Raquel Freire é a determinada realizadora portuense que, após ter marcado o prelúdio da sua filmografia com a curta-metragem “Rio Vermelho”, em 1999, e depois de ter causado controvérsia nacional com um invulgar “Rasganço”, de 2001, regressa em força com uma obra mais pessoal, artística, e susceptível a interpretações diversas, avaliando o rumo que é seguido pelas sete personagens que se vão entrecruzando entre si, partilhando um dos sentimentos mais elementares (mas, também, mais enigmáticos): o amor que, aqui, se apresenta como um veneno que tanto pode curar como aniquilar o ser humano mais desapaixonado.
“Fiz este filme porque acredito no amor”. A carta de intenções de Raquel para este filme era extensa, foi publicamente divulgada, e dava fundamentos mais do que suficientes para preparar um qualquer possível espectador para uma reflexão atípica de um tema mais do que discutido e expresso na sétima arte, e enchê-lo de expectativas para um filme revolucionário (e, também, muito depressivo, se bem se lembram aqueles que tiveram a oportunidade de ouvir a realizadora em “Pessoal e Transmissível”, na TSF). No entanto, não podendo garantir que estes objectivos foram com sucesso alcançados, já que a arte e o amor, juntos de forma incerta, são um produto altamente subjectivo, devo dizer que “Veneno Cura” é, principalmente, uma experiência sensorial que qualquer um, dependendo dos casos em particular, dará o valor devido, interpretando cada situação da forma como achar mais correcta. E, passando à trama da fita e ao argumento (elemento que é mais tido em consideração), as figuras que nos são apresentadas, por mais estranhas, repugnantes ou incomuns que nos possam inicialmente parecer, são um espelho não só autobiográfico mas de toda uma sociedade. E “espelho” aqui atribuiu-se não na verdadeira acepção do termo mas as personagens reflectem, depois de concluirmos numa breve ponderação, a verdadeira humanidade que se encontra, neste caso em particular, despojada de quaisquer preconceitos ou entraves a uma felicidade. Felicito, pois, o cuidado meticuloso que é posto em conta com a caracterização psicológica de todo o enredo, mostrando-nos, numa melodia consternadamente silenciosa, as cogitações sofridas daquele trágico grupo de pessoas, solto de qualquer sentido de esperança ou de ambições (há um monólogo que é feito e que demonstra bem essa angústia), vendo luz na dor, nas lágrimas e na morte. No entanto, o mais surpreendente que é visível nestas narrativas que parecem desconexas, é que tudo parece culminar numa sequência irónica e quase risível sobre a vida: como se o destino os espancasse e risse da cara de felicidade deles, no momento final. Exemplo edificativo do que acabo de referir é a personagem de Rosa, a quem nos podemos mais identificar, apesar de tudo: é com ela que começamos uma abertura muita crua mas excelente e um final poético na cidade sombria do Porto. E é, também, devo admiti-lo, a única, talvez, que não sofre de impulsos constantes sexuais, como todos os outros parecem padecer (já que o sexo para todos os outros e para a própria realizadora enquanto visionária fazem parte de uma realidade inalterável e necessária), e que não ultrapassa os limites invisíveis e não falados de um politicamente correcto comportamento em sociedade. No entanto, mesmo assim, o seu caminho depois de ter perdido, fatalmente, um filho, é extraordinariamente ingrato: a meu ver, e penso que a o verbo se adequa, foi violada por um advogado obcecado com uma personalidade abominável (muitos discordariam) e deixou-se levar por ele, já que se afigurava como o único ser capaz de salvá-la de um destino ainda mais negro (falo do suicídio). E juntos procriaram, e criaram uma vida nova, uma felicidade idealizada e extremamente artificial: não será a realidade de muita gente, que se ilude diariamente? Garanto-vos que nunca um final feliz me deixou tão revoltado, mas depois, se chegarem a ver, opinem. Quanto às outras situações relativas ao argumento, saliento a do fotógrafo que me soa muito familiar (aliás, com algumas personagens reverão certos momentos da vossa vida, inevitavelmente) e da simbólica mulher do “Imperatriz”, que conclui a vida com um desgosto amoroso diluído num cru banho de sangue. Para terminar neste aspecto, verão, quem segue os trabalhos de Freire, um género de “versão melhorada” do “Rio Vermelho”, o que me agradou bastante, já que a curta-metragem não me tocou tanto quanto devia ter atingido.
Voltando-me para aspectos mais técnicos, devo dizer que a fotografia e o som, relacionando-a com projectos anteriores, sofreram uma evolução tremenda, o que é um aspecto deveras positivo, já que deixou transparecer a cidade onde vivo em quadros animados belíssimos. A banda sonora esteve muito bem: a instrumental criou um ambiente de tensão bem propício e as sequências de música com letra foram das minhas preferidas (ópera incluída). A fluidez dos movimentos de câmara (incluindo momentos de óptica subjectiva que me agradaram) resultou, mostrando um progresso natural, uma visão mais adulta e aperfeiçoada de uma autora com perspectivas inovadoras do mundo actual.
Por fim, e como não podia deixar de ser, agradeço imenso a quem possibilitou a minha ida à antestreia de “Veneno Cura”, a minha professora de Filosofia, e a própria Raquel Freire, que me proporcionou momentos bastante aprazíveis e, claro, uma obra com uma mensagem que se pretende universal, digna de ser discutida. Então o veneno cura… porquê?
Por fim, e como não podia deixar de ser, agradeço imenso a quem possibilitou a minha ida à antestreia de “Veneno Cura”, a minha professora de Filosofia, e a própria Raquel Freire, que me proporcionou momentos bastante aprazíveis e, claro, uma obra com uma mensagem que se pretende universal, digna de ser discutida. Então o veneno cura… porquê?
8/10
o choque e pútrido tem sempre o cheiro obrigatório a arte (não o contrário)
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