segunda-feira, janeiro 05, 2009

"Anna Karenina", Leo Tolstoi

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Há simultaneamente algo de comovedor e de horrível na figura de Anna Karenina.

Aprisionada a um casamento com Alexei Karenine, homem mundano e valorizador, acima de tudo, das aparências e do estatuto social, surge-nos inicialmente descrita como a mais bela das mulheres, detentora de um carácter íntegro e de uma visão amadurecida sobre o meio em que vive: adulta e enriquecida pela experiência da maternidade, Anna desde logo se mostra dificilmente cativada pelas diversões características da esfera da sociedade a que pertence - um exemplo ilustrador é o momento em que diz aborrecer-se em bailes em conversa com a jovem Kitty, recentemente apresentada à sociedade e para quem esses eventos sociais significam o atractivo máximo da sua existência.

Considerando o primeiro aspecto sobre ela assinalado, não é difícil compreender os motivos que levam o boémio Alexei Vronski, militar em início de carreira, a interessar-se por ela, e a relação de ambos parece envolta num véu de inevitabilidade, desde o primeiro olhar trocado entre si na estação aos encontros que entretanto se lhe vão sucedendo. Aos olhos de Vronski, aquilo que de início poderia ser apenas mais uma conquista, aliás encorajada pela sociedade - onde a corte a uma mulher casada, e possível envolvimento, era vista como um desafio aos pretendentes e um afagar da auto-estima dos maridos (que, quando não desafiavam os rivais para um duelo, fingiam nada saber) -, torna-se progressivamente o motivo da existência dos dois: algo que ele salienta quando diz a Anna estar nas suas mãos "o decidir se viremos a ser ou os mais felizes, ou os mais infelizes dos seres humanos".

Kitty (ou Catarina) Tcherbatski, ingenuamente acreditando no amor que julgava ser-lhe dedicado por Vronski, revela-se, juntamente com Constantino Levine, uma das personagens mais tocantes de toda a obra. Travando amizade com Varienka enquanto se reabilita num retiro termal no estrangeiro, Kitty representa, através das suas vivências, a necessidade de um modelo, que nos é própria na juventude. Anna ocupa esse lugar logo após o conhecimento das duas, porém temporariamente; Varienka sucede-lhe, mas também apenas por um curto espaço de tempo. O crescimento de Kitty e a descoberta do seu verdadeiro "eu", processo comum a todos nós, é interessante devido à honestidade com que, finalmente, se consegue aceitar a si mesma, numa confissão enternecedora em que é visível a preferência do autor pela transparência de espírito e sentimentos genuínos, ao invés da prática de actos cujo objectivo é simplesmente a salvação da alma, numa religiosidade devota encarnada em Varienka, mulher inteiramente dedicada ao altruísmo.

É na personagem de Dolly (ou Daria Alexandrovna) que a história adopta a sua faceta mais determinista. Caracterizada pelo marido como uma sábia no que toca a relações, revela-se quase uma profeta relativamente ao futuro relacionamento de Kitty, sua irmã, e Levine, um pretendente que ela rejeita nos momentos iniciais da trama, por acreditar que ela acabará, "seja de que maneira for", sua mulher.

Levine, por sua vez, verbaliza a posição do autor relativamente à sociedade, numa valorização dos agricultores e das pessoas do povo, enfim, dos desfavorecidos, genuínos por contraposição aos membros das elites, supérfluos e imorais. A busca interior pelo significado da sua existência (que o próprio Tolstoi experimentou, e com uma conclusão idêntica) leva Levine a encontrar na religião o fundamento da sua criação, num percurso tão comovente como o de Kitty.

A Anna está reservada a jornada mais trágica de todas - sacrificando tudo, inclusivamente o filho e a honra, pela promessa de uma felicidade que nunca chega verdadeiramente a experimentar, acaba fatalmente asfixiada pelas teias de que julgara, a certa altura, libertar-se: a sociedade exclui-a, repugnada pelas suas acções, e o marido recusa-se a conceder-lhe o divórcio, impedindo-a de viver uma relação sem vergonha com Vronski.

Como disse, há algo de comovedor em Anna, e que se prende principalmente com as suas observações acerca do mundo que a rodeia (como no momento em que afirma pensar "muitas vezes que os homens não compreendem o que é nobre, embora passem a vida a falar de nobreza") com a sua procura pela felicidade. E algo de horrível: Anna não abandona apenas o marido, mas também o filho, cujo amor, constata, por fim, essencial à sua existência. Condicionada pela posição da mulher na sociedade do séc. XIX, dificilmente encontraria um desfecho feliz para a sua situação - e não será muito difícil compreender a derradeira decisão de uma mulher sem honra, obrigada a viver longe do filho e presa a um homem de cujo amor duvida de forma constante, e por quem tudo perde.

P.S.: Não escrevi nenhuma introdução para o texto porque achei que, não sendo exactamente uma opinião mas antes um olhar sobre as personagens, seria desnecessário falar antes, ou depois, do livro, da escrita, ou do que achei disso tudo. Aliás, melhor dito, a frase inicial é a introdução, mas achei que ficava algo pretensioso pô-la antes do clique, por isso optei por deixar só a imagem.

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