de Gelsomina e Zampanò, mas um ponto de viragem para Fellini, que ganhou grande projecção ao filmar “La Strada”.
Vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro e do Leão de Prata, em Veneza, a película versa-nos, num tom de profunda melancolia, o desenvolvimento da relação de uma mulher pobre e sonhadora e de um homem escabroso que ganha a vida fazendo o mesmo espectáculo de rua, após esta lhe ter sido vendida pela mãe. Contextualizada numa Itália desencantada, decadente e esfomeada, o neo-realismo d’A Estrada, presente, também da época, em, por exemplo, Ladrões de Bicicletas de Vittorio de Sica, é o ponto de partida para uma viagem que será, para os dois, memorável. A ilusão circense que, paulatinamente, é retirada de Gelsomina, magnificamente interpretada por Giulietta Massina, afigura-se como um espectro inatingível que quer a protagonista como Zampanò lutam, juntos, ainda que através de uma relação disfuncional, alcançar. E assim é, através de uma narrativa episódica, os dois viajam e descobrem novos mundos e figuras, que se fundem na mesma visão pessimista e desiludida da realidade. Para a cobrir, A Estrada é o óptimo exemplo de como o amor, a esperança, a arte e o retornar a uma infantil inocência e pureza que ainda pode perdurar vencem a intragável e irreversível morte e passagem do tempo. Tendo-o e não o tendo, o filme mantém, num estranho paradoxo, uma surrealidade e energia inegáveis, que fazem dele um pedaço de cinema imperdível a qualquer amante da vida. Contudo, e engolido na mesma decepção com que tentava combater, a melancolia apodera-se da recta final, desacreditando todos os esperançosos esforços dos protagonistas precedentes a esta.
É uma fita tão mágica (Nino Rota sabe torná-la na perfeição) como dotada de um cru realismo, que merece ser reflectida com lentidão - quem sabe para até o fim da vida, onde reside o final da estrada.
9/10

quarta-feira, janeiro 13, 2010

:Amarcord




Amarcord “Amarcord”: vagueando de estação em estação, num passado que já foi e que ainda é, e volvido nas memórias que uma simples história pessoal foi construindo, o autor cria uma fábula extraordinariamente memorável. É, principalmente, por nos trazer à memória o espectro da nostalgia, da magia e dos tempos dourados da infância, com um tom humana e profundamente divertido e real, que este filme atinge o sublime e a excelência. Dotado de uma riqueza tão pura e tão sincera, quer nas personagens como nos diferentes e intemporais episódios, “Amacord” completa-se com a fusão total da narrativa, da imagem e das belíssimas baladas de Nino Rota… É tudo menos fácil digerir a risonha obra-prima de Federico Fellini - por vezes, simplesmente, a perfeição deixa-nos assim, comovidos até onde seria impossível.
10/10

domingo, janeiro 10, 2010

:As noites de Cabíria



Quando “As Noites e Cabíria” estreou, dois anos após o bem elogiado “A Estrada”, Fellini defrontou-se uma receptividade mista no que tocou à agradabilidade da protagonista e do tema em questão. Hoje, é das películas mais bem reconhecidas do cineasta italiano - e razões não faltam para isso defender.
Roma, anos 50 - Cabíria é uma prostituta ingénua mas determinada a esconder os seus sentimentos, procurando nas viagens nocturnas pela capital italiana, o amor verdadeiro. E assim se apresenta o mote para toda uma narrativa fascinante. Enquanto nossa protagonista, brilhantemente protagonizada por Giulietta Masina, Cabíria apresenta-se como alguém plenamente ingénua e algo perdida numa infantilidade neoténica, iludida nos romantismos sub-reptícios dos homens com que relaciona. A sua personalidade vincada, defeituosa (humana!) e rude é acentuada em função das suas desilusões e mágoas, mas são, sobretudo, os seus amigos que melhor conhecem o coração de Cabíria e conhecem a sua pureza. Posso, sem sombra de dúvida, remeter a experiência que foi visualizar o mundo feminino desta obra para os trabalhos de Almodóvar, que também lidou com a prostituição em “Tudo sobre a minha Mãe”. Já este, “As Noites”, é, contudo, apesar de um filme rodeado numa atmosfera de brincadeira, música e humor naturalmente subtis, uma película que lida, através de uma sensibilidade notável, com a rejeição, a dor da não reciprocidade amorosa e a mágoa e o medo da solidão. É, pois, uma película que lida com a depressão de uma forma nunca antes vista - há uma certa altura em que Cabíria entra em nós e, se a rejeitamos inicialmente como ser humano, num dado momento já a compreendemos e com ela sofremos. Não é, como já se viu, uma história de amor. É uma história de sobrevivência, altamente depressiva mas com a mensagem de que, apesar de todas as tréguas, vale sempre a pena tentar e iluminar a esperança.
Federico Fellini transpõe para o grande ecrã um guião difícil de se lidar, mas fá-lo com uma competência tal que imagens como a de Cabíria no palco do hipnotista ou na recta conclusiva da película ficam cravadas na mente do espectador mais deliciado, como eu o fui, durante duas deslumbrantes horas. Por fim, resta-nos salientar o facto de que poucos finais, na história do cinema, poderão igualar o grandiosíssimo de “As Noites de Cabíria”.
9/10

sábado, janeiro 02, 2010

:Quem é Federico Fellini?

Quem é Federico Fellini, cineasta que eternizou a poesia da sétima arte e que constitui uma fortíssima influência nos contemporâneos realizadores? Descrobi-lo-emos, aliados, mais uma vez, aos blogues CINEROAD, Split Screen, no início deste novo ano, que se inicia recheado de muitas surpresas cinematográficas. Como tal, não poderíamos deixar de dar voz ao nosso colega cinéfilo Hugo Gomes, do Cinematograficamente Falando.... A todos os leitores - um óptimo e mágico Janeiro!


quinta-feira, agosto 20, 2009

:Paranoid Park





Finda a trilogia da morte (Gerry / Elephant / Last Days), poder-se-ia, precipitadamente, adivinhar malogrado o futuro da carreira de Gus Van Sant, dada a má receptividade da última fita apresentada em Cannes. Ainda assim, depois de dois anos de trabalho, este não renunciou do estatuto de um dos mais proeminentes realizadores avant-garde da contemporaneidade e mergulhou de novo no festival com Paranoid Park, a adaptação do romance homónimo de Blake Nelson e uma obra ousadamente familiar no que à temática diz respeito. Escusado será dizer que foi, uma vez mais, extremamente bem sucedido.
Paranoid é, tal como o irmão Elephant, um ensaio sobre o estado moderno de uma adolescência perdida, indolente, desinteressada e vivida em facilitismos, mas, ao contrário deste, com motivações dostoievskianas e de forma mais directa, explora, em específico, a noção de culpa interior e consequente autodestruição, o “acaso determinista” e o absurdo, debruçando-se, tal como já é típico nos filmes do cineasta, sobre uma minoria social — neste caso, os skaters (e, para quem estiver interessado, após o texto deixo-vos com a versão dos Youth Group da Forever Young, que os homenageia). Apesar da forma mais directa e menos dada a reflexões posteriores, a fita é rica em detalhes que, se vista superficialmente, podem passar por despercebidos (por exemplo, a paixão silenciosa de Macy pelo amigo Alex é-nos sugerida numa cena entre muitas outras onde Van Sant capta as suas irrequietas e indecisas mãos, no autocarro), assim como é rica em cenas que, no seu todo, nos são transcendentes. E que exemplo mais edificativo do que a inesquecível cena do banho? Iniciando-se com uma clara alusão ao (escusadíssimo) remake que realizara de Psycho, técnica e metafisicamente tudo se encontra em perfeita harmonia (o som, a cor, a água, os azulejos) para tão desarmoniosa e melancólica remição: Alex deixa-se caído na culpa e vergonha, como se acreditasse que, com aquele duche, tudo fosse resolvido. Há que aplaudir, então, o desempenho do inexperiente Gabe Nevins, o único a sobressair-se verdadeiramente numa mescla de péssimas actuações (Van Sant, contudo, escolheu os amadores ao dedo, de acordo com a sua própria personalidade e tiques, o que me resta concluir que os restantes não representavam autenticamente).
O filme é servido, respeitante à realização e à narrativa, como uma espécie de catapulta para o futuro Milk, contrabalançando a sua arte com a agradabilidade fácil entre o público, que se estende com estas duas obras. As semelhanças visíveis são notórias: ora porque ambas histórias são versadas na primeira pessoa (comprometendo, por conseguinte, a ordem e sequencialidade das cenas), ora porque é ressuscitado um prazer peculiar de Van Sant demonstrado, antes, apenas com Mala Noche — o de intercalamento entre imagens de ficção e documentais, através da diferença do modo de filmagem (mais livre e amador) e da fotografia (que se apresenta como se de uma verdadeira super 8 se tratasse). Este segundo aspecto (utilizado para reforçar um provável realismo ou, alternativa antagónica mas não menos plausível, a ideia de um mundo interior e independente do físico) só vem a engrandecer o complexo e assombroso esforço de Christopher Doyle que consolida aqui o que de melhor consegue fazer na edição da imagem. E, para podermos, igualmente, analisar o sentido metafísico e alegórico deste tipo de cenas (e não só) há que, forçosamente, referir o magnífico trabalho no design de som de Leslie Shatz e, ainda, da banda sonora musical de que o filme é bem recheado. Enquanto a tonalidade das cores, da iluminação e da focagem é alterada em função do estado da mente desenfreada da personagem (por exemplo — um de muitos —, após a morte do segurança somos brindados com um soberbo plano geral de uma vertiginosa trovoada), o som também é utilizado de uma forma bastante particular e não convencional: ora com a emprestada d’O Bom Rebelde “Angeles”, de Elliott Smith, ora com as composições do falecido italiano Nino Rota, dos filmes de Fellini. Assim, toda esta relação imagem / som / sujeito, articulada, resulta, belamente, em cenas que exaltam a pretendida intersubjectividade fantasiosa das situações e, principalmente, o solipsismo de que é própria a trilogia da morte e Paranoid Park, tão subtilmente defendido pelo realizador.
Esta obra é, sem margem para qualquer tipo de dúvida, uma admirável revisita ao colossal Elephant e uma excelente adaptação literária conseguindo, ainda assim, com uma linha narrativa mais convencional, aproximar-se imenso da magnificência e inovação estilística, impondo-se como um inesquecível marco na filmografia van santiana.
9/10






quarta-feira, agosto 12, 2009

:Os Filmes de José Saramago


Até grandes escritores têm filmes que marcaram a sua vida e, portanto, é com prazer que partilho convosco três publicações que o Prémio Nobel da Literatura português fez no seu blog público, as quais transcrevo de seguida e recomendo vivamente a leitura:

Charlot (18/05/2009)

Numa destas últimas noites vi na televisão alguns filmes antigos de Chaplin, a saber, dois ou três episódios nas trincheiras da primeira guerra mundial e um filme mais extenso, “The Pilgrim”, que, retoma, com menos felicidade que noutros casos, o tema recorrente de um Chaplin sem culpas procurado pela polícia. Não sorri nem uma única vez. Surpreendido comigo mesmo, como se tivesse faltado a uma jura solene, dei-me ao trabalho de tentar recordar, tanto quanto me seria possível oitenta anos depois, que risos, que gargalhadas me terá feito soltar Charlot nos dois cinemas populares de Lisboa que frequentava quando tinha seis ou sete anos. Não recordei grande coisa. Os meus ídolos nessa época eram dois cómicos suecos, Pat e Patachon, que esses, sim, eram, para mim, autênticos campeões da gargalhada. Continuando a reflectir com os meus botões, sempre bons conselheiros porque em princípio não mudam de casa nem de opinião, cheguei à inesperada conclusão de que Chaplin, afinal, não é um cómico, mas um trágico. Repare-se como tudo é triste, como tudo é melancólico nos seus filmes. A própria máscara chaplinesca, toda ela em branco e negro, pele de gesso, sobrancelhas, bigode, olhos como pingos de alcatrão, é uma máscara que em nada destoaria ao lado das representações plásticas clássicas do actor trágico. E há mais. O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse.

Cinco Filmes (23/07/2009)

Cinco filmes me foi pedido que recordasse. Não teria de precocupar-me se seriam ou não os melhores, os mais famosos, os mais citados. Bastaria que me tivessem impressionado de maneira particular, como nos impressiona um olhar, um gesto, uma intonação de voz. Escolhê-los não foi difícil, pelo contrário, apresentaram-se-me com toda a naturalidade, como se não tivesse andado a pensar noutra coisa. Ei-los, então, mas a ordem por que os menciono não é nem deve ser tomada como uma classificação por mérito. Em primeiro lugar (algum teria de abrir a lista), “O sal da terra” de Herbert Biberman, que vi em Paris no final dos anos 70 e que me comoveu até às lágrimas: a história da greve dos mineiros chicanos e das suas corajosas mulheres abalou-me até ao mais profundo do espírito. Cito a seguir “Blade runner” de Ridley Scott, visto também em Paris num pequeno cinema do Quartier Latin pouco tempo depois da sua estreia mundial e que, nessa altura, não parecia prometer um grande futuro. Sobre “Amarcord” de Fellini, desse, ninguém teve nunca dúvidas, estava ali uma obra-prima absoluta, para mim talvez o melhor dos filmes do mestre italiano. E agora vem “A regra do jogo” de Jean Renoir, que me deslumbrou pela montagem impecável, pela direcção de actores, pelo ritmo, pela finura, pelo “tempo”, enfim. E, para terminar, um filme que me acode à memória como se viesse da primeira noite da história dos contos à lareira, “Pat & Patachon” moleiros, aqueles sublimes (não exagero) actores dinamarquese que me fizeram rir (tinha então seis ou sete anos) como nenhum outro. Nem Chaplin, nem Buster Keaton, nem Harold Lloyd, nem Laurel e Hardy. Quem não viu Pat & Patachon não pode saber o que perdeu…

Almodóvar (05/08/2009)

Cheguei tarde à “movida”, quando ela já tinha deixado os seus trajes de arlequim urbano, as suas lágrimas falsas de rimel negro, os seus postiços, as suas perucas, os seus risos e a sua tristeza. Não quero dizer que as “movidas” sejam tristes por definição, o que digo é que têm de se esforçar muito para não deixar que lhes saia da boca, no meio da festa e da orgia, a pergunta definidora: “Que faço eu aqui?” Atenção, estou contando uma história que não é minha. Nunca fui homem para “movidas” e se alguma vez acontecesse deixar-me seduzir, estou certíssimo de que não faria melhor figura que D. Quixote no palácio dos duques. O ridículo existe de facto, não é unicamente um ponto de vista. Posto isto, creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da “movida” madrilena, a perguntar à sua pequena alma (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis): “Que faço eu aqui?” A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi “Volver” enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: “Tocaste a beleza absoluta”. Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu.
Devo concluir. De uma forma decerto inesperada para quem está mal gastando o seu tempo a ler estas linhas, e que resumo assim: a Pedro Almodóvar espera-o o grande filme sobre a morte que vem faltando ao cinema espanhol. Por mil razões, sobretudo porque essa seria a maneira de recuperar dos escombros o sentido último da “movida”.